domingo, 26 de outubro de 2025

crônica - um professor bagunceirinho (10)

um professor bagunceirinho (10)

baitasar

   segunda-feira, terceira semana, as duas primeiras semanas foram intensas nos desafios e contradições entre meu discurso e minha prática, escondido atrás da segurança do costume desde antes, não sabia como mudar meu comportamento copista dos planos de aula sugeridos pelas colegas, legitimamente apontadas como alfabetizadoras, o tempo é o senhor da razão, paciente e sereno, silencioso e com passos lentos, desvendando segredos e curando dores, não há pressa nem mentira que vença o tempo
   ia clareando um desconforto na medida que pensava outras possibilidades daquela prática que já houve e está havendo por mim, virei um repetidor doido para fazer diferente, Mas por onde começar e fazer diferente?
   acordo como nas outras manhãs, os planos e estratégias para formar crianças alfabetizadas estão prontos, tudo certinho, não dá errado mesmo quando o inesperado se mostra sorrindo ou chorando, às vezes, gritando, a vida é imprevisível, e na escola é como um vento que não se espera, pode entrar forte ou suave, com risos ou lágrimas se misturando, cada olhar uma história diferente, um segredo, um contínuo enredo de emoção e razão, uma viagem do tempo no coração
   não tenho o direito de ser incompetente e preciso lutar comigo mesmo para não ser incoerente, uma responsabilidade pessoal e coletiva com a educação popular, a conscientização crítica e a ação transformadora que valoriza a construção do conhecimento e da justiça social; tenho claro, para mim, a exigência da competência é uma forma de respeitar a outra  – o outro  – e o processo dialógico, é uma luta para garantir que o meu discurso esteja junto a minha prática pedagógica, uma ética de compromisso, reflexão crítica e integridade emancipadora solidária
   o primeiro compromisso é com a pontualidade, a correria da higiene, café, lanche e torcer para que o fusca branco não me deixe na mão, saio e fecho a porta, jogo a mochila e a térmica com chá no banco de trás, entro no carro e dou partida no motor, o dia está começando bem 
   mas algumas coisa continuam inevitáveis, abro a porta do fusca e saio  – deixo o motor funcionando e porta aberta  –, preciso ir ao banheiro, o desconforto dos últimos anos com minha próstata tornou-me mais humilde, entro em casa apressado, levanto o assento estofado do vaso sanitário – e no limite do meu controle  –, encho o cabungo com o meu mijadeiro
   três biópsias da próstata, trinta e seis pedacinhos retirados para exames laboratoriais, exames de toque, PSA altíssimo, desconforto e medo, até chegarmos ao diagnóstico: hiperplasia prostática; por enquanto, respiro mais aliviado, um diagnóstico que diminui em muito qualquer agressão mais desastrosa e improrrogável, um diagnóstico necessário para uma medicação adequada, mas é preciso seguir cauteloso e atento
   a descarga, a higiene, a lavação das mãos, o relógio esgotando o tempo, e sem planejar ou mesmo pensar, vou até o quarto e pego o case com meu sax
   o case é um estojo preto com alça, usado para guardar e transportar, devidamente protegido e desmontado em três partes, o sax, alguém já me disse, Esse tal de case mais parece um caixão funerário, pode ser, desperta curiosidade, mas enfim, estou com ele em uma das mãos, caminhando até o fusca, a porta aberta, inclino para frente o meu banco, coloco o estojo com o sax no banco de trás, esse carregamento não estava previsto, Tu tá enlouquecendo, professor, penso com um breve sorriso
   uma manhã ensolarada, céu de brigadeiro, limpo de nuvens, seguro e tranquilo, ideal para voar, mas também, prenúncio de mais um dia quente,  como tantos outros em março, aqui em Porto Alegre; o bairro silencioso, exceto pelo barulho nos trilhos do trensurb – o trem metropolitano de superfície que corta a região metropolitana da capital –, nenhum vento cortante nas ruas vazias, uma rotina monótona e simples a que estava acostumado, a vida escolar me espera
   passo pela porta, verifico mentalmente tudo que carrego, os planos de aula, o lanche, o chá e o case, abro o cadeado e afasto o portão, entro no fusca, o motor ligado, e a dúvida surge, Devo levar o sax? E a porta... eu fechei? Não lembro, tudo sendo feito no automático.
   uma regra simples, mas rígida, Fechar a porta, não posso ficar com essa dúvida, Bobagem, claro que fechei, eu sempre fecho, posso deixar para trás essa incerteza, Claro que devo ter fechado, mas o medo escondido nas sombras é real, não sei explicar direito essa desatenção; ao mesmo tempo, a ideia de voltar para verificar me parece absurda, um pequeno esquecimento do já feito
   respiro fundo, tento me convencer que não há motivo para voltar, a dúvida persiste, um buraco aberto na casa, a porta da frente, Porra, Marko! Deixa pra lá!
   a incerteza consumindo esses minúsculos segundos, olho para trás, abro a porta do fusca, e volto, a porta está fechada, sempre está, repito para mim que havia feito a coisa certa entre a decisão e a dúvida
   saio com o fusca, desço e fecho o portão, entro apressado e dirijo para a escola, sem pressa, as regras do trânsito precisam ser obedecidas estando atrasado ou não – de novo a coerência tentando caminhar junto –, chego e estaciono no pátio destinado aos professores, pego meus planos, o chá e o case imprevisto
   coloco o polegar no relógio-ponto, registro minha entrada na escola, tudo no último minuto antes do atraso, respiro aliviado, cheguei no tempo exato, mas sem tempo para cumprimentos – sempre em frente –, vou direto para o pátio encontrar a turma E
   as perguntas óbvias e os olhares surpresos precisam de explicação, Explico tudo na nossa sala de aula, continuo me perguntando por que eu trouxe essa confusão para mim, não deveria ter sucumbido ao impulso do sax com certeza, vou ter mais dificuldades que vantagens, é muito discutível essa atitude de me arriscar sem um plano, ir além do conhecimento, uma rebelião, espero que isso tudo se torne uma obra de arte, O que preciso esperar para que aconteça algo diferente? Quem é esse guardião do tempo e da mudança?
   sou um velho professor conhecido por ser antigo, gosto da fronteira entre o imaginário e o real, já gostei mais de observar as estrelas e a lua com um telescópio amador, ficar encantado com o céu que se ilumina com uma aurora diferente e mantém o fluxo das horas, dias e anos nessa luz, o eco de todas as eras, sei que não é uma questão de esperar, é difícil compreender que o tempo carrega em si a mudança, revela o que já sou, mas não mudei, gosto da imagem suave da ampulheta, a areia escorrendo lentamente, cada grão e cada escolha, um momento, uma oportunidade, não sei se ainda tenho disposição para tanta mudança, entro na sala de aula com muitas dúvidas do que esperar e também fazer, não sei como fazer minha própria transformação, abrir as portas para um mundo diferente, um outro jeito e o case na mão
um professor bagunceirinho (10)

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