PRIMEIRA PARTE
Febre do ouro, febre da prata
7. Ruínas de Potosí: O Ciclo da Prata
Interpretando a natureza das relações “metrópole-satélite”
ao longo da história da América como uma cadeia de
subordinações sucessivas, André Gunder Frank, em uma de
suas obras
[1], frisou que as regiões hoje em dia mais
afetadas pelo subdesenvolvimento e pela pobreza são
aquelas que, no passado, tiveram laços mais estreitos com
a metrópole e desfrutaram períodos de culminância. São as
regiões que foram as maiores produtoras de bens
exportados para a Europa ou, posteriormente, para os
Estados Unidos, e as mais caudalosas fontes de lucro:
regiões abandonadas pela metrópole quando, por qualquer
razão, os negócios decaíram.
Potosí oferece o mais claro exemplo dessa queda no
vazio. As minas de Guanajuato e Zacatecas, no México,
viveram seu apogeu posteriormente. Nos séculos XVI e XVII,
a montanha rica de Potosí foi o centro da vida colonial
americana: ao seu redor, de um modo ou de outro, giravam
a economia chilena, que a provia de trigo, carne seca, peles
e vinhos; a pecuária e os artesanatos de Córdoba e
Tucumán, que a abasteciam de animais de tração e de
tecidos; as minas de mercúrio de Huancavélica e a região
de Arica, por onde era embarcada a prata para Lima,
principal centro administrativo da época. O século XVIII
marca o princípio do fim da economia da prata que teve seu
centro em Potosí; no entanto, na época da independência a
população do território que hoje compreende a Bolívia ainda
era superior à que habitava aquilo que hoje é a Argentina.
Século e meio depois, a população boliviana é quase seis
vezes menor do que a população argentina.
Aquela sociedade potosina, doente de ostentação e
desperdício, só legou para a Bolívia vaga memória de seu
esplendor, as ruínas de suas igrejas e palácios e oito
milhões de cadáveres de índios. Qualquer diamante
incrustado no escudo de um fidalgo rico valia mais do que a
quantia que um índio podia ganhar em toda sua vida de
mitayo, mas o fidalgo fugiu com os diamantes. A Bolívia,
hoje um dos países mais pobres do mundo, poderia
vangloriar-se – se isto não fosse pateticamente inútil – de
ter nutrido a riqueza dos mais ricos países. Em nossos dias,
Potosí é uma pobre cidade da pobre Bolívia: “A cidade que
mais deu ao mundo é a que menos tem”, como me disse
uma velha senhora potosina, envolta em quilométrico xale
de lã de alpaca, quando conversamos à frente do pátio
andaluz de sua casa de dois séculos. Essa cidade
condenada à nostalgia, atormentada pela miséria e pelo
frio, ainda é uma ferida aberta do sistema colonial na
América: uma acusação. O mundo teria de começar por lhe
pedir desculpas.
Vive-se de escombros. Em 1640, o padre Álvaro Alonso
Barba publicou em Madri, na imprensa do reino, seu
excelente tratado sobre a arte dos metais. O estanho,
escreveu Barba, “é veneno”
[2]. Ele mencionou elevações
em que “há muito estanho, ainda que poucos saibam, e por
não acharem a prata que todos buscam, deixam-no ali”. Em
Potosí, agora se explora o estanho que os espanhóis
descartaram como lixo. Vendem-se as paredes de casas
velhas como estanho de primeira. Das bocas dos cinco mil
socavões que os espanhóis abriram na montanha rica jorrou
a riqueza ao longo de dois séculos. A montanha foi
mudando de cor na medida em que as explosões de
dinamite a esvaziavam e iam diminuindo a altura de seu
cume. Os montões de pedras, acumulados em torno dos
infinitos buracos, têm todas as cores: são rosados, lilases,
purpúreos, ocres, cinzas, dourados, pardos. Uma colcha de
retalhos. Os llamperos quebram a rocha, e as palliris
indígenas, de sábia mão para pesar e separar, picotam
como passarinhos os restos minerais. Procuram estanho.
Nos velhos socavões que não estão inundados, os mineiros
ainda entram, lâmpada de carbureto na mão, corpos
encolhidos, para arrancar o que puderem. Prata não há.
Nem uma cintilação; os espanhóis ralavam os veios com
escovilhas. Os pallacos cavam com pá e picareta pequenos
túneis para extrair estanho do que sobra. “A montanha
ainda é rica”, dizia-me sem assombro um desempregado
que arranhava a terra com as mãos, “Deus há de existir,
não é? O mineral cresce como se fosse uma planta.”
Defronte à montanha rica de Potosí se ergue o testemunho
da devastação. É um monte chamado Huakajchi, que em
quíchua significa “monte que chorou”. De suas encostas
brotam muitas fontes de água pura, os “olhos d’água” que
matam a sede dos mineiros.
