PRIMEIRA PARTE
Febre do ouro, febre da prata
4. Esplendores de Potosí: O Ciclo da Prata
Dizem que no apogeu da cidade de Potosí [1] até as ferraduras dos cavalos eram de prata. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram desempedradas, da matriz à igreja de Recoletos, e totalmente cobertas de barras de prata. Em Potosí, a prata ergueu templos e palácios, mosteiros e cassinos, deu motivo a tragédias e festas, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e desencadeou o esbanjamento e a aventura. A espada e a cruz marchavam juntas na conquista e no butim colonial. Para arrebatar a prata da América, marcaram encontro em Potosí os capitães e os ascetas, os toureiros e os apóstolos, os soldados e os frades. Convertidas em pinhas e lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram, substancialmente, o desenvolvimento da Europa. “Vale um Peru” era o maior elogio que se podia fazer às pessoas ou às coisas depois que Pizarro se tornou dono de Cuzco. Mas a partir do descobrimento da montanha, Dom Quixote de la Mancha adverte Sancho com outras palavras: “Vale um Potosí”. Veia jugular do vice-reinado, manancial de prata da América, Potosí possuía 120 mil habitantes segundo o censo de 1573. Apenas 28 anos tinham transcorrido desde que a cidade brotara entre os páramos andinos e já contava, como por artes de magia, com a mesma população de Londres e mais habitantes do que Sevilha, Madri, Roma ou Paris. Por volta de 1650, um novo censo adjudicava a Potosí 160 mil habitantes. Era uma das maiores e mais ricas cidades do mundo, dez vezes mais populosa do que Boston, num tempo em que Nova York nem sequer começara a ser chamada assim.
A história de Potosí não nascera com os espanhóis.
Tempos antes da conquista, o inca Huayna Cápac tinha
ouvido seus vassalos falarem no Sumaj Orcko, a montanha
formosa, e por fim pôde vê-la quando fez com que o
levassem, já enfermo, às termas de Tarapaya. Das choças
de palha do povoado de Cantumarca, os olhos do inca
contemplaram pela primeira vez aquele cone perfeito que
se alçava, orgulhoso, entre os altos cumes da cordilheira.
Ficou estupefato. As infinitas tonalidades avermelhadas, a
forma esbelta e as gigantescas dimensões da montanha
continuaram sendo motivo de admiração e assombro nos
anos seguintes, mas o inca suspeitara de que em suas
entranhas ela devia abrigar pedras preciosas e ricos metais,
e lhe ocorreu acrescentar novos adornos ao Templo do Sol,
em Cuzco. O ouro e a prata que os incas tiravam das minas
de Colque Porco e Andacaba não saíam dos limites do reino:
não serviam para negociar, apenas para adorar os deuses.
Tão logo os primeiros indígenas começaram a escavar nos
filões de prata da montanha formosa, uma voz cavernosa os
derrubou. Era uma voz forte como o trovão, que saía das
profundezas daquele esconso e dizia, em quíchua: “Não é
para vocês; Deus reserva essas riquezas para os que vêm
de longe”. Os índios fugiram, espavoridos, e o inca
abandonou a montanha. Antes, mudou seu nome. A
montanha passou a chamar-se Potojsí, que significa:
“Troveja, rebenta e explode”.
“Os que vêm de longe” não demoraram a aparecer.
Abriam caminho os capitães da conquista. Huayna Cápac já
não vivia quando chegaram. Em 1545, o índio Huallpa
seguia as pegadas de uma lhama fugida e foi obrigado a
passar a noite na montanha. Para não morrer de frio, fez
fogo. A fogueira iluminou uma pedra branca e brilhante. Era
prata pura. Precipitou-se a avalanche espanhola.
Fluiu a riqueza. O imperador Carlos V deu imediatos
sinais de gratidão, outorgando a Potosí o título de Vila
Imperial e um escudo de armas com esta inscrição: “Sou o
rico Potosí, do mundo sou o tesouro, sou o rei das
montanhas e a inveja dos reis”. Apenas onze anos depois do
achado de Huallpa, já a recém-nascida Vila Imperial
celebrava a coroação de Felipe II com festas que duraram
24 dias e custaram 8 milhões de pesos fortes. Choviam os
caçadores de tesouros na inóspita paisagem. A montanha,
com quase 5 mil metros de altura, era o mais poderoso ímã,
mas a seus pés a vida era dura, inclemente: pagava-se o
frio como se um imposto fosse, e num abrir e fechar de
olhos uma sociedade rica e desordenada brotou em Potosí
junto com a prata. Auge e turbulência do metal: Potosí
passou a ser o “nervo principal do reino”, na definição do
vice-rei Furtado de Mendonça. No começo do século XVII, a
cidade já contava com 36 igrejas esplendidamente
ornamentadas, outros tantos cassinos e quatorze escolas de
dança. Os salões, os teatros e os tablados para festas
exibiam riquíssimos tapetes, cortinados, brasões e obras de
ourivesaria; das sacadas das casas pendiam damascos
coloridos e panos entrelaçados de ouro e prata. As sedas e
outros tecidos vinham de Granada, Flandres e Calábria; os
chapéus, de Paris e Londres; os diamantes, do Ceilão; as
pedras preciosas, da Índia; as pérolas, do Panamá; as meias,
de Nápoles; os cristais, de Veneza; as alcatifas, da Pérsia; os
perfumes, da Arábia, e a porcelana, da China. As damas
brilhavam com suas pedrarias, diamantes, rubis, pérolas, e
os cavalheiros ostentavam tecidos bordados da Holanda. Às
touradas seguiam-se jogos de adivinhação e nunca faltavam
duelos de estilo medieval, disputas de amor e orgulho, os
elmos de ferro incrustados de esmeraldas e vistosas
plumas, selas e estribos com filigranas de ouro, espadas de
Toledo e potros chilenos luxuosamente ajaezados.
Em 1579, queixava-se o ouvidor Matienzo: “Nunca
faltam novidades, sem-vergonhices e atrevimentos”. Nessa
época, já havia em Potosí 800 jogadores profissionais e 120
prostitutas célebres, cujos resplandecentes salões eram
frequentados por mineiros ricos. Em 1609, as festas do
Santíssimo Sacramento foram celebradas com seis dias de
comédias e seis noites de máscaras, oito dias de touradas e
três de saraus, dois de torneios e outras comemorações.
continua na página...43
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Primeira Parte: Esplendores de Potosí: O Ciclo da Prata[4]
_______________[1] Para a reconstituição do apogeu de Potosí, o autor consultou os seguintes
testemunhos do passado: CAÑETE Y DOMÍNGUEZ, Pedro Vicente. Potosí colonial:
guía histórica, geográfica, política, civil y legal del gobierno e intendencia de la
provincia de Potosí. La Paz, 1939; CAPOCHE, Luis. Relación general de la Villa
Imperial de Potosí. Madrid, 1959; MARTÍNEZ ARZANZ Y VELA, Nicolás de. Historia
de la Villa Imperial de Potosí. Buenos Aires, 1953; também QUESADA, Vicente G.
Crónicas potosinas. Paris, 1890, e MOLINS, Jaime. La ciudad única. Potosí, 1961.
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