sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção IV (1)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção IV

DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO 
PRIMEIRA PARTE 

     Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-se naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de ideias e de fatos. Ao primeiro pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética[1] e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois lados, é uma proposição que exprime uma relação entre estas figuras. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta exprime uma relação entre estes números. As proposições deste gênero podem descobrir-se pela simples operação do pensamento e não dependem de algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um círculo ou um triângulo, as verdades demonstradas por Euclides conservarão para sempre sua certeza e evidência.
     Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não são determinados da mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de natureza igual à precedente. O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em completo acordo com a realidade. Que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Podemos em vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e o espírito nunca poderia concebê-la distintamente.[2]   
     Portanto, deve ser assunto digno de nossa atenção investigar qual é a natureza desta evidência que nos dá segurança acerca da realidade de uma existência e de um fato que não estão ao alcance do testemunho atual de nossos sentidos ou do registro de nossa memória. E preciso frisar que este aspecto da filosofia tem sido pouco cultivado tanto pelos antigos como pelos modernos; e, portanto, nossas dúvidas e nossos erros ao realizar esta investigação tão importante são certamente os mais desculpáveis, já que marchamos através de tão difíceis caminhos sem nenhum guia ou direção.[3] Na realidade, podem revelar-se úteis ao excitar a curiosidade e ao destruir esta fé cega e a segurança que são a ruína de todo raciocínio e de toda investigação livre. Suponho que descobrir defeitos na filosofia comum, se os há, não é motivo de desânimo mas, pelo contrário, como é de costume, um incentivo para se tentar alguma coisa mais completa e mais satisfatória do que aquela que tem sido até agora proposta ao público.
     Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados de nossa memória e de nossos sentidos. Se tivésseis que perguntar a alguém por que acredita na realidade de um fato que não constata efetivamente, por exemplo, que seu amigo está no campo ou na França, ele vos daria uma razão, e esta razão seria um outro fato: uma carta que recebeu ou o conhecimento de suas resoluções e promessas anteriores. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente supõe-se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os ligasse, a inferência seria inteiramente precária. A audição de uma voz articulada e de uma conversa racional na obscuridade nos dá segurança sobre a presença de alguma pessoa. Por quê? Porque estes sons são os efeitos da constituição e da estrutura do homem e estão estreitamente ligados a ela. Se analisamos todos os outros raciocínios desta natureza, encontraremos que se fundam na relação de causa e de efeito e que esta relação se acha próxima ou distante, direta ou colateral. O calor e a luz são efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser inferido legitimamente do outro.
     Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidência que nos dá segurança acerca dos fatos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.
     Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjuntados entre si. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de Adão fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferido da fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e do calor do fogo, que este o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um fato.
     A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são descobertos pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida em relação àqueles objetos de que nos recordamos e que certa vez nos foram completa mente desconhecidos, porquanto devemos ter consciência de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. Apresentai dois pedaços de mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; ele jamais descobrirá que eles se aderirão de tal maneira que se requer grande força para separá-los em linha reta, embora ofereçam menor resistência à pressão lateral. Considera-se também indiscutível que o conhecimento dos eventos que têm pouca analogia com o curso corrente da natureza se obtém por meio da experiência; assim, ninguém imagina que se teria descoberto a explosão da pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesma maneira, quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de elementos de estrutura desconhecida, não temos dificuldade em atribuir todo o nosso conhecimento à experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar a razão última por que o leite e o pão são alimentos apropriados ao homem e não a um leão ou a um tigre?
     Mas, à primeira vista, poderia parecer que esta mesma verdade não é tão evidente em relação aos eventos que nos são familiares desde o nosso nascimento, que têm estreita analogia com todo o curso da natureza e, como se supõe, dependem das qualidades simples dos objetos, sem a intervenção de elementos de estrutura desconhecida. Desta maneira, somos levados a imaginar que poderíamos descobrir estes efeitos sem o auxílio da experiência, recorrendo apenas às operações da razão. Imaginamos que, se fôssemos repentinamente lançados neste mundo, poderíamos de antemão inferir que uma bola de bilhar comunicaria movimento a outra ao impulsioná-la, e que não teríamos necessidade de observar o evento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. E é tão grande a influência do costume que, onde ela se apresenta com mais vigor, encobre, ao mesmo tempo, nossa natural ignorância e a si mesma e, quando dá a impressão de não intervir, é unicamente porque se encontra em seu mais alto grau.
     No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis da natureza e todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pela experiência, as reflexões que seguem são sem dúvida suficientes. Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola de bilhar é um evento bem distinto do movimento na primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal levantados no ar e deixados sem nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, descobrimos algo nesta situação que nos pode dar origem à ideia de um movimento descendente, em vez de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?
     Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeito particular é, em todas as operações naturais, arbitrária se não consultamos a experiência, devemos igualmente supor como tal o laço ou a conexão entre a causa e o efeito, que une um ao outro e faz com que seja impossível que qualquer outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar desta causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em qualquer linha ou direção? Todas estas suposições são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível que o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta preferência.
     Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência.
     Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filósofo racional e modesto jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer fenômeno natural, ou mostrar distintamente a ação do poder que produz qualquer efeito singular no universo. Concordar-se á que o esforço máximo da razão humana consiste em reduzir à sua maior simplicidade os princípios que produzem os fenômenos naturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares a um pequeno número de causas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na experiência e na observação. No entanto, com referência às causas das causas gerais, em vão tentaríamos descobri-las, pois jamais ficaríamos satisfeitos com qualquer explicação particular que lhes déssemos. Estas fontes e estes princípios últimos estão totalmente vedados à curiosidade e à investigação humanas. A elasticidade, a gravidade, a coesão das partes, a comunicação de movimentos por impulso são provavelmente as causas e princípios últimos que sempre descobriremos na natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se, mediante investigação e raciocínio exatos, podemos subir dos fenômenos particulares até, ou quase até, os princípios gerais. Enquanto a filosofia natural mais perfeita apenas diminui uma pequena parcela de nossa ignorância , a filosofia mais perfeita — do gênero moral ou metafísico — revela-nos, talvez, que nossa ignorância se estende a domínios mais vastos. Deste modo, resulta de toda a filosofia a constatação da cegueira e debilidade humanas que se nos apresentam em todo momento por mais que tentemos disfarçá-las.
     Nem a geometria, com toda exatidão dos raciocínios que a fez merecidamente célebre, é capaz de remediar este defeito e de nos conduzir ao conhecimento das causas últimas, quando é solicitada para auxiliar a filosofia natural. Cada setor das matemáticas aplicadas funciona sobre a suposição de que a natureza estabeleceu certas leis em seus procedimentos, e os raciocínios abstratos são usados tanto para auxiliar a experiência na descoberta dessas leis como para determinar a ação dessas leis em casos particulares, quando ela depende de graus exatos de distância e de quantidade. Assim, por exemplo, uma lei de movimentos descoberta pela experiência é a que diz que o momento ou a força de um corpo em movimento está em razão ou proporção de sua massa e de sua velocidade, e, por conseguinte, que uma pequena força pode remover os maiores obstáculos ou levantar os maiores pesos se, mediante uma invenção ou mecanismo, pudermos aumentar a velocidade da força até fazê-la superar a força antagônica. A geometria auxilia-nos a aplicar esta lei, dando-nos as dimensões exatas de todas as partes e de todas as figuras que fazem parte de qualquer tipo de máquinas, mas, ainda assim, a descoberta da própria lei é devida unicamente à experiência; e todos os raciocínios abstratos do mundo não poderão jamais nos levar a dar um passo para chegar a conhecê-la. Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto ou uma causa, tal como aparece ao espírito, ou seja, independente de toda observação, jamais poderia sugerir-nos a ideia de um objeto distinto, como por exemplo seu efeito, e menos ainda mostrar-nos a inseparável e inviolável conexão entre eles. É preciso que um homem seja muito sagaz para poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes estados dos corpos.