Em seus anos de apogeu, em meados do século XVII, a
cidade abrigou muitos pintores e artesãos espanhóis ou
nativos ou santeiros indígenas que imprimiram sua marca
na arte colonial americana. Melchor Pérez de Holguín, o
Grego da América, deixou uma vasta obra religiosa que
manifesta não só o talento de seu criador, também o alento
pagão dessas terras. Os artistas locais cometiam heresias,
como o quadro que mostra a Virgem Maria oferecendo um
seio a Jesus e outro ao marido. Os ourives, os cinzeladores
de prataria, os mestres do repuxado, os ebanistas, os
artífices do metal, da madeira fina, do gesso e dos marfins
nobres abasteceram os numerosos mosteiros e igrejas de
Potosí com talhas e altares de infinitas filigranas cintilantes
de prata, e púlpitos e valiosíssimos retábulos. As fachadas
barrocas dos templos, trabalhadas em pedra, resistiram ao
embate dos séculos, mas o mesmo não se deu com os
quadros, em muitos casos mortalmente mordidos pela
umidade, ou com as figuras e objetos de pouco peso:
turistas e párocos tiraram das igrejas tudo aquilo que
podiam carregar: dos cálices e sinos até as talhas de Cristo
e São Francisco em faia e freixo.
Essas igrejas pilhadas, fechadas em sua maioria, estão
vindo abaixo, avariadas pelos anos. É uma lástima, porque
mesmo as saqueadas são formidáveis tesouros em pé de
uma arte colonial que funde e realça todos os estilos,
valiosa no gênio e na heresia: o “signo escalonado” de
Tiahuanacu em lugar da cruz, e a cruz junto do sagrado sol
e da sagrada lua, as virgens e os santos com cabelos de
verdade, as uvas e as espigas enroscadas nas colunas, até
os capitéis, junto com a kantuta, a flor imperial dos incas; as
sereias, Baco e a festa da vida alternando com o ascetismo
românico, os rostos morenos de algumas divindades e as
cariátides com traços indígenas. Há igrejas que foram
restauradas para prestar, já vazias de fiéis, outros serviços.
A igreja de Santo Ambrósio se transformou no Cine Omiste;
em fevereiro de 1970, sobre os baixos-relevos barrocos da
fachada era anunciada a próxima estreia: “O mundo está
louco, louco, louco”. O templo da Companhia de Jesus
também se converteu em cinema, depois em depósito de
mercadorias da empresa Grace e por último em armazém
de alimentos para a caridade pública. Mas outras poucas
igrejas, mal ou bem, ainda estão em atividade: há pelo
menos um século e meio os vizinhos de Potosí queimam
círios para acabar com a falta de dinheiro. A de São
Francisco, por exemplo. Dizem que a cruz dessa igreja
cresce alguns centímetros por ano, e que cresce também a
barba do Senhor de Vera Cruz, imponente Cristo de prata e
seda que apareceu em Potosí há quatro séculos, trazido não
se sabe por quem. Os padres não negam que, a cada
determinado tempo, cortam-lhe a barba, e lhe atribuem
toda a sorte de milagres: conjurações sucessivas de secas e
pestes, guerras em defesa da cidade acossada.
O Senhor de Vera Cruz, no entanto, nada pôde fazer
para evitar a decadência de Potosí. O esgotamento da prata
foi interpretado como um castigo divino por causa das
atrocidades e pecados dos mineradores. Ficaram no
passado as missas espetaculares, assim como os banquetes
e as touradas, os bailes e os fogos de artifício – afinal, o
culto religioso com tanto luxo também tinha sido um
subproduto do trabalho escravo dos índios. Na época de
esplendor, os mineradores faziam fabulosas doações às
igrejas e aos mosteiros, e celebravam suntuosos ofícios
fúnebres. Chaves de prata pura para as portas do céu: o
mercador Álvaro Bejarano, em seu testamento de 1559,
ordenou que seu cadáver fosse acompanhado por “todos os
padres e sacerdotes de Potosí”. No delírio dos fervores e dos
pânicos da sociedade colonial, o curandeirismo e a bruxaria
se misturavam com a religião oficial. A extrema-unção com
campainha e pálio podia, como a comunhão, curar o
agonizante, embora fosse mais eficaz um suculento legado
para a construção de um templo ou de um altar de prata.
Combatia-se a febre com os evangelhos: em alguns
conventos, as orações refrescavam o corpo; em outros,
davam calor. “O Credo era fresco como o tamarindo ou o
orvalho, e a Salve-Rainha era quente como a flor de
laranjeira ou a barba de milho”.
