segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Ruínas de Potosí: O derramamento do sangue e das lágrimas[8]

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     8. O derramamento do sangue e das lágrimas; e, no entanto, o papa tinha resolvido que os índios tinham alma
          Em 1581, Felipe II afirmou, durante uma audiência em Guadalajara, que um terço dos indígenas da América tinha sido aniquilado, e que aqueles que ainda viviam eram obrigados a pagar tributos pelos mortos. Disse também o monarca que os índios eram comprados e vendidos. Que dormiam na intempérie. Que as mães matavam os filhos para salvá-los do tormento das minas [1]. Mas a hipocrisia da Coroa tinha menos limites do que o Império: a Coroa recebia uma quinta parte do valor dos metais que seus súditos arrancavam em toda a extensão do Novo Mundo hispânico, além de outros impostos, e outro tanto ocorria, no século XVIII, com a Coroa portuguesa em terras do Brasil.
     A prata e o ouro da América, no dizer de Engels, penetraram como um ácido corrosivo em todos os poros da moribunda sociedade feudal na Europa, e ao serviço do nascente mercantilismo capitalista converteram indígenas os e empresários escravos mineiros negros num multitudinário “proletariado externo” da economia europeia.
     A escravidão greco-romana ressuscitava nos fatos, num mundo distinto; ao infortúnio dos indígenas dos impérios aniquilados na América hispânica deve-se somar o terrível destino dos negros arrebatados às aldeias africanas para trabalhar no Brasil e nas Antilhas. A economia colonial latino-americana valeu-se da maior concentração de força de trabalho até então conhecida, para tornar possível a maior concentração de riqueza com que jamais contou qualquer civilização na história mundial
     Aquela violenta maré de cobiça, horror e bravura não se abateu sobre essas comarcas senão ao preço do genocídio nativo: investigações recentes melhor fundamentadas atribuem ao México pré-colombiano uma população que oscila entre 25 e 30 milhões, e se calcula que havia um número parecido de índios na região andina; na América Central e nas Antilhas, entre dez e treze milhões de habitantes. Os índios das Américas somavam não menos do que 70 milhões, ou talvez mais, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um século e meio depois estavam reduzidos tão só a 3,5 milhões [2]. Segundo o marquês de Barinas, entre Lima e Paita, onde tinham vivido mais de dois milhões de índios, não restavam mais do que quatro mil famílias indígenas em 1685. O arcebispo Liñán y Cisneros negava o aniquilamento dos índios: “O que acontece”, dizia, “é que eles se escondem para não pagar tributos, abusando da liberdade que gozam e que não tinham na época dos incas”. [3]
     Manava sem cessar o metal das veias americanas, e da corte espanhola, também sem cessar, chegavam ordenações que outorgavam uma proteção de papel e uma dignidade de tinta aos indígenas, cujo trabalho extenuante sustentava o reino. A ficção da legalidade amparava o índio; a exploração da realidade o dessangrava. Da escravidão à servidão, do trabalho forçado ao regime de salários, as variantes da condição jurídica da mão de obra indígena só alteravam superficialmente a situação real. A Coroa considerava tão necessária a exploração desumana da força de trabalho aborígine que, em 1601, Felipe III ditou regras proibindo o trabalho forçado nas minas e, ao mesmo tempo, enviou instruções secretas, ordenando que fosse continuado “se aquela medida afetasse a produção” [4]. Do mesmo modo, entre 1616 e 1619, o visitador e governador Juan de Solórzano fez uma investigação sobre as condições de trabalho nas minas de mercúrio de Huancavélica: “(...) o veneno penetrava na pura medula, debilitando os membros todos e provocando um tremor constante, morrendo os operários, geralmente, após quatro anos”, informou ao Conselho das Índias e ao monarca. Mas em 1631, Felipe IV ordenou que se continuasse com o mesmo sistema, e seu sucessor, Carlos II, tempos depois renovou o decreto. Essas minas de mercúrio eram exploradas diretamente pela Coroa, diferentemente das minas de prata, que estavam nas mãos de empresários privados.
