quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Ruínas de Potosí: O Ciclo da Prata[7]

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     7. Ruínas de Potosí: O Ciclo da Prata
          Interpretando a natureza das relações “metrópole-satélite” ao longo da história da América como uma cadeia de subordinações sucessivas, André Gunder Frank, em uma de suas obras [1], frisou que as regiões hoje em dia mais afetadas pelo subdesenvolvimento e pela pobreza são aquelas que, no passado, tiveram laços mais estreitos com a metrópole e desfrutaram períodos de culminância. São as regiões que foram as maiores produtoras de bens exportados para a Europa ou, posteriormente, para os Estados Unidos, e as mais caudalosas fontes de lucro: regiões abandonadas pela metrópole quando, por qualquer razão, os negócios decaíram.
     Potosí oferece o mais claro exemplo dessa queda no vazio. As minas de Guanajuato e Zacatecas, no México, viveram seu apogeu posteriormente. Nos séculos XVI e XVII, a montanha rica de Potosí foi o centro da vida colonial americana: ao seu redor, de um modo ou de outro, giravam a economia chilena, que a provia de trigo, carne seca, peles e vinhos; a pecuária e os artesanatos de Córdoba e Tucumán, que a abasteciam de animais de tração e de tecidos; as minas de mercúrio de Huancavélica e a região de Arica, por onde era embarcada a prata para Lima, principal centro administrativo da época. O século XVIII marca o princípio do fim da economia da prata que teve seu centro em Potosí; no entanto, na época da independência a população do território que hoje compreende a Bolívia ainda era superior à que habitava aquilo que hoje é a Argentina. Século e meio depois, a população boliviana é quase seis vezes menor do que a população argentina.
     Aquela sociedade potosina, doente de ostentação e desperdício, só legou para a Bolívia vaga memória de seu esplendor, as ruínas de suas igrejas e palácios e oito milhões de cadáveres de índios. Qualquer diamante incrustado no escudo de um fidalgo rico valia mais do que a quantia que um índio podia ganhar em toda sua vida de mitayo, mas o fidalgo fugiu com os diamantes. A Bolívia, hoje um dos países mais pobres do mundo, poderia vangloriar-se – se isto não fosse pateticamente inútil – de ter nutrido a riqueza dos mais ricos países. Em nossos dias, Potosí é uma pobre cidade da pobre Bolívia: “A cidade que mais deu ao mundo é a que menos tem”, como me disse uma velha senhora potosina, envolta em quilométrico xale de lã de alpaca, quando conversamos à frente do pátio andaluz de sua casa de dois séculos. Essa cidade condenada à nostalgia, atormentada pela miséria e pelo frio, ainda é uma ferida aberta do sistema colonial na América: uma acusação. O mundo teria de começar por lhe pedir desculpas.
      Vive-se de escombros. Em 1640, o padre Álvaro Alonso Barba publicou em Madri, na imprensa do reino, seu excelente tratado sobre a arte dos metais. O estanho, escreveu Barba, “é veneno” [2]. Ele mencionou elevações em que “há muito estanho, ainda que poucos saibam, e por não acharem a prata que todos buscam, deixam-no ali”. Em Potosí, agora se explora o estanho que os espanhóis descartaram como lixo. Vendem-se as paredes de casas velhas como estanho de primeira. Das bocas dos cinco mil socavões que os espanhóis abriram na montanha rica jorrou a riqueza ao longo de dois séculos. A montanha foi mudando de cor na medida em que as explosões de dinamite a esvaziavam e iam diminuindo a altura de seu cume. Os montões de pedras, acumulados em torno dos infinitos buracos, têm todas as cores: são rosados, lilases, purpúreos, ocres, cinzas, dourados, pardos. Uma colcha de retalhos. Os llamperos quebram a rocha, e as palliris indígenas, de sábia mão para pesar e separar, picotam como passarinhos os restos minerais. Procuram estanho. Nos velhos socavões que não estão inundados, os mineiros ainda entram, lâmpada de carbureto na mão, corpos encolhidos, para arrancar o que puderem. Prata não há. Nem uma cintilação; os espanhóis ralavam os veios com escovilhas. Os pallacos cavam com pá e picareta pequenos túneis para extrair estanho do que sobra. “A montanha ainda é rica”, dizia-me sem assombro um desempregado que arranhava a terra com as mãos, “Deus há de existir, não é? O mineral cresce como se fosse uma planta.” Defronte à montanha rica de Potosí se ergue o testemunho da devastação. É um monte chamado Huakajchi, que em quíchua significa “monte que chorou”. De suas encostas brotam muitas fontes de água pura, os “olhos d’água” que matam a sede dos mineiros.