[3]
Na rua Chuquisaca pode-se admirar a fachada do
palácio dos condes Carma e Cayara, mas o prédio agora é o
consultório de um cirurgião-dentista; o brasão do mestre de
campo dom Antonio López de Quiroga, na rua Lanza, adorna
uma escolinha; o escudo do marquês de Otavi, com seus
leões rampantes, ornamenta o pórtico do Banco Nacional.
“Em que lugares viverão agora, devem ter ido para longe...”
A anciã potosina, cativa de sua cidade, conta-me que
primeiro foram embora os ricos, depois foram também os
pobres: Potosí tem agora três vezes menos habitantes do
que há quatro séculos. Contemplo a montanha de um
terraço da rua Uyuni, uma estreita e serpejante ruazinha
colonial, onde as casas têm grandes sacadas de madeira,
tão próximas umas das outras que os vizinhos podem se
beijar ou trocar socos sem sair à rua. Sobrevivem aqui,
como em toda a cidade, os velhos candeeiros de luz mortiça
sob os quais, no dizer de Jaime Molins, “remitiram-se as
rusgas de amor e se esgueiraram, como duendes,
cavaleiros embuçados, damas elegantes e jogadores
profissionais”. A cidade tem agora luz elétrica, mas quase
não se nota. Nas praças sombrias, à luz dos velhos
lampiões, à noite são feitas rifas: vi sortearem uma fatia de
torta no meio de uma multidão.
Junto com Potosí, decaiu Sucre. Essa cidade do vale, de
clima agradável, que antes, e sucessivamente, chamou-se
Charcas, La Plata e Chuquisaca, desfrutou boa parte da
riqueza que manava das veias da montanha rica de Potosí.
Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco, instalou ali sua corte,
faustosa como a do rei que ele quis ser e não conseguiu;
igrejas e casarões, parques e quintas de lazer brotavam
continuamente, junto com juristas, místicos e poetas
retóricos que, de século em século, foram dando à cidade a
sua marca. “Silêncio, é Sucre. Não mais do que o silêncio.
Mas antes...” Antes ela foi a capital cultural de dois vice
reinados, a sede do principal arcebispado da América e do
mais poderoso tribunal de justiça da colônia, a cidade mais
faustosa e culta da América do Sul. Dona Cecilia Contreras
de Torres e dona María de las Mercedes Torralba de
Gramajo, senhoras de Ubina e Colquechaca, davam
banquetes pantagruélicos: competiam na dissipação das
fabulosas rendas de suas minas em Potosí, e quando as
opulentas festas se acabavam, lançavam das sacadas a
baixela de prata e até os utensílios de ouro, para que
fossem recolhidos pelos felizardos transeuntes.
Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus
próprios Arcos do Triunfo, e dizem que com as joias de sua
Virgem poderia ser quitada a gigantesca dívida externa da
Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas que, em 1809,
saudaram com júbilo a emancipação da América, hoje
produzem um toque fúnebre. O sino rouco de São Francisco,
que tantas vezes anunciou sublevações e motins, hoje
dobra pela mortal estagnação de Sucre. Pouco importa que
permaneça como a capital legal da Bolívia, e que ali ainda
funcione a Suprema Corte de Justiça. Pelas ruas transitam
rábulas adoentados e de pele amarela, testemunhas
sobreviventes da decadência: doutores do tipo que usava
pincenê, com faixa preta e tudo. Dos grandes palácios
vazios, os ilustres patriarcas de Sucre enviam seus criados
para vender empadas às janelas dos trens. Entre eles há
quem soube comprar, em outras horas, até um título de
príncipe.
Em Potosí e em Sucre só permaneceram vivos os
fantasmas da riqueza morta. Em Huanchaca, outra tragédia
boliviana, os capitais anglo-chilenos esgotaram, durante o
século XIX, veios de prata de mais de dois metros de
largura, com altíssimo teor; agora só restam as ruínas
poeirentas. Huanchaca continua nos mapas, como se ainda
existisse, identificada como um centro mineiro ainda vivo,
com sua picareta e sua pá cruzados.
Tiveram melhor sorte as minas mexicanas de
Guanajuato e Zacatecas?
Com base em dados fornecidos por Alexander von
Humboldt, estimou-se em cinco bilhões de dólares atuais a
magnitude do excedente econômico evadido do México
entre 1760 e 1809, apenas meio século, através das
exportações de prata e ouro
[4]. Naquela época não havia
minas mais importantes na América. O grande sábio alemão
comparou a mina de Valenciana, em Guanajuato, com a
Himmels Furst da Saxônia, que era a mais rica da Europa: a
Valenciana, no fim do século XVIII, produzia 36 vezes mais
prata, e deixava para seus acionistas lucros 33 vezes mais
altos. O conde Santiago de la Laguna vibrava com emoção
ao descrever, em 1732, o distrito mineiro de Zacatecas e
“os preciosos tesouros ocultos em seu profundo seio”, nas
montanhas “todas honradas com mais de quatro mil bocas,
para com o fruto de suas entranhas servir a ambas as
Majestades”, Deus e o Rei, “para que todos venham beber e
participar do grande, do rico, do douto, do urbano e do
nobre”, porque era “fonte de sabedoria, polícia, armas e
nobreza (...)”
