volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Diante da porta, severamente guardada por elas, ele topou com as duas damas de bengala que não tinham receado descer de suas alturas a fim de evitar um escândalo.
- Basin, fizemos questão de preveni-lo, por medo de que seja visto nesse baile: o pobre
Amanien acaba de morrer faz uma hora. -
O duque teve um instante de alarme. Via a famosa festa evaporar-se para ele desde o
momento em que, devido àquelas malditas montanhesas, era advertido da morte do Sr.
d'Osmond. Mas recuperou-se rápido e atirou às duas primas esta frase em que expressava, com
a determinação de não renunciar a um prazer, a sua incapacidade de assimilar exatamente os
volteios da língua francesa:
- Está morto! Mas não, estão exagerando, exagerando! -
E sem mais se ocupar das duas parentas que, munidas de seus alpenstocks, iam fazer a
escalada dentro da noite, ele se precipitou em busca de notícias, interrogando o seu criado de
quarto:
- Meu capacete já chegou?
- Sim, senhor duque.
- Tem um buraco por onde se possa respirar? Não tenho vontade de ficar asfixiado, que
diabo!
- Sim, senhor duque.
- Ah, maldição! Esta é uma noite de desgraças! Oriane, esqueci de perguntar a Babal se os
sapatos de polainas eram para você!
- Mas meu querido, já que o roupeiro da ópera Cômica está aí, ele nos dirá. Por mim, não
creio que possa combinar com suas esporas.
- Vamos procurar o roupeiro - disse o duque. - Adeus, meu rapaz; gostaria de convidá-lo
para entrar conosco, enquanto experimentamos as fantasias, para diverti-lo. Mas ficaríamos
conversando, já vai dar meia-noite e é preciso que não cheguemos atrasados para que a festa
seja completa.
Eu também tinha pressa de deixar o Sr. e a Sra. de Guermantes o mais rápido possível.
Fedra terminava cerca das onze e meia. Pelo tempo decorrido, Albertine já devia ter chegado. Fui
direto a Françoise:
- A Srta. Albertine está aí?
- Ninguém chegou.
Meu Deus, isto queria dizer que ninguém viria? Sentia-me atormentado, a visita de
Albertine parecia-me agora tanto mais desejável, por ser menos certa. Françoise também estava
aborrecida, mas por um motivo inteiramente diverso. Acabava de instalar sua filha à mesa para
uma refeição suculenta. Mas, ao ouvir-me chegar, vendo que lhe faltava tempo para tirar os pratos
e preparar as agulhas e a linha, como se se tratasse de uma costura e não de uma ceia, disse
me:
- Ela acaba de tomar umas colheradas de sopa; obriguei-a a chupar uns frutos - para
reduzir assim a quase nada a refeição da filha, e como se fosse culposa a abundância. Mesmo no
almoço ou no jantar, se eu cometesse a falta de entrar na cozinha, Françoise fingia que tinham
terminado e até desculpava dizendo:
"Eu tinha querido comer um pedaço", ou "umboca '' - Mas a gente logo se tranquilizava ao
ver a multidão de pratos que, enchiam a mesa e que Françoise, surpreendida pela minha súbita
entrada; como um malfeitor que ela não era, não tivera tempo de fazer desaparecer. Depois,
acrescentou:
- Vamos, vai te deitar, já trabalhaste demasiado - (pois queria que a filha desse a
impressão não só de não nos custar - de viver de privações, mas também de se matar de trabalho
por nossa causa). - Não fazes mais que atravancar a cozinha e sobretudo incomoda o patrão que
espera a visita. Vamos, sobe - prosseguiu, como se fosse obrigada a usar de autoridade para
mandar a filha dormir, a qual, uma vez que estava gorada a ceia, estava ali por estar, e que, se eu
tivesse permanecido ali mais cinco minutos, teria saído por si mesma. E voltando-se para com o
belo francês popular e no entanto meio individual, que era o seu:
- Pois não vê o patrão que a vontade de dormir lhe desfaz a cara? -
Eu ficara encantado por não ter de conversar com a filha de Françoise. Já disse que ela
era de uma região bem próxima da de sua prima; no entanto, bem diferente pela natureza do
terreno, das culturas, do dia-a-dia; principalmente por certas particularidades dos habitantes.
