Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
A Alemanha de Versalhes
Afim de tornar tão clara quanto possível a delimitação dos conceitos
aqui propostos, cumpre dizer algumas palavras acerca da estrutura de
massa da Alemanha — Alemanha esta que, no primeiro terço do século
XX, surpreendeu o mundo com formações e tendências novas, cuja
seriedade letal ninguém entendeu e que somente agora começa
lentamente a ser decifrada.
O símbolo de massa da nação alemã unificada, conforme esta se
constituiu posteriormente à guerra franco-prussiana de 1870-1, era e
prosseguiu sendo o exército. Deste, todo alemão tinha orgulho; apenas
uns poucos logravam escapar da influência avassaladora desse símbolo.
Um pensador de uma cultura universal como a de Nietzsche recebeu
daquela guerra o impulso para a escritura de sua obra capital — Vontade
de poder. Tal impulso deveu-se à visão de um esquadrão da cavalaria,
visão esta que ele jamais esqueceu. Não é ocioso apontá-lo; isso mostra
quão generalizada era a importância do exército para o alemão, e quão
eficaz esse símbolo de massa se revelava mesmo em relação àqueles que,
altivamente, sabiam apartar-se de tudo quanto lembrasse as multidões.
Burgueses, camponeses, trabalhadores, eruditos, católicos, protestantes,
bávaros, prussianos — todos viam no exército o símbolo da nação. As
raízes mais profundas desse símbolo — sua origem na floresta — foram
já elucidadas anteriormente. A floresta e o exército encontram-se
intimamente vinculados para o alemão, podendo-se caracterizar tanto
um quanto outro como o símbolo de massa da nação; nesse aspecto,
ambos constituem uma única e mesma coisa.
Que, paralelamente a sua eficácia simbólica, o exército também
existisse concretamente, é de importância decisiva. Um símbolo vive na
imaginação e no sentimento dos homens, e assim se deu com o notável
constructo floresta-exército. Já o exército de fato, aquele no qual servia
cada jovem alemão, tinha, pelo contrário, a função de uma massa
fechada. A crença no serviço militar obrigatório, a convicção de seu
sentido profundo e o respeito por ele ultrapassavam em muito as
religiões tradicionais, abrangendo tanto católicos quanto protestantes.
Todo aquele que se excluía não era alemão. Já se disse aqui que somente
num sentido restrito é admissível caracterizar exércitos como massas. O
caso alemão, porém, foi diferente: o alemão vivenciava o exército como
sua massa fechada mais importante. Tratava-se de uma massa fechada
porque somente jovens de uma determinada idade nele serviam por um
período limitado de tempo. Para os demais, o exército era uma
profissão e, já por isso, não comum a todos. Todo homem, porém,
passava por essa experiência, permanecendo interiormente vinculado a
ela por toda a vida.
Ao papel de cristal de massa prestava-se nesse exército a casta prussiana
dos Junker, compondo a maior parte do corpo permanente de oficiais.
Tal casta era como uma ordem, dotada de leis rigorosas, ainda que não
escritas; ou como uma orquestra hereditária, que conhece e ensaiou
muito bem a música com a qual deverá contagiar seu público.
Quando, então, eclodiu a Primeira Guerra Mundial, todo o povo
alemão transformou-se numa única massa aberta. O entusiasmo daqueles
dias foi já amiúde descrito. No exterior, muitos haviam contado com o
internacionalismo dos social-democratas, espantando-se com seu
completo fracasso. Não levaram em conta que também esses social
democratas abrigavam em si, como símbolo de sua nação, a “floresta
exército”; que eles próprios haviam pertencido à massa fechada do
exército e que, neste último, haviam estado sob o comando e aflinuência de um cristal de massa preciso e extraordinariamente eficaz
— a casta dos Junker e dos oficiais. Contra isso, o fato de pertencerem a
um partido político pouco pesou.
Contudo, aqueles primeiros dias de agosto de 1914 constituem
também o momento gerador do nacional-socialismo. A corroborá-lo,
tem-se um testemunho insuspeito: o de Hitler, relatando de que forma,
após a eclosão da guerra, ele se ajoelhou e agradeceu a Deus. Essa é sua
experiência decisiva: o único instante no qual, sinceramente, ele próprio
foi massa. E Hitler não o esqueceu; todo o curso posterior de sua vida
foi dedicado ao restabelecimento desse momento — mas a partir do
exterior. A Alemanha deveria voltar a ser o que fora então: consciente de
seu poderio bélico, em consonância com ele e nele tornada una.
Hitler, contudo, jamais teria alcançado seu objetivo, se o tratado de
Versalhes não houvesse dissolvido o exército dos alemães. A proibição
do serviço militar obrigatório privou os alemães de sua massa fechada
mais essencial. As práticas que agora lhes eram vedadas, o exercitar-se, a
recepção e a transmissão de ordens, transformaram-se em algo que
tinham de resgatar a qualquer custo. A proibição do serviço militar
obrigatório é o nascimento do nacional-socialismo. Toda massa fechada
que é dissolvida converte-se numa massa aberta, à qual transmite todas
as suas características. O partido substitui o exército, e, ao primeiro,
não se impõem fronteiras no interior da nação. Cada alemão —
homem, mulher, criança, soldado ou civil — pode tornar-se um
nacional-socialista; com frequência, seu interesse faz-se ainda maior se,
no passado, ele não foi soldado, porque desse modo logra compartilhar
de atitudes que normalmente lhe eram vedadas.
