David Hume
Seção IV
DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO
PRIMEIRA PARTE
Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-se naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de ideias e de fatos. Ao primeiro pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética[1] e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois lados, é uma proposição que exprime uma relação entre estas figuras. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta exprime uma relação entre estes números. As proposições deste gênero podem descobrir-se pela simples operação do pensamento e não dependem de algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um círculo ou um triângulo, as verdades demonstradas por Euclides conservarão para sempre sua certeza e evidência.
Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não são determinados da
mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de natureza igual
à precedente. O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais
implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se
ele estivesse em completo acordo com a realidade. Que o sol não nascerá amanhã é tão
inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Podemos em
vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa,
implicaria uma contradição e o espírito nunca poderia concebê-la distintamente.[2]
Portanto, deve ser assunto digno de nossa atenção investigar qual é a natureza desta evidência que nos dá segurança acerca da realidade de uma existência e de um fato que não estão ao alcance do testemunho atual de nossos sentidos ou do registro de nossa memória. E preciso frisar que este aspecto da filosofia tem sido pouco cultivado tanto pelos antigos como pelos modernos; e, portanto, nossas dúvidas e nossos erros ao realizar esta investigação tão importante são certamente os mais desculpáveis, já que marchamos através de tão difíceis caminhos sem nenhum guia ou direção.[3] Na realidade, podem revelar-se úteis ao excitar a curiosidade e ao destruir esta fé cega e a segurança que são a ruína de todo raciocínio e de toda investigação livre. Suponho que descobrir defeitos na filosofia comum, se os há, não é motivo de desânimo mas, pelo contrário, como é de costume, um incentivo para se tentar alguma coisa mais completa e mais satisfatória do que aquela que tem sido até agora proposta ao público.
Portanto, deve ser assunto digno de nossa atenção investigar qual é a natureza desta evidência que nos dá segurança acerca da realidade de uma existência e de um fato que não estão ao alcance do testemunho atual de nossos sentidos ou do registro de nossa memória. E preciso frisar que este aspecto da filosofia tem sido pouco cultivado tanto pelos antigos como pelos modernos; e, portanto, nossas dúvidas e nossos erros ao realizar esta investigação tão importante são certamente os mais desculpáveis, já que marchamos através de tão difíceis caminhos sem nenhum guia ou direção.[3] Na realidade, podem revelar-se úteis ao excitar a curiosidade e ao destruir esta fé cega e a segurança que são a ruína de todo raciocínio e de toda investigação livre. Suponho que descobrir defeitos na filosofia comum, se os há, não é motivo de desânimo mas, pelo contrário, como é de costume, um incentivo para se tentar alguma coisa mais completa e mais satisfatória do que aquela que tem sido até agora proposta ao público.
Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e
efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados de nossa memória e de nossos
sentidos. Se tivésseis que perguntar a alguém por que acredita na realidade de um fato que
não constata efetivamente, por exemplo, que seu amigo está no campo ou na França, ele vos
daria uma razão, e esta razão seria um outro fato: uma carta que recebeu ou o conhecimento
de suas resoluções e promessas anteriores. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer
outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos os
nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente supõe-se que há
uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os
ligasse, a inferência seria inteiramente precária. A audição de uma voz articulada e de uma
conversa racional na obscuridade nos dá segurança sobre a presença de alguma pessoa. Por
quê? Porque estes sons são os efeitos da constituição e da estrutura do homem e estão
estreitamente ligados a ela. Se analisamos todos os outros raciocínios desta natureza,
encontraremos que se fundam na relação de causa e de efeito e que esta relação se acha
próxima ou distante, direta ou colateral. O calor e a luz são efeitos colaterais do fogo, e um
dos efeitos pode ser inferido legitimamente do outro.
Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidência que nos dá
segurança acerca dos fatos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa
e do efeito.
Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento
desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce
inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão
constantemente conjuntados entre si. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por
natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente
novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir
nenhuma de suas causas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de
Adão fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferido
da fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e do calor do fogo, que este
o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos,
tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão,
sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um
fato.
A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são descobertos pela razão,
mas pela experiência, será prontamente admitida em relação àqueles objetos de que nos
recordamos e que certa vez nos foram completa mente desconhecidos, porquanto devemos ter
consciência de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. Apresentai dois
pedaços de mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; ele
jamais descobrirá que eles se aderirão de tal maneira que se requer grande força para separá-los em linha reta, embora ofereçam menor resistência à pressão lateral. Considera-se também
indiscutível que o conhecimento dos eventos que têm pouca analogia com o curso corrente da
natureza se obtém por meio da experiência; assim, ninguém imagina que se teria descoberto a
explosão da pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesma maneira,
quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de elementos de
estrutura desconhecida, não temos dificuldade em atribuir todo o nosso conhecimento à
experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar a razão última por que o leite e o pão
são alimentos apropriados ao homem e não a um leão ou a um tigre?