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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção IV (1) 
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Notas:
[1] A presente posição de Hume representa um aperfeiçoamento (veja-se Flew, ob. cit., p. 62) em comparação ao Tratado, que considera apenas a álgebra e a aritmética como ‘as únicas ciências em que podemos conduzir uma cadeia de raciocínios a qualquer grau de complicação, e ainda preservar perfeita exatidão e certeza Ao passo que a ‘geometria não é dotada deste perfeito rigor e certeza, que são peculiares à aritmética e à álgebra” (Tratado, I, iii, 1, p. 71). [N. do T.]
[2] Locke divide o conhecimento em três graus, a saber, intuitivo, demonstrativo e sensitivo, e afirma que “as ideias da quantidade não são as únicas capazes de demonstração e de conhecimento...” (Essay, edição citada, Book IV, p. 317). Ou melhor, Locke pensa que a ciência da moralidade, do mesmo modo que as ciências matemáticas, é passível de demonstração. Como exemplos de proposições tão certas como quaisquer proposições matemáticas ele cita: “onde não há propriedade não há injustiça” e “nenhum governo permite liberdade absoluta”. (Idem, p. 318). Hume situa, de um lado, as “relações de ideias”, que devem ser entendidas como comparação de ideias. O conhecimento consistiria precisamente em comparar ideias, ou melhor, fundamenta-se em “relações de ideias”, as quais permanecem invariáveis, contanto que as ideias não se alterem (Tratado, I, iii, I, pp. 69-71). Daqui nascem determinadas “proposições” que são “intuitivamente e demonstrativamente certas” e evidentes, na medida em que, no entender de Hume, sua verdade, garantida pela lei da não contradição, se revela pela “simples operação do pensamento”. Trata-se, segundo Hume, dos “raciocínios demonstrativos” (investigação, p. 82),— empregados unicamente pelas ciências matemáticas e não, como quer Locke, também pelas ciências morais. Hume coloca, de outro lado, as “relações de fatos”, que podem modificar-se sem que haja qualquer alteração nas ideias (Tratado, idem), pois o “contrário de um fato qualquer é sempre possível”, e não encerra contradição afirmar “que o sol não nascerá amanhã” ou “que ele nascerá”. Tanto uma como outra afirmativa são perfeitamente claras; entretanto, não podemos recorrer, a exemplo do que acontece nas “relações de ideias”, ao método demonstrativo, pois apenas a experiência é que possui jurisdição na esfera das “relações de fatos”. Evidentemente, o núcleo do problema insito nas proposições “o sol nascerá” ou ‘não nascerá”, não diz respeito às dúvidas de Hume quanto ao aparecimento do sol, mas apenas consiste na indicação de um tipo de certeza diferente da certeza absoluta. Trata-se, portanto, da caracterização da crença, que reina na esfera da opinião, e, de acordo com Hume, que aqui diverge de Locke (veja-se N. K. Smith, ob. cit., pp. 63-70), é estendida a todas as “questões de fato e de existência”. E assim que Hume estabelece uma categórica dicotomia entre o conhecimento e a crença. [N. do T.]
[3] O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminado pela seguinte passagem do Abstract: “o célebre Monsieur Leibniz observou, como um defeito comum dos sistemas de lógica, que eles são prolixos quando explicam as operações do entendimento formando demonstrações, mas são bastante concisos quando tratam das probabilidades e das outras medidas de evidência das quais a vida e a ação dependem inteiramente”. (pp.. 7-8; citado também por Flew, oh. cit., p. 69). [N. do T.]

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