terça-feira, 28 de outubro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção V (1)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção V

SOLUÇÃO CÉTICA DESTAS DÚVIDAS 
PRIMEIRA PARTE 

     Tanto a paixão filosófica como a paixão religiosa parecem expostas — embora procurem extirpar nossos vícios e corrigir nossos hábitos — ao inconveniente, quando manejadas com imprudência, de servirem apenas para encorajar uma inclinação predominante e conduzir o espírito resolutamente na direção que previamente mais o atraia, devido às tendências e inclinações do temperamento natural. Certamente, enquanto aspiramos à magnânima firmeza do saber filosófico e tentamos encerrar nossos prazeres nos limites de nosso próprio espírito, podemos, finalmente, tornar nossa filosofia, como aquela de Epicteto e outros estoicos, num sistema mais refinado de egoísmo e persuadir-nos racionalmente de nos desligar de toda virtude como também de todos os prazeres sociais. Enquanto refletimos a propósito da vaidade da vida humana e pensamos na natureza fútil e transitória das riquezas e das honras, estamos, talvez, durante todo este tempo, lisonjeando nossa indolência natural que, por aversão à azáfama do mundo e à fadiga dos negócios, procura um pretexto racional para entregar-se completa e livremente à preguiça. Há, contudo, uma corrente filosófica que parece menos exposta a este inconveniente, pois ela não se liga a nenhuma paixão desordenada do espírito e nem se alia a qualquer tendência ou propensão natural: é a filosofia acadêmica ou cética. Os acadêmicos falam sempre da dúvida e da suspensão do juízo, do risco das resoluções apressadas, em confinar as investigações do entendimento a estreitos limites e em renunciar a todas as especulações que transbordam as fronteiras da vida e da prática cotidianas. Nada, por conseguinte, pode ser mais contrário a tal filosofia do que a indolente letargia do espírito, sua atrevida arrogância, suas elevadas pretensões e sua credulidade supersticiosa. Toda paixão é mortificada por ela, exceto o amor à verdade; e esta paixão não é jamais, nem pode ser, elevada a um grau demasiado alto. E surpreendente, todavia, que esta filosofia, que em quase todos os aspectos deve ser inofensiva e inocente, seja o objeto de tantas acusações e de tantas censuras infundadas. Mas, talvez, a própria circunstância que a torna tão inocente seja justamente o que a expõe ao ódio e ao ressentimento públicos. Porque ela não adula nenhuma paixão desordenada, não obtém muitos adeptos; porque ela se opõe a tantos vícios e tantas tolices, levanta contra si um grande número de adversários, que a estigmatizam como profana, libertina e irreligiosa.
     Não temos necessidade de recear que esta filosofia, enquanto trata de limitar nossas investigações à vida diária, solape os raciocínios da vida diária e estenda suas dúvidas até o ponto de destruir toda ação como também toda especulação. A natureza manterá eternamente seus direitos e prevalecerá sobre todos os raciocínios abstratos.[1] Embora devêssemos concluir, a exemplo da seção anterior, que em todos os raciocínios derivados da experiência o espírito avança sem apoiar-se em argumentos ou processo do entendimento, não há perigo que estes raciocínios, dos quais depende quase todo conhecimento, sejam afetados por tal descoberta. Se o espírito não é levado a dar este passo por um argumento, deve ser persuadido por outro princípio de igual peso e autoridade; e este princípio manterá sua influência contanto que a natureza humana permaneça invariável. Vale a pena investigar qual é a natureza deste princípio.  
     Supondo que um homem, dotado das mais poderosas faculdades racionais, seja repentinamente transportado para este mundo; certamente, notaria de imediato a existência de uma contínua sucessão de objetos e um evento acompanhado por outro, mas seria incapaz de descobrir algo a mais. De início, não seria capaz, mediante nenhum raciocínio, de chegar à ideia de causa e efeito, visto que os poderes particulares que realizam todas as operações naturais jamais se revelam aos sentidos; nem é razoável concluir, apenas porque um evento em determinado caso precede outro, que um é a causa e o outro, o efeito. Esta conjunção pode ser arbitrária e acidental. Não há base racional para inferir a existência de um pelo aparecimento do outro. E, numa palavra, aquele homem, desprovido de experiência, jamais poderia conjeturar ou raciocinar sobre qualquer questão de fato, nem teria segurança de algo que não estivesse imediatamente presente à sua memória ou aos seus sentidos.