Assim, a "açougueira" e a sobrinha de Françoise não se davam nada bem, mas tinham algo em
comum: quando saíam a recado, demoravam-se horas "na casa da marquês” ou "na casa da
prima", sendo incapazes de terminar uma conversação, em cujo transcorrer se dissipava o motivo
que as havia feito sair, de tal modo que se lhes perguntavam, ao regressarem:
- E então, o Sr. marquês de Norpois estará visível às seis e quinze? - elas nem mesmo
batiam na testa dizendo:
- Ah, esqueci mas: - Ah, não entendi que o patrão tinha perguntado isso, pensei que era só
para cumprimentar o senhor marquês" - Se elas "perdiam a cabeça" desse jeito quanto a uma
coisa dita uma hora antes, em compensação era impossível tirar-lhes da cabeça o que tinha
ouvido a irmã ou a prima dizerem uma vez. Assim, se a "açougueira" ouvira dizer que os ingleses
nos tinham feito a guerra em 1870 ao mesmo tempo que os prussianos (e por mais que eu lhe
explicasse que aquilo era sonho), a cada três semanas me repetia no decurso de uma conversa:
- E por causa dessa guerra que os ingleses nos fizeram em 1870, ao mesmo tempo que os
prussianos.
- Mas eu já lhe disse cem vezes que você está enganada. -
Ela respondia, o que deixava claro que nada abalava a sua convicção:
- Em todo caso, não é motivo para lhes querer mal. Desde 1870, muita ocorreu debaixo
das pontes, etc. -
Uma outra vez, pregando uma guerra contra a Inglaterra, que eu desaprovava, dizia:
- Decerto, sempre é melhor não haver guerra. Mas, visto que é necessário, é preferível
começar logo. Como explicava a mana há pouco, desde essa guerra que os ingleses nos fizeram
em 1870, os tratados comerciais nos arruínam. Depois de os termos derrotado, não se deixará
mais entrar na França um só inglês sem pagar trezentos francos de entrada, como nós fazemos
agora para ir à Inglaterra.
Tal era, além de grande honestidade e, quando falavam, de uma surda obstinação em não
se deixarem interromper, em recomeçarem vinte vezes do ponto em que por acaso eram
interrompidas, o que acabava por dar às suas frases a solidez inabalável de uma fuga de Bach, o
caráter dos habitantes daquela terrinha, que não contava mais de quinhentos, orlada de
castanheiros, salgueiros, campos de batatas e de beterrabas. Ao contrário, a filha de Françoise
falava, julgando-se uma mulher moderna e fora dos caminhos muito batidos, a gíria parisiense e
não perdia nenhum dos gracejos adjuntos. Tendo-lhe dito Françoise que eu chegava da casa de
uma princesa:
- Ah, sem dúvida uma princesa de fancaria. -
Vendo que eu esperava uma visita, fingiu julgar que me chamava Charles. Respondi-lhe
ingenuamente que não, o que lhe permitiu encaixar:
- Ah, era o que eu pensava!
“E dizia comigo Charles attend (charlatan).
"
[Trocadilho muito conhecido, seriam as pretensas palavras que teria pronunciado o rei Luís XVIII,
agonizante, a seus médicos: - Allons, linissons-en, Charles attend ("Vamos, acabemos com isso,
Carlos espera"), aludindo à inépcia dos médicos (charlatans) e à pressa de Carlos X em subir ao
trono (Charles attend). (N. do T)]
Não era de muito bom gosto. Mas fiquei menos indiferente quando, como consolo pelo
atraso de Albertine, ela me disse:
- Acho que o senhor pode esperá-la sentado. Ela não vem mais. Ah, as nossas gigoletes
de hoje!
