Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
Os Espanhóis
Assim como o inglês se vê como um capitão, o espanhol vê-se como
matador. Contudo, em vez do mar a obedecer ao capitão, o toureiro
desfruta de uma multidão a admirá-lo. O animal, ao qual deve abater
segundo as nobres regras de sua arte, é o antigo e traiçoeiro monstro da
lenda. O toureiro não pode demonstrar medo; seu autodomínio é tudo.
Cada minúsculo movimento que faz é visto e julgado por milhares de
pessoas. O que se tem aí é a arena romana preservada; o toureiro,
porém, transformou-se num nobre cavaleiro; ele figura como o único
combatente — a Idade Média alterou seu sentido, seu figurino e,
particularmente, sua reputação. O animal selvagem subjugado — o
escravo do homem — arremete mais uma vez contra ele. Mas o herói de
tempos remotos, que partia para submetê-lo, está a postos. Apresenta-se
aos olhos de toda a humanidade; tem tanta segurança de seu ofício que é
capaz de exibir em detalhes o abate do monstro a seus espectadores.
Conhece seu limite com exatidão; seus passos são calculados; seus
movimentos possuem a fixidez de uma dança. Mas ele mata de verdade.
Milhares de pessoas assistem a essa morte e multiplicam-na com sua
excitação.
A execução do animal selvagem — ao qual não se permite que
prossiga sendo-o e que é tornado selvagem justamente com o propósito
de ser, então, condenado à morte —, essa execução, o sangue e o
cavaleiro imaculado espelham-se duplamente nos olhos dos
admiradores. Estes são, ao mesmo tempo, o cavaleiro que abate o touro
e a massa que o saúda. Para além do toureiro que eles próprios são do
outro lado da arena, veem-se novamente a si próprios, na qualidade de
massa. O anel que forma a arena é coeso: uma criatura fechada em si
mesma. Por toda parte, veem-se olhos; por toda parte, ouve-se uma
única voz — a própria.
Assim, o espanhol sequioso de seu matador acostuma-se logo cedo à
visão de uma massa bem definida. Conhece-a profundamente. Ela é tão
viva que exclui a possibilidade de muitos desenvolvimentos e formações
mais recentes, inevitáveis em países falantes de outra língua. O toureiro
na arena, que significa tanto para o espanhol, torna-se também seu
símbolo nacional de massa. Quando quer que pense em muitos
espanhóis reunidos, pensará no lugar onde eles se reúnem com maior
frequência. Comparadas a essas vigorosas alegrias da massa, as da Igreja
são brandas e inofensivas. Mas nem sempre foi assim; à época em que a
Igreja não se incomodava em, já nesta terra, acender o fogo do inferno
para os hereges, a economia da massa apresentava-se estruturada de uma
outra maneira na Espanha.
continua página 264...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: Os Espanhóis
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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