sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: A distribuição de funções entre o cavalo e o cavaleiro[6]

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     6. A distribuição de funções entre o cavalo e o cavaleiro
          No primeiro tomo de O capital, Karl Marx escreve: “O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento das minas da população aborígine, o começo da conquista e o saque das Índias Orientais, a conversão do continente africano em campo de caça dos escravos negros: são todos fatos que assinalam a alvorada da era da produção capitalista. Esses processos ‘idílicos’ representam outros tantos fatores fundamentais no movimento de acumulação originária”.
     O saque, interno e externo, foi o meio mais importante de acumulação primitiva de capitais que, desde a Idade Média, tornou possível a aparição de uma nova etapa histórica na evolução econômica mundial. Na medida em que se estendia a economia monetária, o intercâmbio desigual ia abarcando cada vez mais camadas sociais e mais regiões do planeta. Ernest Mandel fez a soma do valor do ouro e da prata arrebatados da América até 1660, do butim arrecadado na Indonésia pela Companhia Holandesa das Índias Orientais de 1650 a 1780, dos lucros do capital francês no tráfico de escravos durante o século XVIII, dos rendimentos obtidos com o trabalho escravo nas Antilhas britânicas e do saque inglês na Índia durante meio século: o resultado supera o valor de todo o capital investido em todas as indústrias europeias por volta de 1800 [1]. Mandel observa que esta gigantesca massa de capitais criou um ambiente favorável aos investimentos na Europa, estimulou o “espírito empresarial” e financiou diretamente o estabelecimento de manufaturas que deram um grande impulso à revolução industrial. Ao mesmo tempo, contudo, a formidável concentração internacional de riqueza, beneficiando a Europa, impediu nas regiões saqueadas o salto para a acumulação de capital industrial. “A dupla tragédia dos países em desenvolvimento consiste em que não só foram vítimas desse processo de concentração internacional, como também foram posteriormente obrigados a compensar seu grande atraso industrial, isto é, realizar a acumulação originária de capital industrial num mundo inundado de artigos manufaturados por uma indústria já madura, a ocidental”. [2]
     As colônias americanas tinham sido descobertas, conquistadas e colonizadas dentro do processo de expansão do capital comercial. A Europa estendia seus braços para alcançar o mundo inteiro. Nem Espanha nem Portugal receberam os benefícios do avassalador avanço do mercantilismo capitalista, embora fossem suas colônias que, em grande parte, proporcionassem o ouro e a prata para nutrir essa expansão. Como vimos, embora os metais preciosos da América iluminassem a ilusória fortuna de uma nobreza que vivia tardiamente a Idade Média e na contramão da história, simultaneamente selaram a ruína da Espanha nos séculos seguintes. Foram outras as comarcas da Europa que puderam incubar o capitalismo moderno, valendo-se, sobretudo, da expropriação dos povos primitivos da América. À rapinagem dos tesouros acumulados seguiu-se a exploração sistemática, nos socavões e jazidas, do trabalho forçado dos indígenas e dos escravos negros arrancados da África pelos traficantes.
     A Europa precisava de ouro e prata. Os meios de pagamento em circulação se multiplicavam sem cessar e era necessário alimentar os movimentos do capitalismo na hora do parto: os burgueses se apoderaram das cidades e fundavam bancos, produziam e intercambiavam mercadorias, conquistando mercados novos. Ouro, prata, açúcar: a economia colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em função das necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino-americanas de metais preciosos, durante longos períodos do século XVI, foi quatro vezes maior do que o valor das importações, compostas estas sobretudo de escravos, sal, vinho, azeite, armas, tecidos e artigos de luxo. Os recursos fluíam para que fossem acumulados pelas nações europeias emergentes. Essa era a missão fundamental que traziam os pioneiros, ainda que também aplicassem o Evangelho nos índios agonizantes quase tão frequentemente quanto o chicote. A estrutura econômica das colônias ibéricas nasceu subordinada ao mercado externo e, em consequência, centralizada no setor exportador, que concentrava a renda e o poder.
     Ao longo do processo, da etapa dos metais ao posterior fornecimento de alimentos, cada região se identificou com o que produziu, e o que produziu foi aquilo que dela se esperava na Europa: cada produto carregado no porão dos galeões que sulcavam o oceano converteu-se numa vocação e num destino. A divisão internacional do trabalho, tal como foi surgindo junto com o capitalismo, parecia-se mais com uma distribuição de funções entre o cavaleiro e o cavalo, como observou Paul Baran [3]. Os mercados do mundo colonial cresceram como meros apêndices do mercado interno do capitalismo que irrompia.