      Em três séculos, a montanha rica de Potosí apagou, segundo Josiah Conder, 8 milhões de vidas. Os índios eram arrancados das comunidades agrícolas e, com a mulher e os f ilhos, impelidos rumo à montanha. De cada dez que eram levados para os altos páramos gelados, sete jamais voltavam. Luis Capoche, que era dono de minas e de engenhos, escreveu que “estavam os caminhos tão povoados que parecia que o reino inteiro ia embora”. Nas comunidades, os indígenas tinham visto “voltar muitas mulheres aflitas, sem seus maridos, e muitos filhos órfãos, sem seus pais” e sabiam que na mina os esperava “mil mortes e desastres”. Os espanhóis palmilhavam centenas de milhas em busca de mão de obra. Muitos índios morriam no caminho, antes de chegar a Potosí. Mas eram as terríveis condições de trabalho na mina que matavam mais gente. O frei dominicano Domingo de Santo Tomás denunciou ao Conselho das Índias, em 1550, pouco depois da abertura da mina, que Potosí era a “boca do inferno” que, anualmente, tragava índios aos milhares, e que os rapaces mineradores tratavam os nativos “como animais sem dono”. E frei Rodrigo de Loaysa diria depois: “Esses pobres índios são como as sardinhas no mar. Assim como os outros peixes perseguem a sardinha para agarrá-la e devorá-la, nestas terras os perseguidos são esses miseráveis índios (...)” [5]. Os caciques das comunidades tinham a obrigação de substituir os mitayos que iam morrendo por novos trabalhadores de 18 a 50 anos de idade. O curral de repartir, onde se entregavam os índios aos donos de minas e engenhos, uma gigantesca cancha de paredes de pedra, serve agora para os operários jogarem futebol; o cárcere dos mitayos, um informe montão de pedras, ainda pode ser visto na entrada de Potosí.
     Na Recopilação de Leis das Índias não faltam decretos daquela época estabelecendo a igualdade de direitos dos índios e dos espanhóis para explorar as minas e proibindo expressamente que fossem lesados os direitos dos nativos. A história formal – letra morta que em nossos tempos recolhe a letra morta de tempos passados – não teria do que se queixar, mas enquanto se debatia numa papelada interminável a legislação do trabalho indígena e, numa explosão de tinta, manifestava-se o talento dos juristas espanhóis, na América a lei “era acatada, mas não cumprida”. E o fato é que “o pobre índio é uma moeda”, como disse Luis Capoche, “com a qual se encontra tudo o que é preciso, como o ouro e a prata, e muito melhor”. Numerosos indivíduos reivindicavam nos tribunais sua condição de mestiços para que não fossem mandados para os socavões nem fossem vendidos e revendidos no mercado.
     Em fins do século XVIII, Concolorcovo, em cujas veias corria sangue indígena, assim renegava os seus: “Não negamos que as minas consomem um número considerável de índios, mas isto não resulta do trabalho deles nas minas de prata e de mercúrio e sim da libertinagem em que vivem”. Neste sentido, é ilustrativo o testemunho de Capoche, que tinha muitos índios a seu serviço. As temperaturas glaciais da intempérie se alternavam com os calores infernais nas profundas da montanha. Os índios entravam lá e, “em regra, alguns são retirados mortos, outros com as pernas e a cabeça quebradas, e nos engenhos a cada dia se ferem”. Os mitayos faziam saltar o mineral à ponta de picareta e logo o levavam para cima, pelas escadas, carregando-o nas costas e à luz de vela. Fora do socavão, movimentavam os enormes eixos de madeira dos engenhos ou fundiam a prata ao fogo, depois de moê-la e lavá-la.
    A “mita” era uma máquina de triturar índios. O emprego do mercúrio para extração da prata por amálgama envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre da terra. Fazia cair os cabelos e os dentes, e provocava tremores incontroláveis. Os “azogados” se arrastavam a pedir esmola pelas ruas. Seis mil e quinhentas fogueiras ardiam à noite nas encostas da montanha rica, e nelas se trabalhava a prata, valendo-se do vento que o “glorioso santo Agostinho” enviava do céu. Por causa da fumaça dos fornos não havia pastos nem plantações num raio de seis léguas em torno de Potosí, e as emanações eram também implacáveis com os corpos dos homens.