     Supondo de novo que o mesmo homem tenha adquirido mais experiência e que tenha vivido o suficiente no mundo para observar que os objetos ou eventos familiares estão constantemente ligados; qual é a consequência desta experiência? Imediatamente infere a existência de um objeto pelo aparecimento do outro. Entretanto, não adquiriu, com toda a sua experiência, nenhuma ideia ou conhecimento do poder oculto, mediante o qual um dos objetos produziu o outro; e não será um processo do raciocínio que o obriga a tirar esta inferência. Mas ele se encontra determinado a tirá-la; e mesmo se ele fosse persuadido de que seu entendimento não participa da operação, continuaria pensando o mesmo, porquanto há um outro princípio que o determina a tirar semelhante conclusão.
     Este princípio é o costume ou o hábito. Visto que todas as vezes que a repetição de um ato ou de uma determinada operação produz uma propensão a renovar o mesmo ato ou a mesma operação, sem ser impelida por nenhum raciocínio ou processo do entendimento, dizemos sempre que esta propensão é o efeito do costume. Utilizando este termo, não supomos ter dado a razão última de tal propensão. Indicamos apenas um principio da natureza humana, que é universalmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos. Talvez não possamos levar nossas investigações mais longe e nem aspiramos dar a causa desta causa; porém, devemos contentar-nos com que o costume é o último princípio que podemos assinalar em todas as nossas conclusões derivadas da experiência. Já é, contudo, satisfação suficiente poder chegar até aqui sem irritar-nos com nossas estreitas faculdades, estreitas porque não nos levam mais adiante. Certamente, temos aqui ao menos uma proposição bem inteligível, senão uma verdade, quando afirmamos que, depois da conjunção constante de dois objetos, por exemplo, calor e chama, peso e solidez, unicamente o costume nos determina a esperar um devido ao aparecimento do outro. Parece que esta hipótese é a única que explica a dificuldade que temos de, em mil casos, tirar uma conclusão que não somos capazes de tirar de um só caso, que não discrepa em nenhum aspecto dos outros. A razão não é capaz de semelhante variação. As conclusões tiradas por ela, ao considerar um círculo, são as mesmas que formaria examinando todos os círculos do universo. Mas ninguém, tendo visto somente um corpo se mover depois de ter sido impulsionado por outro, poderia inferir que todos os demais corpos se moveriam depois de receberem impulso igual. Portanto, todas as inferências tiradas da experiência são efeitos do costume e não do raciocínio.[2]
     O costume é, pois, o grande guia da vida humana. E o único princípio que torna útil nossa experiência e nos faz esperar, no futuro, uma série de eventos semelhantes àqueles que apareceram no passado. Sem a influência do costume, ignoraríamos completamente toda questão de fato que está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos. Nunca poderíamos saber como ajustar os meios em função dos fins, nem como empregar nossas faculdades naturais para a produção de um efeito. Seria, ao mesmo tempo, o fim de toda ação como também de quase toda especulação.[3]
     Mas aqui deve ser conveniente notar que, embora nossas conclusões derivadas da experiência nos levem além de nossa memória e de nossos sentidos e nos assegurem da realidade de fatos que ocorreram em lugares mais distantes e em épocas remotas, é necessário que um fato esteja sempre presente aos sentidos e à memória, do qual podemos de início partir para tirar essas conclusões. Se um homem encontrasse num país deserto os remanescentes de edifícios suntuosos, concluiria que o país, em tempos remotos, tinha sido cultivado por habitantes civilizados; mas, se nada desta natureza lhe ocorresse, ja mais poderia chegar a semelhante inferência. Pela história, conhecemos os eventos de épocas passadas; todavia, devemos prosseguir consultando os livros que contêm estes ensinamentos e, a partir daí, remontar nossas inferências de um testemunho a outro até chegar às testemunhas oculares e aos espectadores desses eventos remotos. Numa palavra, se não partirmos de um fato presente à memória ou aos sentidos, nossos raciocínios serão puramente hipotéticos; e seja qual for o modo como estes elos particulares estejam ligados entre si, toda a cadeia de inferência não teria nada que lhe servisse de apoio e jamais por meio dela poderíamos chegar ao conhecimento de uma existência real. Se vos perguntasse por que acreditais em determinado fato que relatais, deveis indicar-me alguma razão; e esta razão será um outro fato em conexão com o primeiro. Entretanto, como não podeis proceder desta maneira in infinitum, deveis finalmente terminar por um fato presente a vossa memória ou aos vossos sentidos, ou deveis admitir que vossa crença é inteiramente sem fundamento.
