segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção III

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção III

DA ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS[1]

     É evidente que há um princípio de conexão entre os diferentes pensamentos ou ideias do espírito humano e que, ao se apresentarem à memória ou à imaginação, se introduzem mutuamente com certo método e regularidade. E isto é tão visível em nossos pensamentos ou conversas mais sérias que qualquer pensamento particular que interrompe a sequencia regular ou o encadeamento das ideias é imediatamente notado e rejeitado. Até mesmo em nossos mais desordenados e errantes devaneios, como também em nossos sonhos, notaremos, se refletimos, que a imaginação não vagou inteiramente a esmo, porém havia sempre uma conexão entre as diferentes ideias que se sucediam. Se se transcrevesse a conversa mais solta e mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que a ligou em todas as suas transições. E se este princípio faltasse, quem quebrou o fio da conversa poderia ainda informar-vos que havia secretamente esclarecido em seu espírito uma sucessão de pensamentos, os quais o tinham desviado gradualmente do tema da conversa. Entre os idiomas mais diferentes, mesmo naqueles em que não podemos supor a menor conexão ou comunicação, encontramos que as palavras que exprimem as ideias mais complexas quase se correspondem entre si, o que é uma prova segura de que as ideias simples, compreendidas nas ideias complexas, foram ligadas por algum princípio universal que tinha igual influência sobre todos os homens.[2] 
     Embora o fato de que as ideias diferentes estejam conectadas seja tão evidente para não ser percebido pela observação, creio que nenhum filósofo[3] tentou enumerar ou classificar todos os princípios de associação, assunto que, todavia, parece digno de atenção. Para mim, apenas há três princípios de conexão entre as ideias, a saber: de semelhança, de contiguidade — no tempo e no espaço — e de causa ou efeito. 
     Que estes princípios servem para ligar ideias, não será, creio eu, muito duvidoso. Um quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para o original;[4] quando se menciona um apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa acerca dos outros.[5] E, se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha.[6] Entretanto, é difícil provar tanto para nossa como para a satisfação do leitor que esta enumeração é completa e que não há outros princípios de associação. Cabe-nos, portanto, em tal situação, recapitular vários exemplos e examinar cuidadosamente o princípio que liga mutuamente os diferentes pensamentos, e apenas detendo-nos quando tornarmos o princípio tão geral quanto possível.[7] E, à medida que examinarmos outros exemplos e o fizermos com o máximo cuidado, adquiriremos a certeza de que a enumeração, estabelecida a partir de um conjunto de observações, é completa e inteira.

     [Nas edições K, L, e N, esta seção continuava da seguinte maneira: “Em vez de entrar num pormenor deste gênero, o que nos conduziria a várias e inúteis sutilezas, consideraremos alguns dos efeitos desta conexão sobre as paixões e a imaginação; poderemos principiar assim um campo de especulação mais interessante e talvez mais instrutivo do que o outro.]

     Como o homem é um ser racional e está continuamente à procura da felicidade, que espera alcançar para a satisfação de alguma paixão ou afeição, raramente age, pensa ou fala sem propósito ou intenção. Sempre tem algum objeto em vista; embora às vezes sejam inadequados os meios que escolhe para alcançar seu fim, jamais o perde de vista e nem desperdiça seus pensamentos ou reflexões quando não espera obter nenhuma satisfação deles.
     Em todas as composições geniais é, portanto, necessário que o autor tenha algum plano ou objeto; e embora possa ser desviado deste plano pela impetuosidade de seu pensamento, como numa ode, ou omiti-lo descuidadamente, como numa epístola ou num ensaio, deve aparecer algum fim ou intenção em sua primeira composição, senão na composição completa da obra. Uma obra sem um desígnio se assemelha mais a extravagâncias de um louco do que aos sóbrios esforços do gênio e do sábio.
     Como esta regra não admite exceção, conclui-se que nas composições narrativas os eventos ou atos que o escritor relata devem estar unidos por algum elo ou laço; é preciso que estejam unidos uns aos outros na imaginação e formem uma espécie de unidade que possa situá-los em um único plano, em um único ponto de vista, e que possa ser o objeto e o fim do autor em seu primeiro empreendimento.
     Este princípio de conexão entre vários eventos, formando o tema de um poema ou de uma história, pode ser diferente segundo os distintos planos de um poeta ou de um historiador. Ovídio modelou seu plano sobre o princípio conectivo de semelhança. Toda transformação fabulosa produzida pelo poder miraculoso dos deuses aparece em sua obra. Não é preciso senão esta condição para que um evento convirja para seu plano original ou intenção.