Mas, à primeira vista, poderia parecer que esta mesma verdade não é tão evidente em
relação aos eventos que nos são familiares desde o nosso nascimento, que têm estreita
analogia com todo o curso da natureza e, como se supõe, dependem das qualidades simples
dos objetos, sem a intervenção de elementos de estrutura desconhecida. Desta maneira,
somos levados a imaginar que poderíamos descobrir estes efeitos sem o auxílio da
experiência, recorrendo apenas às operações da razão. Imaginamos que, se fôssemos
repentinamente lançados neste mundo, poderíamos de antemão inferir que uma bola de bilhar
comunicaria movimento a outra ao impulsioná-la, e que não teríamos necessidade de
observar o evento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. E é tão grande a
influência do costume que, onde ela se apresenta com mais vigor, encobre, ao mesmo tempo,
nossa natural ignorância e a si mesma e, quando dá a impressão de não intervir, é unicamente
porque se encontra em seu mais alto grau.
No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis da natureza e
todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pela experiência, as reflexões que
seguem são sem dúvida suficientes. Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos
solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações
anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de
inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta
invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e
pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente
da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola
de bilhar é um evento bem distinto do movimento na primeira, já que não há na primeira o
menor indício da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal levantados no ar e deixados sem
nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, descobrimos
algo nesta situação que nos pode dar origem à ideia de um movimento descendente, em vez
de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?
Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeito particular é, em
todas as operações naturais, arbitrária se não consultamos a experiência, devemos igualmente
supor como tal o laço ou a conexão entre a causa e o efeito, que une um ao outro e faz com
que seja impossível que qualquer outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando
vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo
se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o resultado
de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam
igualmente resultar desta causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto
repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em
qualquer linha ou direção? Todas estas suposições são compatíveis e concebíveis. Por que,
então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível que o
resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento
para esta preferência.
Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia
ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori.
E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve
parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem
parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar
qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da
experiência.
Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filósofo racional e modesto
jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer fenômeno natural, ou mostrar
distintamente a ação do poder que produz qualquer efeito singular no universo. Concordar-se
á que o esforço máximo da razão humana consiste em reduzir à sua maior simplicidade os
princípios que produzem os fenômenos naturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares
a um pequeno número de causas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na
experiência e na observação. No entanto, com referência às causas das causas gerais, em vão
tentaríamos descobri-las, pois jamais ficaríamos satisfeitos com qualquer explicação
particular que lhes déssemos. Estas fontes e estes princípios últimos estão totalmente vedados
à curiosidade e à investigação humanas. A elasticidade, a gravidade, a coesão das partes, a
comunicação de movimentos por impulso são provavelmente as causas e princípios últimos
que sempre descobriremos na natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se,
mediante investigação e raciocínio exatos, podemos subir dos fenômenos particulares até, ou
quase até, os princípios gerais. Enquanto a filosofia natural mais perfeita apenas diminui uma
pequena parcela de nossa ignorância , a filosofia mais perfeita — do gênero moral ou
metafísico — revela-nos, talvez, que nossa ignorância se estende a domínios mais vastos.
Deste modo, resulta de toda a filosofia a constatação da cegueira e debilidade humanas que se
nos apresentam em todo momento por mais que tentemos disfarçá-las.