     Em seus anos de apogeu, em meados do século XVII, a cidade abrigou muitos pintores e artesãos espanhóis ou nativos ou santeiros indígenas que imprimiram sua marca na arte colonial americana. Melchor Pérez de Holguín, o Grego da América, deixou uma vasta obra religiosa que manifesta não só o talento de seu criador, também o alento pagão dessas terras. Os artistas locais cometiam heresias, como o quadro que mostra a Virgem Maria oferecendo um seio a Jesus e outro ao marido. Os ourives, os cinzeladores de prataria, os mestres do repuxado, os ebanistas, os artífices do metal, da madeira fina, do gesso e dos marfins nobres abasteceram os numerosos mosteiros e igrejas de Potosí com talhas e altares de infinitas filigranas cintilantes de prata, e púlpitos e valiosíssimos retábulos. As fachadas barrocas dos templos, trabalhadas em pedra, resistiram ao embate dos séculos, mas o mesmo não se deu com os quadros, em muitos casos mortalmente mordidos pela umidade, ou com as figuras e objetos de pouco peso: turistas e párocos tiraram das igrejas tudo aquilo que podiam carregar: dos cálices e sinos até as talhas de Cristo e São Francisco em faia e freixo.
     Essas igrejas pilhadas, fechadas em sua maioria, estão vindo abaixo, avariadas pelos anos. É uma lástima, porque mesmo as saqueadas são formidáveis tesouros em pé de uma arte colonial que funde e realça todos os estilos, valiosa no gênio e na heresia: o “signo escalonado” de Tiahuanacu em lugar da cruz, e a cruz junto do sagrado sol e da sagrada lua, as virgens e os santos com cabelos de verdade, as uvas e as espigas enroscadas nas colunas, até os capitéis, junto com a kantuta, a flor imperial dos incas; as sereias, Baco e a festa da vida alternando com o ascetismo românico, os rostos morenos de algumas divindades e as cariátides com traços indígenas. Há igrejas que foram restauradas para prestar, já vazias de fiéis, outros serviços. A igreja de Santo Ambrósio se transformou no Cine Omiste; em fevereiro de 1970, sobre os baixos-relevos barrocos da fachada era anunciada a próxima estreia: “O mundo está louco, louco, louco”. O templo da Companhia de Jesus também se converteu em cinema, depois em depósito de mercadorias da empresa Grace e por último em armazém de alimentos para a caridade pública. Mas outras poucas igrejas, mal ou bem, ainda estão em atividade: há pelo menos um século e meio os vizinhos de Potosí queimam círios para acabar com a falta de dinheiro. A de São Francisco, por exemplo. Dizem que a cruz dessa igreja cresce alguns centímetros por ano, e que cresce também a barba do Senhor de Vera Cruz, imponente Cristo de prata e seda que apareceu em Potosí há quatro séculos, trazido não se sabe por quem. Os padres não negam que, a cada determinado tempo, cortam-lhe a barba, e lhe atribuem toda a sorte de milagres: conjurações sucessivas de secas e pestes, guerras em defesa da cidade acossada.