     Um analista ou historiador que tentasse escrever a história da Europa durante um século seria influenciado pela conexão de contiguidade no tempo e no espaço. Todos os eventos que aconteceram nesta porção do espaço e neste período do tempo estão compreendidos em seu desígnio, embora em outros aspectos sejam diferentes e sem relação uns com os outros. Ainda assim têm uma espécie de unidade entre toda diversidade.
     Entretanto, a espécie mais habitual de relação entre os diferentes eventos que fazem parte de uma composição narrativa é a de causa e efeito; quando um historiador segue a série de ações segundo sua ordem natural, remonta às suas fontes e princípios secretos e descreve suas mais remotas consequências. Escolhe como tema certa porção desta grande cadeia de acontecimentos que constitui a história da humanidade; tenta tocar em sua narrativa cada elo desta cadeia. Às vezes, uma inevitável ignorância torna inúteis todos os seus esforços; às vezes preenche por conjeturas o que é deficiente em seu conhecimento; e sempre tem consciência de que sua obra é mais perfeita em função da maior continuidade de cadeia de acontecimentos que apresenta ao leitor. Ele sabe que o conhecimento de causas não é apenas o mais satisfatório, já que esta relação ou conexão é mais forte do que todas as outras, mas também mais instrutivo, pois é unicamente por este conhecimento que somos capazes de controlar eventos e governar o futuro.
     Podemos agora, portanto, ter uma ideia desta unidade de ação, que tem sido bastante discutida por todos os críticos depois de Aristóteles sem muito êxito, talvez porque não controlavam seus gostos e sentimentos por uma filosofia rigorosa. Parece que em todas as obras, tanto épicas como trágicas, é preciso certa unidade, e que em nenhum momento podemos permitir aos nossos pensamentos de vagarem a esmo, se quisermos produzir uma obra de interesse durável à humanidade. Parece também que mesmo um biógrafo que escrevesse a vida de Aquiles tentaria relacionar os eventos para mostrar sua mútua dependência e relação, do mesmo modo que um poeta que fizesse da cólera deste o tema de sua narrativa.[8] Não é apenas numa determinada parcela da vida que as ações de um homem dependem umas das outras, mas durante toda a sua existência, ou seja, do berço ao túmulo; é impossível quebrar um único elo, embora diminuto, desta cadeia regular sem afetar toda a série de eventos. A unidade de ação, portanto, que pode ser encontrada na biografia ou na história difere da poesia épica não em gênero, mas em grau. Na poesia épica, a conexão entre os eventos é mais próxima e mais sensível; a narrativa não abrange tão grande extensão temporal; os atores dirigem-se às pressas para uma situação notável para satisfazer à curiosidade dos leitores. Esta conduta do poeta épico conta com a situação particular da imaginação e das paixões que se verificam nesta produção. Tanto a imaginação do escritor como a do leitor é mais avivada, e as paixões são mais estimuladas do que na história, na biografia ou em todo tipo de narração confinada estritamente à verdade e à realidade. Consideremos o efeito destas circunstâncias — imaginação avivada e paixões estimuladas — que pertencem à poesia e, especialmente, ao gênero épico mais do que qualquer outra espécie de composição; e examinemos a razão pela qual elas exigem unidade mais próxima e mais estrita em sua fabulação.
     Em primeiro lugar, toda poesia, que é uma espécie de pintura, nos coloca mais perto do objeto do que qualquer outro tipo de narrativa, o ilumina com mais força e delineia com mais distinção as menores circunstâncias que, embora pareçam supérfluas ao historia dor, servem vigorosamente para avivar as imagens e satisfazer à imaginação. Se não é necessário, como na Ilíada, nos informar toda vez que o herói afivela seus sapatos e amarra sua jarreteira, será preciso, talvez, entrar em maiores minúcias que na Henriade, em que os eventos se processam com tal rapidez, que mal temos tempo para nos familiarizar com a cena ou com a ação. Destarte, se um poeta quisesse abranger em seu tema grande extensão temporal ou uma longa série de eventos e remontasse da morte de Heitor às duas causas mais remotas, tais como o rapto de Helena ou o julgamento de Páris, necessitaria estender em demasia seu poema para preencher esta enorme tela com pinturas e imagens convenientes. A imaginação do leitor, estimulada por tal sequencia de descrições poéticas, e suas paixões inflamadas por uma contínua simpatia para com os atores devem enfraquecer bem antes do fim do relato e cair em lassidão e aversão pela repetição dos mesmos movimentos violentos.
