PRIMEIRA PARTE
Febre do ouro, febre da prata
6. A distribuição de funções entre o cavalo e o cavaleiro
No primeiro tomo de O capital, Karl Marx escreve: “O
descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a
cruzada de extermínio, escravização e sepultamento das
minas da população aborígine, o começo da conquista e o
saque das Índias Orientais, a conversão do continente
africano em campo de caça dos escravos negros: são todos
fatos que assinalam a alvorada da era da produção
capitalista. Esses processos ‘idílicos’ representam outros
tantos fatores fundamentais no movimento de acumulação
originária”.
O saque, interno e externo, foi o meio mais importante
de acumulação primitiva de capitais que, desde a Idade
Média, tornou possível a aparição de uma nova etapa
histórica na evolução econômica mundial. Na medida em
que se estendia a economia monetária, o intercâmbio
desigual ia abarcando cada vez mais camadas sociais e
mais regiões do planeta. Ernest Mandel fez a soma do valor
do ouro e da prata arrebatados da América até 1660, do
butim arrecadado na Indonésia pela Companhia Holandesa
das Índias Orientais de 1650 a 1780, dos lucros do capital
francês no tráfico de escravos durante o século XVIII, dos
rendimentos obtidos com o trabalho escravo nas Antilhas
britânicas e do saque inglês na Índia durante meio século: o
resultado supera o valor de todo o capital investido em
todas as indústrias europeias por volta de 1800
[1]. Mandel
observa que esta gigantesca massa de capitais criou um
ambiente favorável aos investimentos na Europa, estimulou
o
“espírito empresarial” e financiou diretamente o
estabelecimento de manufaturas que deram um grande
impulso à revolução industrial. Ao mesmo tempo, contudo, a
formidável
concentração
internacional
de
riqueza,
beneficiando a Europa, impediu nas regiões saqueadas o
salto para a acumulação de capital industrial. “A dupla
tragédia dos países em desenvolvimento consiste em que
não só foram vítimas desse processo de concentração
internacional,
como também foram posteriormente
obrigados a compensar seu grande atraso industrial, isto é,
realizar a acumulação originária de capital industrial num
mundo inundado de artigos manufaturados por uma
indústria já madura, a ocidental”.
[2]
As colônias americanas tinham sido descobertas,
conquistadas e colonizadas dentro do processo de expansão
do capital comercial. A Europa estendia seus braços para
alcançar o mundo inteiro. Nem Espanha nem Portugal
receberam os benefícios do avassalador avanço do
mercantilismo capitalista, embora fossem suas colônias
que, em grande parte, proporcionassem o ouro e a prata
para nutrir essa expansão. Como vimos, embora os metais
preciosos da América iluminassem a ilusória fortuna de uma
nobreza que vivia tardiamente a Idade Média e na
contramão da história, simultaneamente selaram a ruína da
Espanha nos séculos seguintes. Foram outras as comarcas
da Europa que puderam incubar o capitalismo moderno,
valendo-se, sobretudo, da expropriação dos povos
primitivos da América. À rapinagem dos tesouros
acumulados seguiu-se a exploração sistemática, nos
socavões e jazidas, do trabalho forçado dos indígenas e dos
escravos negros arrancados da África pelos traficantes.
A Europa precisava de ouro e prata. Os meios de
pagamento em circulação se multiplicavam sem cessar e
era necessário alimentar os movimentos do capitalismo na
hora do parto: os burgueses se apoderaram das cidades e
fundavam
bancos,
produziam
e
intercambiavam
mercadorias, conquistando mercados novos. Ouro, prata,
açúcar: a economia colonial, mais abastecedora do que
consumidora, estruturou-se em função das necessidades do
mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações
latino-americanas de metais preciosos, durante longos
períodos do século XVI, foi quatro vezes maior do que o
valor das importações, compostas estas sobretudo de
escravos, sal, vinho, azeite, armas, tecidos e artigos de luxo.
Os recursos fluíam para que fossem acumulados pelas
nações europeias emergentes. Essa era a missão
fundamental que traziam os pioneiros, ainda que também
aplicassem o Evangelho nos índios agonizantes quase tão
frequentemente quanto o chicote. A estrutura econômica
das colônias ibéricas nasceu subordinada ao mercado
externo e, em consequência, centralizada no setor
exportador, que concentrava a renda e o poder.
Ao longo do processo, da etapa dos metais ao posterior
fornecimento de alimentos, cada região se identificou com o
que produziu, e o que produziu foi aquilo que dela se
esperava na Europa: cada produto carregado no porão dos
galeões que sulcavam o oceano converteu-se numa
vocação e num destino. A divisão internacional do trabalho,
tal como foi surgindo junto com o capitalismo, parecia-se
mais com uma distribuição de funções entre o cavaleiro e o
cavalo, como observou Paul Baran
[3]. Os mercados do
mundo colonial cresceram como meros apêndices do
mercado interno do capitalismo que irrompia.