     Qual é, portanto, a conclusão de toda a questão? É simples; no entanto, deve-se confessar que ela se acha muito distante das teorias filosóficas correntes. Toda crença, em matéria de fato e de existência real, procede unicamente de um objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto. Ou, em outras palavras, como o espírito tem encontrado em numerosos casos que dois gêneros quaisquer de objetos — a chama e o calor, a neve e o frio — sempre têm estado em conjunção, se, de novo, a chama ou a neve se apresentassem aos sentidos, o espírito é levado pelo costume a esperar calor ou frio, e a acreditar que esta qualidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima de nós.[4] Esta crença é o resultado necessário de colocar o espírito em determinadas circunstâncias. E uma operação da alma tão inevitável como quando nos encontramos em determinada situação para sentir a paixão do amor quando recebemos benefícios; ou a de ódio quando nos defrontamos com injustiças. Todas estas operações são uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio ou processo do pensamento e do entendimento é capaz de produzir ou de impedir.[5]
     A esta altura, poderíamos perfeitamente terminar nossas pesquisas filosóficas. Na maioria dos problemas jamais poderíamos adiantar um único passo; e em todas as questões deveríamos terminar aqui, depois das mais incessantes e curiosas investigações. Mas ainda nossa curiosidade será perdoável, talvez digna de elogio, se nos levar a investigações mais avançadas e nos fizer examinar com maior exatidão a natureza desta crença e desta conjunção costumeira, isto é, de onde ela procede. Por este meio podemos encontrar explicações e analogias que satisfarão, ao menos, àqueles que amam as ciências abstratas e se contentam com especulações que, por mais rigorosas que sejam, ainda podem conservar certo grau de dúvida e de incerteza. Quanto aos leitores de gosto diverso, o resto desta seção não lhes é destinada, e, se eles não a lerem, ainda assim podem compreender perfeitamente as investigações posteriores.

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Notas:
[1] A filosofia académica ou cética designa a forma de filosofia da última Academia, que floresceu a partir do século IV a.C. Hume a distingue do ceticismo pirrônico (veja-se seção XII), que é extremo e, segundo ele, um tipo de dogmatismo negativista, pois, embora todos os argumentos racionais se mostrem defeituosos e inconclusos, o homem deve decidir e tomar posição na vida prática. Os escritos filosóficos de Cícero, profundamente marcados por esse tipo de ensino, exerceram considerável influência na educação da maioria dos filósofos modernos, especialmente de Locke, Berkeley e Hume. (Veja-se de Hume, An Inquiry concerning Hurnan Understanding, ed. Hendel, Liberal Arts, 1955, p. 54, nota 1) [N. do T.]
[2] Nada é mais útil aos escritores, mesmo os que escrevem a respeito de temas morais, políticos ou físicos, do que distinguir entre a razão e a experiência e supor que estas classes de argumentação são inteiramente diferentes entre si. As primeiras são consideradas meros resultados de nossas faculdades intelectuais, as quais, ao considerarem a priori a natureza das coisas e examinarem os efeitos, que devem resultar de sua operação, estabelecem princípios particulares à ciência e à filosofia. As últimas são supostas derivar inteiramente dos sentidos e da observação, por meio dos quais sabemos o que é que resultou de fato da operação de objetos particulares e assim somos capazes de inferir o que resultará deles no futuro. Assim, por exemplo, as limitações e restrições do governo civil e de sua constituição legal podem ser defendidas tanto mediante a razão, que refletindo sobre a debilidade e corrupção da natureza humana nos ensina que a nenhum homem se pode confiar uma autoridade ilimitada, como mediante a experiência e a história, que nos informam dos enormes abusos que a ambição tem cometido em toda época e país, devido a uma confiança tão imprudente.