[5] O padre Marmolejo descrevia mais tarde a
cidade de Guanajuato, atravessada pelas pontes, com
jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na
Babilônia, e os templos deslumbrantes, o teatro, a praça de
touros, a arena de galos e as torres e as cúpulas alçadas
contra as verdes encostas das montanhas. Mas este era “o
país das desigualdades”, e Humboldt pôde escrever sobre o
México: “Em lugar algum a desigualdade é tão espantosa
(...) a arquitetura dos edifícios públicos e privados, a finura
do enxoval das mulheres, o ar da sociedade: tudo anuncia
um esmero extremado que se contrapõe à nudez, à
ignorância e à rusticidade do populacho”. Os socavões
engoliam homens e mulas nas encostas das cordilheiras; os
índios, “que viviam apenas para sobreviver ao dia”,
padeciam de fome endêmica, e as pestes os matavam como
moscas. Num só ano, 1784, uma onda de enfermidades
provocadas pela falta de alimentos, resultante de uma
geada arrasadora, ceifou mais de oito mil vidas em
Guanajuato.
Os capitais não se acumulavam, eram dissipados.
Praticava-se o velho ditado: “Pai rico, filho nobre, neto
pobre”. Numa representação dirigida ao governo, em 1843,
Lucas Alamán formulou uma sombria advertência, enquanto
insistia na necessidade de defender a indústria nacional
através de um sistema de proibições e fortes gravames
contra a concorrência estrangeira: “É preciso recorrer ao
fomento da indústria, como única fonte de uma
prosperidade universal”, dizia. “De nada serviria a Puebla a
riqueza de Zacatecas se não fosse pelo consumo que
proporciona às suas manufaturas, e se estas decaíssem,
como já aconteceu antes, ficaria arruinado este
departamento agora florescente, sem que pudesse salvá-lo
da miséria a riqueza daquelas minas”. A profecia era
certeira. Em nossos dias, Zacatecas e Guanajuato nem
sequer são as cidades mais importantes de suas próprias
comarcas. Definham as duas, rodeadas pelos esqueletos
dos acampamentos da prosperidade mineira. Zacatecas,
alta e árida, vive da agricultura e exporta mão de obra para
outros estados; é baixíssimo o teor atual de seus minérios
de ouro e prata, comparado com os bons tempos do
passado. Das 50 minas que eram exploradas no distrito de
Guanajuato, agora restam apenas duas. A população da
formosa cidade não cresce, mas ela é visitada por turistas
que contemplam o exuberante esplendor dos velhos
tempos, passeiam pelas ruazinhas de nomes românticos,
ricas de lendas, e se horrorizam com as 100 múmias que os
sais da terra conservaram intatas. A metade das famílias do
estado de Guanajuato, em média com mais de cinco
membros, vive atualmente em choças de uma única peça.
continua na página...66
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Primeira Parte: Ruínas de Potosí: O Ciclo da Prata[7]
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[1] FRANK, André Gunder. Capitalism and underdevelopment in Latin America.
New York, 1967.
[2] ALONSO-BARBA, Álvaro. Arte de los metales. Potosí, 1967.
[3] OTERO, op. cit.
[4] CARMONA, Fernando. “Prólogo.” In: LÓPEZ ROSADO, Diego. Historia e
pensamiento económico de México. México, 1968.
[5] RIBERA BERNÁRDEZ, D. Joseph, Conde Santiago de la Laguna. “Descripción
breve de la muy noble y leal ciudad de Zacatecas.” In: SALINAS DE LA TORRE,
Gabriel. Testimonios de Zacatecas. México, 1946. Além desta obra e do ensaio
de Humboldt, o autor consultou: CHÁVEZ OROZCO, Luis. Revolución industrial
Revolución política. Biblioteca del Obrero y Campesino: México, s.d.;
MARMOLEJO, Lucio. Efemérides guanajuatenses, o datos para formar la historia
de la ciudad de Guanajuato. Guanajuato, 1883; MORA, José María Luis. México y
sus revoluciones. México, 1965; e para os dados da atualidade, La economía del
estado de Zacatecas e La economía del estado de Guanajuato, da série de
investigações do Sistema Bancos de Comércio. México, 1968.
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