     Em segundo lugar, que um poeta épico não deve descrever uma longa série de causas, aparecerá mais adiante se considerarmos uma outra razão derivada de uma propriedade ainda mais notável e mais singular das paixões. É evidente que numa composição correta todas as emoções estimuladas pelos diferentes eventos descritos e representados adicionam suas forças mutuamente; além disso, enquanto os heróis estão todos empenhados numa cena comum e cada ação está fortemente ligada ao conjunto, o interesse permanece sempre vivo e as paixões passam facilmente de um objeto a outro. A forte conexão de eventos facilita, ao mesmo tempo, a passagem do pensamento ou da imaginação de um a outro e a transfusão das paixões, e mantém as emoções sempre no mesmo canal e na mesma direção. Nossa simpatia e nosso interesse por Eva preparam o caminho para semelhante simpatia por Adão: a emoção é mantida quase intacta na transição, e o espírito apreende imediatamente o novo objeto como fortemente unido àquele que de início atraía sua atenção. Mas se o poeta quisesse fazer uma completa digressão em seu tema e se introduzisse uma nova personagem sem nenhuma ligação com as anteriores, a imaginação sentiria uma ruptura na transição, penetraria friamente na nova cena e se animaria lentamente; quando retornasse ao tema central do poema, passaria, por assim dizer, sobre um terreno estranho e seu interesse despertaria novamente para colaborar com os principais atores. O mesmo inconveniente aparece em menor grau quando o poeta descreve seus eventos a uma longa distância e liga entre si ações que, embora não sejam completamente separadas, não têm uma conexão tão forte como é necessário para propiciar a transição das paixões. Esta é a origem do relato indireto empregado na Odisseia e na Eneida: o herói é inicialmente introduzido, antes de ter sido estabelecida sua finalidade, e a seguir nos são mostrados, de modo perspectivo, os mais distantes eventos e causas. Deste modo, a curiosidade do leitor é imediatamente estimulada; os eventos se desenvolvem com rapidez e em conexão muito próxima; o interesse se mantém bastante vivo e, com o auxílio da relação próxima com os objetos, cresce sem cessar do começo ao fim da narrativa.
     A mesma regra se verifica na poesia dramática; jamais é permitido introduzir, numa composição regular, um ator sem conexão ou que tem apenas fraca conexão com as principais personagens do relato. O interesse do espectador não pode ser desviado por cenas desarticuladas e separadas das outras. Isto quebra o curso das paixões e impede a comunicação de várias emoções, pelas quais uma cena adiciona força a outra e transfere a piedade e o terror que cada uma desperta à cena seguinte, até que em sua totalidade produz a rapidez de movimento peculiar ao teatro. Como é preciso extinguir este calor afetivo para iluminar de repente uma nova cena e novas personagens sem nenhuma relação com as precedentes; como é preciso localizar uma ruptura, um hiato deveras sensível no curso das paixões pelo efeito desta ruptura no curso das ideias; e, em lugar de dirigir a simpatia de uma cena à seguinte, ser obrigado em todo momento a despertar um novo interesse e a participar de uma nova cena de ação?
     Embora esta regra da unidade de ação seja comum à poesia dramática e à épica, podemos ainda observar que há entre elas uma diferença digna de curiosidade. Nestas duas espécies de composição é indispensável a unidade e a simplicidade de ação para manter intacto e sem distração o interesse e a simpatia; mas, na poesia épica ou narrativa, esta regra se estabelece sobre um outro fundamento: a necessidade que se impõe a todo escritor de ter um plano ou desígnio antes de principiar qualquer dissertação ou relato e de compreender seu tema sob um aspecto geral ou uma visão unificadora que possa ser o objeto constante de sua atenção. Como o autor está completamente esquecido nas composições dramáticas, e o espectador supõe consigo mesmo estar realmente presente nas ações representadas, esta razão não intervém no palco; e pode-se introduzir um diálogo ou uma conversação que teria podido passar nesta parte do espaço representado pela cena. Por este motivo, em todas as comédias inglesas, inclusive as de Congreve, a unidade de ação não é estritamente observada; mas o poeta pensa que é suficiente relacionar de qualquer maneira suas personagens, quer pelo sangue, quer pelo fato de elas pertencerem a uma mesma famiia; a seguir as introduz em determinadas cenas em que mostram seus temperamentos e seus caracteres sem avançar em muito a ação principal. As duplas intrigas de Terêncio são liberdades do mesmo gênero, embora em grau menor. Apesar de este procedimento não ser inteiramente regular, não é completamente incompatível com a natureza da comédia, em que os mecanismos das paixões não atingem tão alto como na tragédia; ao mesmo tempo, a ficção e a representação atenuam, até certo ponto, tais liberdades. Em um poema narrativo, a primeira proposição, o primeiro desígnio, limita o autor a um tema; recusar-se-iam imediatamente as digressões desta natureza como obscuras e monstruosas. Nem Boccaccio, nem La Fontaine, nem qualquer outro autor deste gênero jamais se deixaram cair em digressões, embora seu principal objetivo tenha sido a graça.
