quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Émile Zola - Germinal: Segunda Parte - (V.a) Na casa de Rasseneu

Germinal


Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Segunda Parte

V
 .

      Na casa de Rasseneur, depois de tomar uma sopa, Etienne voltou ao quarto estreito que ia ocupar no sótão, de frente para a Voreux, e caiu na cama completamente vestido, morto de cansaço. Durante dois dias não chegara a dormir quatro horas. Quando acordou, já anoitecia; ficou atordoado por alguns instantes, sem saber onde estava. Sentia tamanho mal estar, tal peso na cabeça, que a muito custo se pôs em pé, com a intenção de ir tomar ar antes de jantar e deitar-se de novo.
      Fora, não estava fazendo frio, o céu de fuligem tinha cintilações de cobre, grávido de uma dessas longas chuvadas que só caem no norte e cuja aproximação se fazia sentir na tepidez úmida do ar. A noite descia como um rolo de fumaça, engolfando os longínquos confins da planície. Sobre aquele mar imenso de terras avermelhadas, o céu baixo parecia fundir-se em poeira negra, sem um sopro de vento repentino que desse vida às trevas. Tudo isso era de uma tristeza confrangedora e baça como uma mortalha.
     Etienne começou a caminhar ao acaso, com o único fim de livrar-se daquele mal-estar. Ao passar pela Voreux já em sombras no fundo do seu buraco e com os lampiões ainda apagados, parou um momento para ver a saída dos operários que trabalhavam à tarde. Eram decerto seis horas; carregadores da expedição e cavalariços saíam em grupos, misturados com as moças da triagem, indistintas e risonhas no meio da escuridão.
     Os primeiros a sair foram a Queimada e o genro, Pierron; ela admoestava-o por não a ter apoiado numa altercação que tivera com um fiscal por causa de sua conta de pedras. 

— Que molengão! Deus meu, como é que pode? Um homem desse, e rebaixando-se assim na frente dos canalhas que querem destruir-nos.

      Pierron seguia-a tranquilamente, sem responder. Acabou dizendo: 

— Eu teria talvez de me atracar com o chefe. Muito obrigado! Não quero encrencas comigo. 
— Pois então estende o traseiro! — gritou ela. — Ah! inferno de vida! Se ao menos minha filha me tivesse escutado... Parece que não chega o marido que me mataram, queres talvez que eu vá agradecer-lhes, não é isso? Pois verás, pagarão por isso...

     As vozes foram ficando distantes e Etienne permaneceu olhando para a mulher que desaparecia com seu nariz adunco, seus cabelos brancos desgrenhados, seus longos braços que gesticulavam furiosamente. Atrás dele, porém, a conversa de dois rapazes fez que apurasse o ouvido. Reconheceu Zacharie, que estava à espera e que um amigo, o jovem Mouque, acabava de abordar.

— Como é, vens ou não vens? — perguntou este. — Comemos um pão com manteiga e vamos para o Volcan. 
— Logo; primeiro vou resolver um assunto. 
— O que é, hem?

      O carregador virou-se, percebeu Philomène que saía da triagem e julgou compreender. 

— Ah! é isso... Então eu vou na frente. 
— Vai, que logo te alcanço.

     Ao seguir pelo caminho, o carregador deu com o pai, o velho Mouque, que também estava saindo da Voreux; os dois homens cumprimentaram-se apenas, o filho tomou a estrada real e o pai enveredou pela margem do canal.
     Zacharie, tendo cortado o passo a Philomène, carregou-a para esse mesmo caminho desviado apesar da sua resistência. Estaria outra vez com pressa? E começaram a discutir como um casal já antigo. Não tinha nenhuma graça só se verem fora, sobretudo no inverno, quando a terra está molhada e não há trigais para servir de cama.

— Não, não é isso — murmurou ele impaciente. — Tenho que te dizer uma coisa...

     Segurou-a pela cintura, fazendo-a caminhar devagar. Assim que chegaram à sombra do aterro, ele perguntou-lhe se tinha dinheiro. 

— Para quê? — quis ela saber.

      Ele então atrapalhou-se, falou de uma dívida de dois francos que ia desesperar sua família. 

— Não me venhas com essa! Eu vi o filho do Mouque falando contigo, tu vais é para o Volcan farrear com aquelas cantoras nojentas.

     Ele jurou que não, bateu no peito, deu sua palavra de honra. Vendo que ela dava de ombros, disse num repente: 

— Pois vem com a gente, se isso te agrada. Não me atrapalhas em nada. Cantoras! Não é nada disso, bobinha... Vens? 
— E a criança? — perguntou ela. — Está sempre chorando, não posso dar um passo... Vou é para casa, aposto que a confusão é total por lá.