Assim, o seu linguajar diferia do da mãe; mas o que é mais curioso, a fala de sua mãe
diferia da de sua avó, natural de Bailleau-le-Pin, que era bem próximo da região de Françoise. No
entanto, os dialetos diferiam ligeiramente como as duas paisagens. A região da mãe de Françoise,
em declive e descendo para um barranco, era povoada de salgueiros. E, muito longe dali, pelo
contrário, havia na França uma pequena região onde se falava quase exatamente o mesmo
dialeto que em Méséglise. Fiz essa descoberta ao mesmo tempo que aquilo me aborreceu. Com
efeito, certa vez achei Françoise em animada conversa com uma camareira da casa, que era
dessa região e falava aquele dialeto. Elas quase se compreendiam, eu não as compreendia
absolutamente, elas o sabiam, e nem por isso deixavam de conversar, com a desculpa,
acreditavam, da alegria de serem conterrâneas; embora nascidas tão longe uma da outra, diante
de mim naquela língua estranha, como quando não se deseja ser compreendido. Esses pitorescos
estudos de geografia linguística e de camaradagem, prossegui todas as semanas na cozinha, sem
que eu sentisse nenhum prazer naquilo. Como, de cada vez que se abria o portão principal, o
porteiro apertava um botão elétrico que iluminava a escada, e como todos os locatários já
estivessem em casa, deixei imediatamente a cozinha e voltei a sentar na antecâmara para espiar,
ali onde a cortina um pouco estreita, que não cobria inteiramente a porta envidraçada de nosso
apartamento, deixei passar a sombria raia vertical formada pela semiobscuridade da escada;
para que de repente, essa raia se tornasse de um amarelo dourado, é que Albertine acabara de
entrar embaixo e em dois minutos estaria junto de mim; nenhuma outra pessoa podia chegar
àquela hora. E eu permanecia, sem poder desviar os olhos da raia que se obstinava em continuar
sombria; debruçava-me todo para estar certo de ver bem; porém, por mais que olhasse o negro
traço vertical, apesar de meu desejo apaixonado, não me concedia contentamento embriagador
que eu teria tido se o visse mudar-se, por súbito encantamento significativo, numa luminosa barra
de ouro. Era inquietação demais por causa dessa Albertine, em quem não havia pensado sequer
três minutos durante o sarau Guermantes! Porém, despertando os sentimentos de espera que
outrora experimentara a respeito de outras moças principalmente Gilberte, quando ela demorava a
chegar, a possível privação de um simples prazer físico causava-me um cruel sofrimento moral.
Tive de voltar para o quarto. Françoise me seguiu. Como eu estivesse de volta da
recepção, ela achava inútil que eu guardasse a rosa de botoeira, e veio tirá-la. Seu gesto,
fazendo-me lembrar que Albertine podia não vir mais e obrigando-me também a confessar que
desejava estar elegante para ela, provocou-me uma irritação que foi duplicada pelo fato que havia
machucado a flor enquanto me desprendia violentamente. Palavras de Françoise:
- Seria melhor deixar que a tirasse em vez de estragá-la desse jeito. -
Aliás, suas menores palavras me exasperavam. Enquanto a gente espera, sofre tanto com
a ausência de quem está lembrando que não pode suportar a presença de outra pessoa.
Depois que Françoise saiu do quarto, pensei que, se chegara a essa coqueteria em
relação a Albertine, era uma pena que tivesse mostrado tantas vezes a ela tão mal barbeado, com
uma barba de muitos dias, nas noites em que a deixava vir para recomeçar nossas carícias.