Celso Furtado adverte
[4] que os senhores feudais
europeus obtinham um excedente econômico da população
por eles dominada e o utilizavam, de uma forma ou de
outra, em suas próprias regiões, enquanto o principal
objetivo dos espanhóis que, na América, receberam minas,
terras e indígenas do rei, consistia em subtrair um
excedente para transferi-lo à Europa. Esta observação
contribui para esclarecer o fim último que teve, desde sua
implantação, a economia colonial americana; ainda que
formalmente mostrasse alguns traços feudais, atuava a
serviço do capitalismo nascente em outras comarcas. Afinal,
tampouco em nosso tempo a existência de centros ricos do
capitalismo pode ser explicada sem a existência das
periferias pobres e submetidas: uns e outros integram o
mesmo sistema.
Contudo, nem todo o excedente se evadia para a
Europa. A economia colonial também financiava a
dissipação de mercadores, donos de minas e grandes
proprietários de terras, que repartiam entre si o
aproveitamento da mão de obra indígena e negra sob o
olhar ciumento da Coroa e sua principal associada, a Igreja.
O poder estava concentrado em poucas mãos, que
enviavam para a Europa metais e alimentos, e da Europa
recebiam artigos voluptuários, em cuja fruição empregavam
suas crescentes fortunas. As classes dominantes não tinham
o menor interesse em diversificar as economias internas
nem em elevar os níveis técnicos e culturais da população:
era outra sua função na engrenagem internacional para a
qual atuavam, e a imensa miséria popular, tão lucrativa do
ponto de vista dos interesses reinantes, impedia o
desenvolvimento de um mercado interno de consumo. Uma economista francesa
[5] sustenta que a pior
herança colonial da América Latina, que explica seu
considerável atraso atual, é a falta de capitais. No entanto,
todas as informações históricas demonstram que a
economia colonial, no passado, produziu enorme riqueza
para as classes que, na região, eram associadas ao sistema
colonialista de domínio. A abundante mão de obra
disponível, gratuita ou quase gratuita, e a grande demanda
europeia por produtos americanos, tornaram possível,
segundo Sergio Bagú, “uma precoce e grandiosa
acumulação de capitais nas colônias ibéricas. O núcleo de
beneficiários, longe de se ampliar, foi-se reduzindo
proporcionalmente à massa da população, como se
depreende do fato cabal de que o número de europeus e
nativos desocupados aumentasse sem cessar”
[6]. O capital
que restava na América, deduzida a parte do leão que era
voltada para o processo de acumulação primitiva do
capitalismo europeu, não gerava aqui um processo análogo
ao da Europa, que lançasse as bases do desenvolvimento
industrial, mas era desviado para a construção de grandes
palácios e templos faustosos, para a compra de joias,
roupas e móveis suntuosos, para a manutenção de
numerosa criadagem e o esbanjamento das festas. Esse
excedente, em boa parte, imobilizava-se na compra de
novas terras ou seguia girando nas atividades especulativas
e comerciais.
No ocaso da era colonial, Humboldt encontrará no
México “uma enorme massa de capitais amontoados em
mãos dos proprietários de minas, ou de negociantes já
retirados do comércio”. Não menos do que a metade dos
bens de raiz e do capital total do México pertencia, segundo
seu testemunho, à Igreja, que além disso controlava boa
parte das terras restantes através de hipotecas
[7]. Os
mineradores mexicanos, como os grandes exportadores de
Veracruz e Acapulco, investiam seus excedentes na compra
de latifúndios e nos empréstimos sob hipoteca; a hierarquia
clerical estendia seus bens na mesma direção. As
residências capazes de converter um plebeu em príncipe e
os templos espalhafatosos nasciam como cogumelos depois
da chuva.
No Peru, em meados do século XVII, grandes capitais
provindos de “encomenderos”, mineradores, inquisidores e
funcionários da administração imperial eram empregados
no comércio. As fortunas nascidas na Venezuela do cultivo
de cacau, iniciado em fins do século XVI, à custa de legiões
de escravos disciplinados a chicote, eram investidas “em
novas plantações e outros cultivos comerciais, assim como
em minas, bens de raiz urbanos, escravos e fazendas de
gado”.
[8]
continua na página...57
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Primeira Parte: A distribuição de funções entre o cavalo e o cavaleiro[6]
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[1] MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. México, 1969.
[2] MANDEL, Ernest. “La teoría marxista de la acumulación primitiva y la
industrialización del Tercero Mundo”. Amaru (6). Lima, abril-junho de 1968.
[3] BARAN, Paul. Economía política del crecimiento. México, 1959.
[4] FURTADO, Celso. La economía latinoamericana desde la conquista ibérica
hasta la revolución cubana. Santiago de Chile, 1969; México, 1969.
[5] BEAUJEAU-GARNIER, J. L’économie de l’Amérique Latine. Paris, 1949.
[6] BAGÚ, Sergio. Economía de la sociedad colonial. Ensayo de historia
comparada de América Latina. Buenos Aires, 1949.
[7] HUMBOLDT, Alexander von. Ensayo sobre el Reino de la Nueva España.
México, 1944.
[8] BAGÚ, op. cit.
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