Nem a geometria, com toda exatidão dos raciocínios que a fez merecidamente célebre,
é capaz de remediar este defeito e de nos conduzir ao conhecimento das causas últimas,
quando é solicitada para auxiliar a filosofia natural. Cada setor das matemáticas aplicadas
funciona sobre a suposição de que a natureza estabeleceu certas leis em seus procedimentos,
e os raciocínios abstratos são usados tanto para auxiliar a experiência na descoberta dessas
leis como para determinar a ação dessas leis em casos particulares, quando ela depende de
graus exatos de distância e de quantidade. Assim, por exemplo, uma lei de movimentos
descoberta pela experiência é a que diz que o momento ou a força de um corpo em
movimento está em razão ou proporção de sua massa e de sua velocidade, e, por conseguinte,
que uma pequena força pode remover os maiores obstáculos ou levantar os maiores pesos se,
mediante uma invenção ou mecanismo, pudermos aumentar a velocidade da força até fazê-la
superar a força antagônica. A geometria auxilia-nos a aplicar esta lei, dando-nos as
dimensões exatas de todas as partes e de todas as figuras que fazem parte de qualquer tipo de
máquinas, mas, ainda assim, a descoberta da própria lei é devida unicamente à experiência; e
todos os raciocínios abstratos do mundo não poderão jamais nos levar a dar um passo para
chegar a conhecê-la. Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto ou uma causa,
tal como aparece ao espírito, ou seja, independente de toda observação, jamais poderia
sugerir-nos a ideia de um objeto distinto, como por exemplo seu efeito, e menos ainda
mostrar-nos a inseparável e inviolável conexão entre eles. É preciso que um homem seja
muito sagaz para poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o
gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes
estados dos corpos.
continua página 26...
____________________
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção IV (1)
___________________Notas:
[1] A presente posição de Hume representa um aperfeiçoamento (veja-se Flew, ob. cit., p.
62) em comparação ao Tratado, que considera apenas a álgebra e a aritmética como ‘as
únicas ciências em que podemos conduzir uma cadeia de raciocínios a qualquer grau de
complicação, e ainda preservar perfeita exatidão e certeza Ao passo que a ‘geometria não é
dotada deste perfeito rigor e certeza, que são peculiares à aritmética e à álgebra” (Tratado, I,
iii, 1, p. 71). [N. do T.]
[2] Locke divide o conhecimento em três graus, a saber, intuitivo, demonstrativo e
sensitivo, e afirma que “as ideias da quantidade não são as únicas capazes de demonstração e
de conhecimento...” (Essay, edição citada, Book IV, p. 317). Ou melhor, Locke pensa que a
ciência da moralidade, do mesmo modo que as ciências matemáticas, é passível de
demonstração. Como exemplos de proposições tão certas como quaisquer proposições
matemáticas ele cita: “onde não há propriedade não há injustiça” e “nenhum governo permite
liberdade absoluta”. (Idem, p. 318). Hume situa, de um lado, as “relações de ideias”, que
devem ser entendidas como comparação de ideias. O conhecimento consistiria precisamente
em comparar ideias, ou melhor, fundamenta-se em “relações de ideias”, as quais permanecem
invariáveis, contanto que as ideias não se alterem (Tratado, I, iii, I, pp. 69-71). Daqui nascem
determinadas “proposições” que são “intuitivamente e demonstrativamente certas” e
evidentes, na medida em que, no entender de Hume, sua verdade, garantida pela lei da não
contradição, se revela pela “simples operação do pensamento”. Trata-se, segundo Hume, dos
“raciocínios demonstrativos” (investigação, p. 82),— empregados unicamente pelas ciências
matemáticas e não, como quer Locke, também pelas ciências morais. Hume coloca, de outro
lado, as “relações de fatos”, que podem modificar-se sem que haja qualquer alteração nas
ideias (Tratado, idem), pois o “contrário de um fato qualquer é sempre possível”, e não
encerra contradição afirmar “que o sol não nascerá amanhã” ou “que ele nascerá”. Tanto
uma como outra afirmativa são perfeitamente claras; entretanto, não podemos recorrer, a
exemplo do que acontece nas “relações de ideias”, ao método demonstrativo, pois apenas a
experiência é que possui jurisdição na esfera das “relações de fatos”. Evidentemente, o
núcleo do problema insito nas proposições “o sol nascerá” ou ‘não nascerá”, não diz respeito
às dúvidas de Hume quanto ao aparecimento do sol, mas apenas consiste na indicação de um
tipo de certeza diferente da certeza absoluta. Trata-se, portanto, da caracterização da crença,
que reina na esfera da opinião, e, de acordo com Hume, que aqui diverge de Locke (veja-se
N. K. Smith, ob. cit., pp. 63-70), é estendida a todas as “questões de fato e de existência”. E
assim que Hume estabelece uma categórica dicotomia entre o conhecimento e a crença. [N.
do T.]
[3] O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminado pela seguinte
passagem do Abstract: “o célebre Monsieur Leibniz observou, como um defeito comum dos
sistemas de lógica, que eles são prolixos quando explicam as operações do entendimento
formando demonstrações, mas são bastante concisos quando tratam das probabilidades e das
outras medidas de evidência das quais a vida e a ação dependem inteiramente”. (pp.. 7-8;
citado também por Flew, oh. cit., p. 69). [N. do T.]
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