Sentia que, despreocupada de mim, ela me deixava sozinho. Para embelezar pouco o meu
quarto, caso Albertine ainda viesse, e porque era uma das coisas mais belas que eu possuía,
voltei a colocar pela primeira vez em muitos anos, sobre a mesa que ficava junto da cama, aquele
porta-papéis ornado de turquesas que Gilberte me encomendara para envolver a plaquete de
Bergotte e que, durante tanto tempo, quisera eu guardar comigo enquanto dormia, ao lado da
bolinha de ágata. Além disso, talvez tanto como Albertine, ainda não chegada, sua presença
naquele momento em um "alhures" que ela evidentemente achara mais agradável e que eu não
conhecia causava-me um sentimento doloroso que, apesar do que eu dissera há uma hora
apenas a Swann, acerca da minha incapacidade de sentir ciúmes, teria se transformado, se visse
a minha amiga a intervalos menos longos, numa ansiosa necessidade de saber onde e com quem
ela passava o tempo. Não me animava a mandar um recado à casa de Albertine, era muito tarde,
mas, na esperança de que, ceando talvez com amigas num café, ela tivesse a ideia de me
telefonar, torci o interruptor e, restabelecendo a comunicação no meu quarto, cortei-a entre a
central e o quarto do porteiro, a que estava normalmente ligado àquela hora. Ter um receptor no
corredorzinho para onde dava o quarto de Françoise teria sido mais simples, menos incômodo,
porém inútil. Os progressos da civilização permitem a cada um manifestar qualidades
insuspeitadas ou vícios novos que os tornam mais caros ou mais insuportáveis a seus amigos. Foi
assim que a descoberta de Edison permitira à Françoise adquirir um defeito a mais, que era o de
se recusar a servir-se do telefone, por mais urgência ou utilidade que houvesse nisso. Ela
encontrava um jeito de se furtar quando queriam lhe ensinar a usá-lo, como outros fogem no
momento de serem vacinados. Assim, o telefone estava instalado no meu quarto e, para que não
incomodasse meus pais, sua campainha fora substituída por um simples rumor de torniquete. De
medo de não ouvi-lo, eu não me movia. Minha imobilidade era tal que, pela primeira vez depois de
meses, reparei no tique-taque da pêndula. Françoise veio arrumar as coisas. Conversava comigo,
mas eu detestava aquela conversa, sob cuja continuidade uniformemente banal meus sentimentos
se alteravam de minuto a minuto, passando do temor à ansiedade, da ansiedade à decepção
completa. Diversamente das palavras vagamente satisfeitas que me julgava obrigado a dirigir-lhe,
sentia tão infeliz a minha fisionomia que pretextei estar sofrendo de um reumatismo para explicar
a discordância entre minha indiferença simulada e aquela expressão dolorosa; além disso, temia
que as palavras pronunciadas por Françoise, aliás a meia voz (não por causa de Albertine, pois
ela julgava passada há muito a hora de sua possível chegada), me impedissem de ouvir o apelo
salvador que não viria mais. Françoise foi se deitar; despedi-a com uma rude brandura, para que o
que ela faria ao sair não abafasse o do telefone.
Recomecei a sofrer; quando estamos esperando, do ouvido que recolhe os ruídos do
espírito que os despoja e analisa, e do espírito ao coração, a quem ele emite seus resultados, o
duplo trajeto é tão rápido que nós nem sequer pudemos perceber sua duração, e parece que
estamos ouvindo direto com o coração.
Eu era torturado pela incessante reincidência do desejo, se mais ansioso e jamais
satisfeito, de um rumor de chamada; eis que chegando ao ponto culminante de uma ascensão
atormentada pelas esperanças de minha angústia solitária, do fundo da Paris populosa e noturna,
próxima de mim, ao lado de minha biblioteca, ouvi de repente, uma mecânica sublime, como no
Tristão a écharpe agitada ou a flauta de cana do pastor - ruído de pião do telefone.
Levantei-me depressa; era Albertine.
- Não incomodo ao telefone numa hora destas?
- Claro que não... - disse, reprimindo a alegria, pois o que ela dizia acerca da hora indevida
sem dúvida era para se desculpar por vir num momento tão tardio, e não que viesse.
- Você vem? - perguntei num tom indiferente.
- Claro que não, se você não tem necessidade absoluta de mim.
Uma parte de mim à qual a outra queria se juntar estava em Albertine. Era preciso que ela
viesse, mas no começo eu não lhe disse nada; como estávamos em comunicação, disse para mim
mesmo que poderia sempre obrigá-la, no último instante, ou a vir até minha casa, ou a me deixar
correr até a sua.