     Mas ele reteve-a e começou a suplicar. Então ia deixá-lo em má situação na frente do amigo ao qual havia prometido companhia? Um homem não podia dormir diariamente como as galinhas... Vencida, ela levantou uma ponta da sua bata, cortou a linha com a unha e tirou duas moedas de dez soldos de um canto da bainha. O receio de ser roubada pela mãe fazia com que escondesse ali o ganho das horas extras na mina. 

— Tenho cinco, estás vendo? Posso muito bem dar-te três... Mas tens que jurar que vais convencer tua mãe a casar-nos. Chega dessa vida irregular, não posso mais aguentar as reclamações de mamãe a cada pedaço de pão que ponho na boca. Jura, jura primeiro. Falava com a voz fraca de mulher doentia, sem paixão, exausta de viver. Ele jurou, disse que era coisa prometida, sagrada; depois, assim que se viu com as três moedas, beijou-a, fez-lhe carícias e graças, e tê-la-ia possuído ali mesmo, naquele recanto do aterro, que era o quarto de inverno da sua já antiga união, se ela não tivesse repetido que não, que desse jeito não teria nenhum prazer. E, assim, voltou para o conjunto habitacional sozinha, enquanto ele cortava através do campo para encontrar-se com o amigo.
  
     Etienne, maquinalmente, seguira-os de longe, sem compreender, pensando que era um simples encontro. As moças eram precoces nas minas... Lembrou-se então das operárias de Lille que costumava esperar atrás das fábricas, esses bandos de moças corrompidas desde os catorze anos, entregues à miséria de sua própria sorte. Pensava nisso, quando um outro encontro o surpreendeu ainda mais. Parou.
     Era no fundo do aterro, numa cova para onde tinham escorregado enormes pedras, que Jeanlin se instalara para maltratar Lydie e Bébert, que estavam sentados um à sua direita, outro à sua esquerda. 

— Hem? Qual é a queixa? Dou um bom tabefe em cada um se reclamarem... Quem é que teve a ideia? Vamos, digam!

     Na verdade, Jeanlin tivera a ideia. Depois de, durante uma hora, ter vagado pelos prados que ficam ao longo do canal, colhendo alfaces com os outros dois, decidiu, olhando para o molho de verdura, que em sua casa jamais comeriam tudo aquilo e, em vez de voltar para o conjunto habitacional, foi a Montsou levando Bébert para ficar de guarda e mandando Lydie bater nas portas dos burgueses oferecendo alfaces. Dizia ele — voz da experiência — que as meninas vendiam tudo o que quisessem. No ardor do negócio, todo o molho foi vendido e a garota apurara onze soldos. Agora repartiam o lucro. 

— Não é justo — declarou Bébert. — Temos que dividir por três. Se tu ficas com sete, nós ficamos só com dois cada um. 
— Não é justo por quê? — replicou Jeanlin furioso. — Para começar, colhi muito mais que vocês.

     O outro costumava submeter-se às decisões do amigo, com uma admiração amedrontada, uma credulidade que o transformava na eterna vítima. Apesar de mais velho e mais forte, deixava que Jeanlin até mesmo o esbofeteasse. Mas, desta vez, a visão de todo esse dinheiro o excitava à resistência. 

— Lydie, não é verdade que ele nos está roubando? Se não repartir por igual vamos dizer tudo à mãe dele.

     Num relance Jeanlin abateu o punho no nariz do outro. 

— Repete, repete! Eu é que vou dizer que vocês venderam a salada da mamãe... E depois, seu burro, como é que vou dividir onze soldos por três? Tenta só, espertinho. Aqui está: dois soldos para cada um. E peguem logo, senão vão voltar para meu bolso.

     Resignado, Bébert apanhou os dois soldos. Lydie, toda trêmula, nada dissera: diante de Jeanlin ela sentia uma mistura de medo e ternura de mulherzinha acostumada a levar pancada. Como ele lhe estendesse os dois soldos, ela espichou a mão com um sorriso submisso. Mas ele, repentinamente, mudou de ideia. 

— O que vais fazer com todo esse dinheiro? Não sabes como escondê-lo e a tua velha vai roubá-lo, com toda a certeza... É melhor que eu guarde para ti. Quando precisares dele é só pedir.

     E os nove soldos sumiram. Para que não pudesse reclamar, abraçou a rindo e rolou com ela pelo aterro. Era a sua mulherzinha, tentavam juntos, nos cantos escuros, praticar o amor que ouviam e viam em suas casas, por trás dos tabiques, pelas fendas das portas. Sabiam tudo, mas ainda não conseguiam fazer nada por serem muito jovens; apenas se apalpavam, brincavam durante horas como cãezinhos viciados. Ele chamava a isso "brincar de papai e mamãe", e quando queria bastava chamá-la, ela vinha correndo, deixava-se agarrar com o estremecimento delicioso do instinto, algumas vezes amuada, mas cedendo sempre, ansiando por algo que não chegava a acontecer.

continua na página 107...
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Segunda Parte - (V.a) Na casa de Rasseneu
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

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