     Retomando a comparação entre a história e a poesia épica, podemos concluir dos raciocínios precedentes que certa unidade é necessária em todas as produções, e esta não pode ser deficiente tanto na história como em qualquer outra; que na história, a conexão que une os diferentes eventos num só corpo é a relação de causa e efeito, a mesma que aparece na poesia épica; e que, nesta última composição, é preciso que esta conexão seja mais próxima e mais sensível em virtude da vivacidade da imaginação e da força das paixões que o poeta deve abarcar em sua narrativa. A guerra do Peloponeso é um tema apropriado à história, o cerco de Atenas, a um poema épico, e a morte de Alcibíades, a uma tragédia.
     Destarte, como a diferença entre a história e a poesia épica consiste apenas nos graus de conexão que une entre si os vários eventos que compõem seu tema, será difícil, senão impossível, determinar com exatidão as fronteiras que separam um do outro. E mais uma questão de gosto que de raciocínio; podemos, talvez, desvendar com frequência esta unidade em um tema que, à primeira vista e segundo considerações abstratas, esperamos ao menos encontrar.
     É evidente que Homero ultrapassa, no curso de sua narrativa, a primeira proposição de seu tema, e que a cólera de Aquiles, causa da morte de Heitor, não é a mesma que ocasionou tantos males aos gregos. Mas a força da relação que une estes dois movimentos, a rapidez de transição de um ao outro, o contraste[9] entre os efeitos da concórdia e da discórdia entre os princípios e a curiosidade natural que temos para ver Aquiles em ação depois de tão longo repouso —este conjunto de causas não cessa de exercer influência sobre o leitor e dá ao tema suficiente unidade.
     Pode-se objetar a Milton o fato de ele ter buscado suas causas numa longa distância e que a revolta dos anjos produziu a queda do homem por um encadeamento de eventos que é, ao mesmo tempo, muito longo e muito fortuito. Sem mencionar que a criação do mundo, relatada em toda a sua extensão, não é mais causa desta catástrofe que a batalha de Farsália, ou qualquer outro acontecimento que sempre tem acontecido. Além disso, se considerarmos que todos estes eventos (a revolta dos anjos, a criação do mundo e a queda do homem) são semelhantes, pois todos são miraculosos e apartados do curso ordinário da natureza; que são supostos contíguos no tempo; que se separam de todos os outros eventos e são os únicos fatos originais revelados, eles impressionam de imediato a visão e naturalmente evocam uns aos outros no pensamento e na imaginação. Se considerarmos tais circunstâncias em sua totalidade, verificaremos que todas estas ações parceladas têm unidade suficiente para serem compreendidas num único relato ou narrativa. Acrescentemos a estas razões que a revolta dos anjos e a queda do homem têm uma semelhança determinada, porque são correlatas e apresentam ao leitor a mesma moral de obediência ao nosso Criador.
     Apresento estas sugestões desconexas com o fim de despertar a curiosidade dos filósofos e com a suposição, senão a firme persuasão, de que é um tema bastante prolixo, e que as numerosas operações do espírito humano dependem da conexão ou da associação de ideias aqui explicadas. Especialmente a simpatia entre as paixões e a imaginação mostrar-se-á talvez notável, quando observamos que as emoções despertadas por um objeto passam facilmente a um outro unido a ele, mas se misturam com dificuldade, ou de nenhum modo, com objetos diferentes e sem nenhuma conexão. Ao introduzir numa composição personagens e ações estranhas umas às outras, um autor imprevidente destrói esta comunicação de emoções, que é o único meio de interessar ao coração e despertar as paixões no grau desejado e no momento apropriado. A explicação completa destes princípios e de todas as suas consequências nos conduziria a raciocínios muito profundos e prolixos para esta investigação. É-nos suficiente presentemente ter estabelecido esta conclusão: os três princípios de todas as ideias são as relações de semelhança, de contiguidade e causalidade”.