Hitler valeu-se com uma infatigabilidade sem igual da expressão “o
ditame de Versalhes”. A eficácia desse slogan foi já motivo de espanto.
Sua repetição não lhe prejudicou em nada o efeito — este, pelo
contrário, aumentou com o passar dos anos. Mas o que,
verdadeiramente, continha esse slogan? Por meio dele, o que Hitler
transmitiu a suas massas de ouvintes? Para o alemão, a palavra Versalhes
significava não tanto a derrota — que ele nunca reconheceu
efetivamente —, mas antes a proibição do exército: a proibição de uma
prática determinada e sacrossanta, sem a qual era-lhe difícil conceber a
vida. A proibição do exército foi como a proibição de uma religião. A fé
dos pais fora coibida; restabelecê-la era o dever sagrado de cada um.
Nessa ferida remexia a palavra Versalhes, a cada vez que era empregada;
mantinha-a viva, de modo que ela seguia sangrando e não cicatrizava
jamais. Enquanto a palavra Versalhes prosseguisse sendo pronunciada
com toda a energia nas assembleias das massas, estava afastada toda e
qualquer possibilidade de cura.
É significativo que se falasse sempre num ditame, jamais num tratado.
“Ditame” traz à lembrança a esfera da ordem. Uma única ordem de um
estranho, a ordem do inimigo — por essa razão chamada “ditame” —,
impedira toda a prática autoritária do comando militar dos alemães
pelos alemães. Quem quer que ouvisse ou lesse as palavras “o ditame de
Versalhes” sentia profundamente o que lhe fora tomado: o exército
alemão. Restabelecê-lo parecia ser a única meta realmente importante.
Com ele, tudo voltaria a ser como antes. A importância do exército, na
qualidade de símbolo nacional de massa, não fora de modo algum
abalada; sua porção mais profunda e antiga permanecia de pé,
inabalada, sob a forma de floresta.
Do ponto de vista de Hitler, a escolha da palavra Versalhes como
slogan central foi particularmente feliz. Ela não apenas lembrava o mais
recente e doloroso acontecimento da vida nacional — a proibição do
serviço militar obrigatório, a supressão do direito a um exército no qual
cada homem pudesse ingressar por alguns anos —, mas sintetizava
também outros momentos importantes e bem conhecidos da história
alemã.
Em Versalhes Bismarck fundara o Segundo Império alemão.
Imediatamente após uma grande vitória, proclamara-se a unidade da
Alemanha num momento de exaltação e de irresistível força. A vitória
fora conquistada sobre Napoleão III, que se julgava sucessor do grande
Napoleão e ascendera impulsionado pela legendária veneração por seu
nome, de cujo espírito era herdeiro. Mas Versalhes foi também a
residência de Luís XIV, que o construiu. De todos os governantes
franceses anteriores a Napoleão, Luís XIV havia sido o que mais
profundamente humilhara os alemães. Graças a ele, Estrasburgo, com
sua catedral, fora incorporada à França. Suas tropas tinham devastado o
castelo de Heidelberg.
Assim, a proclamação do imperador em Versalhes foi como uma
vitória tardia e condensada sobre Luís XIV e Napoleão juntos, e uma
vitória conquistada solitariamente, sem o auxílio de nenhum aliado.
Esse é o efeito que ela deve ter produzido sobre o alemão daquela
época; há testemunhos suficientes a comprová-lo. O nome daquele
palácio estava, pois, vinculado ao maior triunfo da história alemã
recente.
Toda vez que Hitler mencionava o mal afamado “ditame”, a
lembrança daquele triunfo ecoava, alcançando os ouvintes sob a forma
de uma promessa. Os inimigos, tivessem eles ouvidos para escutar,
haveria de ter ouvido aquela palavra como uma ameaça de guerra e
derrota. Pode-se afirmar, sem exagero, que todos os slogans importantes
dos nacional-socialistas, à exceção daqueles dirigidos contra os judeus,
derivam diretamente da expressão “ditame de Versalhes”. Tal é o caso
de “Terceiro Reich”,
“
Sieg-Heil!
”
, e assim por diante. O conteúdo do
movimento encontrava-se concentrado nesta única frase: a derrota que há
de tornar-se vitória — o exército proibido que, para tanto, cumpre ainda
formar.
Talvez se devesse aqui contemplar ainda o símbolo do movimento: a
cruz gamada.
Seu efeito é duplo: o do signo e o da palavra. Ambos têm algo de cruel.
O próprio signo lembra duas forças torcidas. Ele ameaça o observador
de um modo um tanto traiçoeiro, como se quisesse dizer: “Espere só.
Você vai se espantar com quem ainda penderá daqui”. E, na medida em
que a cruz gamada encerra um movimento rotatório, também este é de
natureza ameaçadora: ele lembra os membros quebrados daqueles que,
no passado, passaram pelo suplício da roda.
A palavra [Hakenkreuz], por sua vez, foi buscar na cruz cristã seus
traços cruéis e sangrentos, como se fosse bom crucificar. Os “gamas” —
ou ganchos [Haken] — lembram as rasteiras [Hakenstellen] dos garotos,
prometendo aos adeptos os muitos que tombarão. Para alguns, eles
podem possuir também um significado militar, lembrando o bater dos
calcanhares [Hacken]. Seja como for, atrelam uma ameaça de castigos
cruéis a uma traiçoeira astúcia e uma lembrança velada da disciplina
militar.
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: A Alemanha de Versalhes
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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