     O Senhor de Vera Cruz, no entanto, nada pôde fazer para evitar a decadência de Potosí. O esgotamento da prata foi interpretado como um castigo divino por causa das atrocidades e pecados dos mineradores. Ficaram no passado as missas espetaculares, assim como os banquetes e as touradas, os bailes e os fogos de artifício – afinal, o culto religioso com tanto luxo também tinha sido um subproduto do trabalho escravo dos índios. Na época de esplendor, os mineradores faziam fabulosas doações às igrejas e aos mosteiros, e celebravam suntuosos ofícios fúnebres. Chaves de prata pura para as portas do céu: o mercador Álvaro Bejarano, em seu testamento de 1559, ordenou que seu cadáver fosse acompanhado por “todos os padres e sacerdotes de Potosí”. No delírio dos fervores e dos pânicos da sociedade colonial, o curandeirismo e a bruxaria se misturavam com a religião oficial. A extrema-unção com campainha e pálio podia, como a comunhão, curar o agonizante, embora fosse mais eficaz um suculento legado para a construção de um templo ou de um altar de prata. Combatia-se a febre com os evangelhos: em alguns conventos, as orações refrescavam o corpo; em outros, davam calor. “O Credo era fresco como o tamarindo ou o orvalho, e a Salve-Rainha era quente como a flor de laranjeira ou a barba de milho”. [3]
     Na rua Chuquisaca pode-se admirar a fachada do palácio dos condes Carma e Cayara, mas o prédio agora é o consultório de um cirurgião-dentista; o brasão do mestre de campo dom Antonio López de Quiroga, na rua Lanza, adorna uma escolinha; o escudo do marquês de Otavi, com seus leões rampantes, ornamenta o pórtico do Banco Nacional. “Em que lugares viverão agora, devem ter ido para longe...” A anciã potosina, cativa de sua cidade, conta-me que primeiro foram embora os ricos, depois foram também os pobres: Potosí tem agora três vezes menos habitantes do que há quatro séculos. Contemplo a montanha de um terraço da rua Uyuni, uma estreita e serpejante ruazinha colonial, onde as casas têm grandes sacadas de madeira, tão próximas umas das outras que os vizinhos podem se beijar ou trocar socos sem sair à rua. Sobrevivem aqui, como em toda a cidade, os velhos candeeiros de luz mortiça sob os quais, no dizer de Jaime Molins, “remitiram-se as rusgas de amor e se esgueiraram, como duendes, cavaleiros embuçados, damas elegantes e jogadores profissionais”. A cidade tem agora luz elétrica, mas quase não se nota. Nas praças sombrias, à luz dos velhos lampiões, à noite são feitas rifas: vi sortearem uma fatia de torta no meio de uma multidão.
      Junto com Potosí, decaiu Sucre. Essa cidade do vale, de clima agradável, que antes, e sucessivamente, chamou-se Charcas, La Plata e Chuquisaca, desfrutou boa parte da riqueza que manava das veias da montanha rica de Potosí. Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco, instalou ali sua corte, faustosa como a do rei que ele quis ser e não conseguiu; igrejas e casarões, parques e quintas de lazer brotavam continuamente, junto com juristas, místicos e poetas retóricos que, de século em século, foram dando à cidade a sua marca. “Silêncio, é Sucre. Não mais do que o silêncio. Mas antes...” Antes ela foi a capital cultural de dois vice reinados, a sede do principal arcebispado da América e do mais poderoso tribunal de justiça da colônia, a cidade mais faustosa e culta da América do Sul. Dona Cecilia Contreras de Torres e dona María de las Mercedes Torralba de Gramajo, senhoras de Ubina e Colquechaca, davam banquetes pantagruélicos: competiam na dissipação das fabulosas rendas de suas minas em Potosí, e quando as opulentas festas se acabavam, lançavam das sacadas a baixela de prata e até os utensílios de ouro, para que fossem recolhidos pelos felizardos transeuntes.
Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus próprios Arcos do Triunfo, e dizem que com as joias de sua Virgem poderia ser quitada a gigantesca dívida externa da Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas que, em 1809, saudaram com júbilo a emancipação da América, hoje produzem um toque fúnebre. O sino rouco de São Francisco, que tantas vezes anunciou sublevações e motins, hoje dobra pela mortal estagnação de Sucre. Pouco importa que permaneça como a capital legal da Bolívia, e que ali ainda funcione a Suprema Corte de Justiça. Pelas ruas transitam rábulas adoentados e de pele amarela, testemunhas sobreviventes da decadência: doutores do tipo que usava pincenê, com faixa preta e tudo. Dos grandes palácios vazios, os ilustres patriarcas de Sucre enviam seus criados para vender empadas às janelas dos trens. Entre eles há quem soube comprar, em outras horas, até um título de príncipe.
     Em Potosí e em Sucre só permaneceram vivos os fantasmas da riqueza morta. Em Huanchaca, outra tragédia boliviana, os capitais anglo-chilenos esgotaram, durante o século XIX, veios de prata de mais de dois metros de largura, com altíssimo teor; agora só restam as ruínas poeirentas. Huanchaca continua nos mapas, como se ainda existisse, identificada como um centro mineiro ainda vivo, com sua picareta e sua pá cruzados.
     Tiveram melhor sorte as minas mexicanas de Guanajuato e Zacatecas?