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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção III
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Notas:
[1] Nas edições K e L o título era: ‘Conexão de ideias’.
[2] Hume afirma no Abstract que “se alguma coisa pode designar o autor [isto é, Hume] pelo glorioso título de inventor, consiste na maneira por que ele emprega o princípio de associação de ideias, que aparece em quase toda a sua filosofia”. Hume não se considera o inventor da teoria associativa, mas apenas admite ter descoberto uma nova maneira de utilizá-la. (veja-se J. Passmore, Hume’s Intentions, segunda edição, Basic Books, Nova York, 1968, p. 105.) Com efeito, Locke afirma que algumas de nossas ideias têm uma natural correspondência e conexão entre si; constitui tarefa e qualidade da razão delineá-las... Há, ademais, outra conexão de ideias devida totalmente ao acaso ou costume. Ideias que em si mesmas não são em nada aparentadas, tornam-se de tal modo unidas em alguns espíritos humanos, que é muito difícil separá-las”(Essay, edição citada, cap. XXXIII, 5, pp. 248-9). De acordo com a teoria de Locke, portanto, apenas as relações reflexivas (isto é, “necessárias”) revelam um pensamento ordenado, ao passo que a “associação de idéias” (isto é, relação “costumeira”) é um princípio de “conexão errônea” (Idem, 9, p. 249) ou de aberrações mentais. (veja-se A. L. Leroy, David Hume, Paris, 1953, p. 47.) Ora, para Hume, o termo “relação”, como é entendido na “linguagem comum”, designa esta “qualidade (ou principio) pela qual duas ideias estão unidas na imaginação, e uma introduz naturalmente a outra” (Tratado, I, v, pp. 13-4). Denominando este processo de “relação natural”, Hume acrescenta que, quando o espírito faz, de modo constante e uniforme, e sem qualquer base racional, a transição entre percepções, acha-se influenciado por este tipo de relação. Sugere-nos, assim, que a “relação natural” consiste na transição irrefletida, habitual e associativa entre ideias. Daqui, podemos concluir que para Hume: 1) os princípios associativos baseiam-se na “relação natural”, pois decorrem da propensão da imaginação de efetuar a fácil transição de uma impressão para uma ideia, ou de uma ideia para outra ideia, e 2) com exclusão apenas das relações matemáticas (em parte concorda com Locke, que excluía também as relações morais), todas as outras conexões consistem na constatação de que nossas ideias estão habitualmente unidas e que a conexão costumeira de ideias é o caso típico, e não uma ocasional aberração mental como supõe Locke. (Passmore, ob. cit., p. 67.) [N. do T.]
[3] Hume esqueceu de mencionar que Aristóteles já havia distinguido os princípios de semelhança, de contraste e de contiguidade (On Memory and Reminiscense, edição Ross, Great Books, 1952, 451b, pp. 692-3). Hume elimina o principio de contraste, embora na nota 7, desta seção, ele considere o “contraste” uma mistura de semelhança e de causalidade. [N. do T.]
[4] Semelhança (Hume).
[5] Contiguidade (Hume).
[6] Causa e efeito (Hume).
[7] Por exemplo, o contraste ou a contrariedade é também uma conexão entre ideias, mas podemos sem dúvida considerá-la uma mistura de causalidade e semelhança. Quando dois objetos são contrários, um destrói o outro, isto é, constitui a causa de sua aniquilação, e a ideia de aniquilação de um objeto implica a ideia de sua existência anterior (Hume). Esta nota é a transcrição da nota 21, p. 76, operada por Hume, quando ele suprimiu o fim desta seção. [N. do T.]
[8] Ao contrário de Aristóteles, a fábula não é una, como alguns pensam, pelo fato de não haver senão um herói, pois a vida de um mesmo homem compreende um grande número, uma infinidade de eventos que não formam uma unidade. E, do mesmo modo, um mesmo homem realiza várias ações que não constituem uma ação única etc. Capítulo VIII (Hume). Poética, 1451 a, pp. 16-19; a tradução citada é a de M. J. Hardy. veja-se Hume, Enquête sur l’entendement humain, trad. Leroy, 1948, p. 63, nota 1. [N. do T.1
[9] Veja-se nota 7, desta seção. [N. do T.]

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