     Não faltaram as justificativas ideológicas. A sangria do Novo Mundo se convertia num ato de caridade ou numa razão de fé. Junto com a culpa nasceu todo um sistema de álibis para as consciências culpadas. Os índios eram tidos como bestas de carga porque aguentavam mais peso do que o débil lombo da lhama, e de passagem se comprovava que, de fato, os índios eram bestas de carga. Um vice-rei do México considerava que não havia melhor remédio do que o trabalho nas minas para curar a “maldade natural” dos índios. Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os índios mereciam o tratamento que recebiam porque seus pecados e idolatrias eram uma ofensa a Deus. O conde de Buffon afirmava que nos índios, animais débeis e frígidos, não se registrava “nenhuma atividade da alma”. O abade De Paw inventava uma América onde os índios degenerados eram como cães que não sabiam latir, vacas incomestíveis e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com o umbigo às costas e leões calvos e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer “homens degradados” do Novo Mundo como seus semelhantes. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e que os indígenas tinham perecido ao receber o sopro da Europa. [6]
     No século XVII, o padre Gregorio García sustentava que os índios eram de ascendência judaica porque, como os judeus, “são preguiçosos, não acreditam nos milagres de Jesus Cristo e não são agradecidos aos espanhóis por todo o bem que eles lhes fizeram”. Esse sacerdote ao menos não negava que os índios descendiam de Adão e Eva: eram numerosos os teólogos e pensadores que não tinham sido inteiramente convencidos pela Bula do papa Paulo III, expedida em 1537, que declarava os índios “verdadeiros homens”. O frei Bartolomé de Las Casas agitava a corte espanhola com suas denúncias da crueldade dos conquistadores da América: em 1557, um membro do conselho real lhe respondeu que os índios estavam muito abaixo na escala da humanidade para serem capazes de receber a fé [7]. Las Casas dedicou sua fervorosa vida à defesa dos índios ante os desmandos dos mineradores e dos “encomenderos”. Dizia que os índios preferiam ir para o inferno para não se encontrarem com os cristãos.
     Aos conquistadores e colonizadores eram “encomendados” indígenas para serem catequizados. Mas como os índios deviam ao “encomendero” serviços pessoais e tributos econômicos, não sobrava muito tempo para introduzi-los à senda cristã da salvação. Em recompensa de seus serviços, Hernán Cortez recebeu 23 mil vassalos; os índios eram repartidos ao mesmo tempo em que se outorgavam terras através de mercês reais ou eram obtidas por despojo. Desde 1536 os índios eram distribuídos por “encomienda”, junto com seus descendentes, até o final de duas vidas: a do “encomendero” e a de seu herdeiro imediato; a partir de 1629, o regime foi se estendendo na prática. Vendiam-se as terras com os índios dentro [8]. No século XVIII, os índios, os sobreviventes, asseguravam a vida cômoda de muitas gerações vindouras. Como os deuses vencidos persistiam em suas memórias, não faltavam santos álibis para o aproveitamento de sua mão de obra pelos vencedores: os índios eram pagãos, não mereciam outra vida. Tempos passados? Em setembro de 1957, 420 anos depois da Bula do papa Paulo III, a Suprema Corte de Justiça do Paraguai emitiu uma circular comunicando a todos os juízes do país que “os índios são tão seres humanos quanto os outros habitantes da república (...)”. E o Centro de Estudos Antropológicos da Universidade Católica de Assunção, mais tarde, realizou uma pesquisa reveladora na capital e no interior: de cada dez paraguaios, oito acreditam que “os índios são como animais”. Em Caaguazú, no alto Paraná e no Chaco, os índios são caçados como feras, vendidos a preços vis e explorados em regime de virtual escravidão. No entanto, quase todos os paraguaios têm sangue indígena, e o Paraguai não se cansa de compor canções, poemas e discursos em homenagem à “alma guarani”.

Primeira Parte: Ruínas de Potosí: O derramamento do sangue e das lágrimas[8]
__________________

[1] COLLIER, John. The indians of America. New York, 1947.
[2] RIBEIRO, op. cit., com dados de Henry F. Dobyns, Paul Thompson e outros.
[3] ROMERO, Emilio. Historia económica del Perú. Buenos Aires, 1949.
[4] FINOT, Enrique. Nueva historia de Bolivia. Buenos Aires, 1946.
[5] Obras citadas.
[6] GERBI, Antonello. La disputa del Nuevo Mundo. México, 1960; tb. VIDART, op. cit.
[7] HANKE, Lewis. Estudios sobre fray Bartolomé de Las Casas y sobre la lucha por la justicia en la conquista española de América. Caracas, 1968.
[8] OTS CAPDEQUÍ, op. cit.

Nenhum comentário:

Postar um comentário