A mesma distinção entre razãoo e experiência se verifica em todas as nossas deliberações acerca da conduta na vida. Deste modo, o estadista, o general, o médico e o mercador experientes são seguidos e inspiram confiança, enquanto o novato inexperiente é, por mais bem-dotado de talentos naturais, desprezado e desconsiderado. Embora se admita que a razão pode formular conjeturas mais plausíveis sobre determinada conduta em determinadas condições, supõe-se, todavia, que ela é imperfeita sem o auxilio da experiência, pois esta é a única via capaz de conferir estabilidade e certeza às máximas deduzidas mediante estudo e reflexão.
Apesar da aceitação universal desta distinção, tanto nas etapas da vida ativa como especulativa, não terei escrúpulos em afirmar que é uma atitude errônea ou, ao menos, superficial. 
Se examinarmos os argumentos em uma das ciências acima mencionadas e supormos que eles são meros efeitos do raciocínio e da reflexão, verificaremos que terminam pelo menos em alguma conclusão ou princípio geral, aos quais não podemos alegar outra razão a não ser a observação e a experiência . A única diferença entre as máximas racionais e experimentais (estas vulgarmente consideradas resultantes da mera experiência) consiste em que as primeiras não podem ser estabelecidas sem algum processo do pensamento e alguma reflexão sobre o que foi observado, a fim de distinguir suas circunstâncias e traçar suas consequências; nas máximas experimentais, o evento experienciado é exata e completamente similar ao que inferimos como resultado de uma situação particular qualquer. A história de um Nero ou de um Tibério nos levaria a temer semelhante tirania se nossos monarcas estivessem livres das restrições do Senado e da Lei. Mas a constatação de qualquer fraude ou crueldade na vida privada é suficiente, com o auxilio de alguma experiência, para alertar-nos do mesmo temor, porque serve de exemplo da corrupção geral da natureza humana e nos mostra o perigo que poderíamos correr se depositássemos inteira confiança na humanidade. Nos dois casos a experiência é, em última análise, o fundamento de nossa inferência e conclusão. 
Não há homem tão jovem e inexperiente que não tenha formado muitos e corretos princípios sobre os assuntos humanos e a conduta na vida. Mas é preciso admitir que, quando um homem procura exercê-los, está mais propenso a errar, até que o tempo e experiências ulteriores lhe ampliem estes princípios e lhe ensinem seu uso adequado e aplicação. Em toda situação ou incidente há várias circunstâncias particulares, aparentemente sem importância, que o homem mais bem-dotado está inclinado a princípio a desdenhar, embora dependam delas a exatidão de suas conclusões e, por conseguinte, a prudência de sua conduta. Sem mencionar que, para um jovem principiante, os princípios e as operações gerais nem sempre se manifestam em ocasiões adequadas e nem podem ser imediatamente aplicados com a devida calma e distinção. A verdade é que um homem que raciocina sem experiência não poderia raciocinar se olvidasse inteiramente a experiência; quando designamos alguém com esta característica, fazemo-lo somente em sentido comparativo e supomos que possui experiência em grau mais ou menos imperfeito (Hume).   
[3] Em outra passagem desta Investigação, Hume manifesta a esperança de que ‘a filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada pela atenção do público, possa levar suas indagações ainda mais longe (isto é, da geografia mental) e descubra, pelo menos em parte, as fontes e os princípios secretos que impulsionam o espírito humano em suas operações (seção I, p. 68). A descoberta da função indispensável do costume em todo conhecimento da experiência pode ser, talvez, classificada como o avanço mais significativo naquela direção. (Veja-se Flew, ob. cit., p. 77.) [N. do T.]
[4] O costume é, portanto, o fator que nos faculta a antecipar que o futuro será semelhante ao passado e nos leva a inferir de uma causa presente um efeito ausente. O costume compreende também mais alguma coisa. As ideias introduzidas por ele são inferências’ e não meras sugestões. A experiência que temos da conjunção constante’ entre, por exemplo, chama e calor, ou neve e frio, determina-nos, quando revemos a chama ou a neve, pelo “costume a esperar calor ou frio, e a acreditar que esta realidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais próxima de nós”. Revela-se, assim, como o costume envolve e condiciona a crença. [N. do T.]
[5] Hume escreve no Tratado que a “crença é mais propriamente um ato sensitivo do que um aspecto cogitativo de nossa natureza” (1, iV, 1, p. 183). [N. do T.]

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