- Sim, estou perto de casa - disse ela; e um pouco longe da sua. Não tinha lido bem o seu
recado. Acabei de relê-lo e pensei que você não estivesse me esperando. -
Percebi que ela mentia e agitado na minha fúria, mais ainda pela necessidade de
incomodá-la do que de vê-la é que desejava obrigá-la a vir. Mas queria primeiro recusar o que
pretendia obter dentro de instantes. Mas onde estava ela? Às suas palavras misturavam-se outros
sons: a buzina de um ciclista, a voz de uma mulher que cantava, uma fanfarra distante ressoavam
tão distintamente como a voz querida, como para me mostrar que era mesmo Albertine em seu
meio até que estava perto de mim naquele momento, como um torrão de terra com o qual foram
trazidas todas as gramíneas que o cercavam. Os mesmos ruídos que eu ouvia também feriam
seus ouvidos e estorvavam sua atenção pormenores de verdade, estranhos ao assunto, inúteis
em si mesmos, mais necessários para nos revelar a evidência do milagre; vestígios sóbrios e
encantadores, descritivos de alguma rua parisiense, vestígios igualmente intensos e cruéis de um
sarau desconhecido que, à saída da Fedra, havia impedido Albertine de vir até minha casa.
- Começo prevenindo-a de que não é para que você venha, pois a essa hora você me
deixaria muito constrangido - disse-lhe; - estou caindo de sono. E depois, afinal, há um monte de
complicações. Faço questão de lhe dizer que não havia mal-entendido possível em meu bilhete.
Você me havia respondido que estava combinado. Então, se você não tinha compreendido, o que
é que queria dizer com isso?
- Eu disse que estava combinado, apenas já não me lembrava bem do que fora
combinado. Mas vejo que você está aborrecido e isto me incomoda. Lamento ter ido à Fedra. Se
tivesse adivinhado que ia causar tantos transtornos... - acrescentou, como todas as pessoas que,
sendo culpadas de uma coisa, aparentam crer que é uma outra coisa que lhes censuram.
- Fedra não tem nada a ver com o meu descontentamento, visto que fui eu quem lhe
aconselhou que fosse.
- Então você ficou aborrecido comigo; é pena que já seja tão tarde esta noite; não fosse
isso eu teria ido a sua casa, mas irei amanhã ou depois de amanhã para me desculpar.
- Oh, não! Albertine, peço-lhe; depois de ter-me feito perder uma noite, deixe-me ao menos
em paz nos dias seguintes. Não estarei livre nos próximos quinze dias, ou três semanas. Escute,
se lhe aborrece nos separarmos com uma impressão de cólera, e, no fundo, talvez tenha razão,
então ainda prefiro, cansaço por cansaço, já que a esperei até esta hora e que você ainda está na
rua, que venha imediatamente, vou tomar café para despertar.