     Celso Furtado adverte [4] que os senhores feudais europeus obtinham um excedente econômico da população por eles dominada e o utilizavam, de uma forma ou de outra, em suas próprias regiões, enquanto o principal objetivo dos espanhóis que, na América, receberam minas, terras e indígenas do rei, consistia em subtrair um excedente para transferi-lo à Europa. Esta observação contribui para esclarecer o fim último que teve, desde sua implantação, a economia colonial americana; ainda que formalmente mostrasse alguns traços feudais, atuava a serviço do capitalismo nascente em outras comarcas. Afinal, tampouco em nosso tempo a existência de centros ricos do capitalismo pode ser explicada sem a existência das periferias pobres e submetidas: uns e outros integram o mesmo sistema.
     Contudo, nem todo o excedente se evadia para a Europa. A economia colonial também financiava a dissipação de mercadores, donos de minas e grandes proprietários de terras, que repartiam entre si o aproveitamento da mão de obra indígena e negra sob o olhar ciumento da Coroa e sua principal associada, a Igreja. O poder estava concentrado em poucas mãos, que enviavam para a Europa metais e alimentos, e da Europa recebiam artigos voluptuários, em cuja fruição empregavam suas crescentes fortunas. As classes dominantes não tinham o menor interesse em diversificar as economias internas nem em elevar os níveis técnicos e culturais da população: era outra sua função na engrenagem internacional para a qual atuavam, e a imensa miséria popular, tão lucrativa do ponto de vista dos interesses reinantes, impedia o desenvolvimento de um mercado interno de consumo.
      Uma economista francesa [5] sustenta que a pior herança colonial da América Latina, que explica seu considerável atraso atual, é a falta de capitais. No entanto, todas as informações históricas demonstram que a economia colonial, no passado, produziu enorme riqueza para as classes que, na região, eram associadas ao sistema colonialista de domínio. A abundante mão de obra disponível, gratuita ou quase gratuita, e a grande demanda europeia por produtos americanos, tornaram possível, segundo Sergio Bagú, “uma precoce e grandiosa acumulação de capitais nas colônias ibéricas. O núcleo de beneficiários, longe de se ampliar, foi-se reduzindo proporcionalmente à massa da população, como se depreende do fato cabal de que o número de europeus e nativos desocupados aumentasse sem cessar” [6]. O capital que restava na América, deduzida a parte do leão que era voltada para o processo de acumulação primitiva do capitalismo europeu, não gerava aqui um processo análogo ao da Europa, que lançasse as bases do desenvolvimento industrial, mas era desviado para a construção de grandes palácios e templos faustosos, para a compra de joias, roupas e móveis suntuosos, para a manutenção de numerosa criadagem e o esbanjamento das festas. Esse excedente, em boa parte, imobilizava-se na compra de novas terras ou seguia girando nas atividades especulativas e comerciais.
     No ocaso da era colonial, Humboldt encontrará no México “uma enorme massa de capitais amontoados em mãos dos proprietários de minas, ou de negociantes já retirados do comércio”. Não menos do que a metade dos bens de raiz e do capital total do México pertencia, segundo seu testemunho, à Igreja, que além disso controlava boa parte das terras restantes através de hipotecas [7]. Os mineradores mexicanos, como os grandes exportadores de Veracruz e Acapulco, investiam seus excedentes na compra de latifúndios e nos empréstimos sob hipoteca; a hierarquia clerical estendia seus bens na mesma direção. As residências capazes de converter um plebeu em príncipe e os templos espalhafatosos nasciam como cogumelos depois da chuva.
     No Peru, em meados do século XVII, grandes capitais provindos de “encomenderos”, mineradores, inquisidores e funcionários da administração imperial eram empregados no comércio. As fortunas nascidas na Venezuela do cultivo de cacau, iniciado em fins do século XVI, à custa de legiões de escravos disciplinados a chicote, eram investidas “em novas plantações e outros cultivos comerciais, assim como em minas, bens de raiz urbanos, escravos e fazendas de gado”. [8]

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[1] MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. México, 1969.
[2] MANDEL, Ernest. “La teoría marxista de la acumulación primitiva y la industrialización del Tercero Mundo”. Amaru (6). Lima, abril-junho de 1968.
[3] BARAN, Paul. Economía política del crecimiento. México, 1959.
[4] FURTADO, Celso. La economía latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la revolución cubana. Santiago de Chile, 1969; México, 1969.
[5] BEAUJEAU-GARNIER, J. L’économie de l’Amérique Latine. Paris, 1949.
[6] BAGÚ, Sergio. Economía de la sociedad colonial. Ensayo de historia comparada de América Latina. Buenos Aires, 1949.
[7] HUMBOLDT, Alexander von. Ensayo sobre el Reino de la Nueva España. México, 1944.
[8] BAGÚ, op. cit.

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