     Com base em dados fornecidos por Alexander von Humboldt, estimou-se em cinco bilhões de dólares atuais a magnitude do excedente econômico evadido do México entre 1760 e 1809, apenas meio século, através das exportações de prata e ouro [4]. Naquela época não havia minas mais importantes na América. O grande sábio alemão comparou a mina de Valenciana, em Guanajuato, com a Himmels Furst da Saxônia, que era a mais rica da Europa: a Valenciana, no fim do século XVIII, produzia 36 vezes mais prata, e deixava para seus acionistas lucros 33 vezes mais altos. O conde Santiago de la Laguna vibrava com emoção ao descrever, em 1732, o distrito mineiro de Zacatecas e “os preciosos tesouros ocultos em seu profundo seio”, nas montanhas “todas honradas com mais de quatro mil bocas, para com o fruto de suas entranhas servir a ambas as Majestades”, Deus e o Rei, “para que todos venham beber e participar do grande, do rico, do douto, do urbano e do nobre”, porque era “fonte de sabedoria, polícia, armas e nobreza (...)” [5] O padre Marmolejo descrevia mais tarde a cidade de Guanajuato, atravessada pelas pontes, com jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na Babilônia, e os templos deslumbrantes, o teatro, a praça de touros, a arena de galos e as torres e as cúpulas alçadas contra as verdes encostas das montanhas. Mas este era “o país das desigualdades”, e Humboldt pôde escrever sobre o México: “Em lugar algum a desigualdade é tão espantosa (...) a arquitetura dos edifícios públicos e privados, a finura do enxoval das mulheres, o ar da sociedade: tudo anuncia um esmero extremado que se contrapõe à nudez, à ignorância e à rusticidade do populacho”. Os socavões engoliam homens e mulas nas encostas das cordilheiras; os índios, “que viviam apenas para sobreviver ao dia”, padeciam de fome endêmica, e as pestes os matavam como moscas. Num só ano, 1784, uma onda de enfermidades provocadas pela falta de alimentos, resultante de uma geada arrasadora, ceifou mais de oito mil vidas em Guanajuato.
     Os capitais não se acumulavam, eram dissipados. Praticava-se o velho ditado: “Pai rico, filho nobre, neto pobre”. Numa representação dirigida ao governo, em 1843, Lucas Alamán formulou uma sombria advertência, enquanto insistia na necessidade de defender a indústria nacional através de um sistema de proibições e fortes gravames contra a concorrência estrangeira: “É preciso recorrer ao fomento da indústria, como única fonte de uma prosperidade universal”, dizia. “De nada serviria a Puebla a riqueza de Zacatecas se não fosse pelo consumo que proporciona às suas manufaturas, e se estas decaíssem, como já aconteceu antes, ficaria arruinado este departamento agora florescente, sem que pudesse salvá-lo da miséria a riqueza daquelas minas”. A profecia era certeira. Em nossos dias, Zacatecas e Guanajuato nem sequer são as cidades mais importantes de suas próprias comarcas. Definham as duas, rodeadas pelos esqueletos dos acampamentos da prosperidade mineira. Zacatecas, alta e árida, vive da agricultura e exporta mão de obra para outros estados; é baixíssimo o teor atual de seus minérios de ouro e prata, comparado com os bons tempos do passado. Das 50 minas que eram exploradas no distrito de Guanajuato, agora restam apenas duas. A população da formosa cidade não cresce, mas ela é visitada por turistas que contemplam o exuberante esplendor dos velhos tempos, passeiam pelas ruazinhas de nomes românticos, ricas de lendas, e se horrorizam com as 100 múmias que os sais da terra conservaram intatas. A metade das famílias do estado de Guanajuato, em média com mais de cinco membros, vive atualmente em choças de uma única peça.

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[1] FRANK, André Gunder. Capitalism and underdevelopment in Latin America. New York, 1967.
[2] ALONSO-BARBA, Álvaro. Arte de los metales. Potosí, 1967.
[3] OTERO, op. cit.
[4] CARMONA, Fernando. “Prólogo.” In: LÓPEZ ROSADO, Diego. Historia e pensamiento económico de México. México, 1968.
[5] RIBERA BERNÁRDEZ, D. Joseph, Conde Santiago de la Laguna. “Descripción breve de la muy noble y leal ciudad de Zacatecas.” In: SALINAS DE LA TORRE, Gabriel. Testimonios de Zacatecas. México, 1946. Além desta obra e do ensaio de Humboldt, o autor consultou: CHÁVEZ OROZCO, Luis. Revolución industrial Revolución política. Biblioteca del Obrero y Campesino: México, s.d.; MARMOLEJO, Lucio. Efemérides guanajuatenses, o datos para formar la historia de la ciudad de Guanajuato. Guanajuato, 1883; MORA, José María Luis. México y sus revoluciones. México, 1965; e para os dados da atualidade, La economía del estado de Zacatecas e La economía del estado de Guanajuato, da série de investigações do Sistema Bancos de Comércio. México, 1968.

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