- Não seria possível deixar isto para amanhã? Porque a dificuldade... -
Ao ouvir estas palavras de desculpa, pronunciadas como se ela não viesse, senti que, ao
desejo de rever o rosto aveludado que já em Balbec orientava todos os meus dias para o
momento em que, diante do mar cor-de-malva de setembro, eu estaria ao lado daquela rósea flor,
tentava dolorosamente unir-se um elemento bem diverso. Essa tremenda necessidade de uma
criatura, eu aprendera a conhecê-la em Combray a respeito de minha mãe, e até ao ponto de
desejar morrer se ela me mandava dizer por Françoise que não poderia subir. Esse esforço do
antigo sentimento para se combinar e fazer apenas um só elemento com o outro, mais recente, e
que tinha somente como objeto a superfície colorida, a rósea carnação de uma flor de praia, esse
esforço muitas vezes leva apenas (no sentido químico) a um corpo novo, que pode durar pouco
mais que alguns instantes. Naquela noite ao menos, e por muito tempo ainda, os dois elementos
permaneceram dissociados. Mas, já às últimas palavras ouvidas pelo telefone, comecei a
compreender que a vida de Albertine estava situada (sem dúvida não do ponto de vista material) a
uma tal distância de mim que me seriam necessárias sempre explorações fatigantes para lhe pôr
a mão em cima; mais ainda: estava organizada como fortificações de campanha e, para maior
segurança, com o tipo daquelas a que bem mais tarde adquiriu-se o hábito de tornar
"camufladas". Aliás, Albertine, em um nível mais elevado do dela fazia parte desse tipo de
pessoas a quem a porteira promete ao portador entregar a carta quando voltar para casa até o dia
em que descobrimos que precisamente ela (a pessoa encontrada fora e a que demos permissão
de escrever) é que é a porteira, de modo que ela mora mais na portaria na casa que nos indicou
(a qual, por sua vez é um pequeno bordel do qual a porteira é a cafetina) ou então dá o endereço
de um prédio onde é conhecida por cúmplices que não revelam seu segredo, de onde lhe farão
chegar as nossas cartas, mas onde esta reside, onde, quando muito, deixou suas coisas.
Existências dispostas sobre cinco ou seis linhas estratégicas, de maneira que, quando se deseja
conhecer essa mulher, bate-se muito à direita, ou muito à esquerda, muito adiante, ou muito atrás,
podendo-se ignorar tudo durante meses. Quanto a Albertine, eu sentia que jamais aprenderia
coisa alguma, que a multiplicidade entremeada de detalhes reais e de fatos mentirosos eu
chegaria a me desembaraçar. E que isto seria sempre assim, a menos que a colocasse na prisão
(porém, foge-se) até o fim. Naquela noite, essa conexão fez passar através de mim não mais que
uma inquietude, mas eu sentia fremir como que uma antecipação de longos sofrimentos.
- Claro que não respondi; já lhe disse que não estaria antes de três semanas, e muito
menos amanhã que em qualquer outro - disse.
- Bem, então... tenho que andar depressa... é aborrecido, pois estou na casa de uma
amiga que... -
Eu sentia que ela não acreditara que eu aceitaria sua proposta de vir, a qual, pois, não era
sincera, e quis colocá-la entre a espada e a parede.
- Que me importa a sua amiga? Venha ou não venha, você é quem decide, não sou eu
quem lhe pede para vir, foi você quem propôs.
- Não se zangue, vou pegar um fiacre e estarei em sua casa dentro de dez minutos. Assim,
dessa Paris de cujas profundezas noturnas emanava até meu quarto, medindo o raio de ação de
um ser longínquo, mensagem invisível, o que ia surgir e aparecer após essa primeira anunciação
era aquela Albertine que eu havia conhecido outrora sob o céu da Balbec, quando os garçons do
Grande Hotel, ao porem a mesa, eram ofuscados pela luz do poente, quando, estando as vidraças
totalmente abertas, a aragem imperceptível do entardecer corria livremente da praia, onde
demoravam os últimos passeantes, para a enorme sala de jantar onde ainda não se haviam
sentado os primeiros comensais, e quando, no espelho; colocado por detrás do balcão, passava o
reflexo rubro do casco e se deitava ao ficar por muito tempo o reflexo cinzento da fumaça do
último vapor de Rivebelle. Eu já não me perguntava o que poderia ter atrasado Albertine quando
Françoise entrou no meu quarto e disse:
- A senhorita Albertine está aí -, se respondi sem nem mesmo mover a cabeça, foi apenas
para dissimular:
- Como, a Srta. Albertine vem tão tarde? -
Mas então, erguendo os olhos para Françoise, como na curiosidade de que sua resposta
devia corroborar a aparente sinceridade de minha pergunta, percebi, com admiração e furor, que,
capaz de rivalizar com a própria Berma na arte de fazer falar as roupas inanimadas e as feições
do rosto, Françoise soubera "ensinar" ao seu corpete, a seus cabelos, cujos fios mais brancos
tinham sido trazidos à superfície, exibidos como uma certidão de nascimento, a seu pescoço
encurvado pela fadiga e pela obediência. Eles a lamentavam por ter sido arrancada ao sono e à
tepidez do leito, no meio da noite, na sua idade, obrigada a se vestir às pressas, arriscando-se a
pegar uma pneumonia. Assim, temendo ter dado a impressão de desculpar-me pela chegada
tardia de Albertine, disse:
- Em todo caso, estou muito contente por ela ter vindo, não podia ser melhor e deixei
explodir minha profunda alegria. Que não ficou muito tempo sem mistura, quando ouvi a resposta
de Françoise. Esta, sem proferir nenhuma queixa, parecendo mesmo sufocar da melhor maneira
uma tosse irresistível, e apenas cruzando o xale como se tivesse frio, começou a me contar tudo o
que dissera a Albertine, não tendo esquecido de lhe pedir notícias da tia.
- Justamente dizia eu que o patrão devia recear que a senhorita não viesse mais, pois isto
não são horas de chegar, daqui a pouco será de manhã. Mas ela devia estar em lugares onde se
divertia bastante, pois não só não falou que estava contrariada por ter feito o patrão esperar,
como também me respondeu com ar de pouco-caso: - Antes tarde que nunca! - E Françoise
acrescentou estas palavras que me partiram o coração: - Falando desse modo, ela se denunciou.
Talvez tivesse desejado fingir, mas...
Eu não tinha de que ficar espantado. Acabo de dizer que raramente Françoise se
justificava, nos recados que lhe incumbiam, se não do que havia dito e sobre o que discorria de
bom grado, ao menos da resposta esperada. Mas se, por exceção, ela nos repetia as frases que
nossos amigos tinham dito, por mais curtas que fossem, em geral arranjava um meio, graças à
expressão se necessário, ao tom com que assegurava terem sido acompanhadas, para lhes
atribuir algo de ferino. A rigor, aceitava ter sofrido um insulto de um fornecedor a cujo
estabelecimento a tínhamos enviado, insulto, aliás, provavelmente imaginário, desde que,
dirigindo-se a ela, que nos representava, que falara em nosso nome, tal insulto nos atingisse de
ricochete. Só restava responder-lhe que compreendera mal, que estava atacada de mania de
perseguição, e que todos os comerciantes não se achavam unidos contra ela. Aliás, seus
sentimentos pouco me importavam. Não ocorria o mesmo com os de Albertine. Ao repetir-me
estas palavras: - Antes tarde que nunca! -, Françoise lembrou-me logo os amigos em cuja
companhia Albertine terminara sua noite, divertindo-se ali, e bem mais do que comigo.
- Ela é cômica, tem um chapeuzinho achatado e, com seus olhos graúdos, isto lhe dá um
ar engraçado, principalmente, sua capa, que faria melhor se mandasse para a cerzidora, pois está
toda comida. Ela me diverte - acrescentou, como se zombasse de Albert Françoise dificilmente
compartilhava de minhas impressões, mas experimentava um vivo desejo de fazer conhecer as
suas. Eu nem mesmo queria parecer compreender que esse riso significava o desdém e a
zombaria, - para rebater golpe por golpe, respondi a Françoise, muito embora não conhecesse o
chapeuzinho de que ela falava:
- O que você chama "chapeuzinho achatado" é algo simplesmente encantador...
- Quer dizer que é três vezes nada - disse Françoise exprimindo desta vez com franqueza
de um verdadeiro desprezo. Então (num tom suave e moderado, para que minha resposta
mentirosa parecesse a expressão, não da minha cólera, mas da verdade, e entretanto sem perder
tempo, para não fazer Albertine esperar), dirigi à Françoise estas palavras cruéis:
- Você é muito boa – disse melosamente - você é gentil, você tem mil qualidades, mas está
no mesmo ponto que no dia em que chegou a Paris, tanto para entender de coisas de toilette
como para pronunciar de modo correto as palavras e não cometer erros. -
continua na página 63...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Diante da porta)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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