domingo, 18 de fevereiro de 2024

Marcel Proust - A Prisioneira (Colocarei à parte)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira

continuando...

   Colocarei à parte, dentre esses dias em que me atrasava na casa da Sra. de Guermantes, um que para mim foi marcado por um pequeno incidente cujo cruel significado me escapou inteiramente e só o compreendi muito tempo depois. Naquele fim de tarde, a Sra. de Guermantes me dera, pois sabia que as apreciava, umas seringas vindas do Sul. [Siringa: Gênero de plantas arbustivas da família das oleáceas, muito comuns na Europa e na Ásia. (N. do T)] Quando, tendo deixado a duquesa, subi de volta para casa, Albertine já tinha regressado, e cruzei na escada com Andrée, a quem o aroma excessivamente forte das flores pareceu incomodar.

- Como, vocês já voltaram? -disse eu.

- Faz apenas um instante; mas Albertine tinha que escrever e me mandou embora. 

- Acha que ela tem em mente algum projeto censurável?

- De modo nenhum. Ela está escrevendo à tia, creio. Mas ela, que não gosta de cheiros fortes, não ficará nada contente com as suas siringas. 

- Então eu tive uma péssima ideia! Vou dizer a Françoise que as ponha no patamar da escada de serviço. 

- Se pensa que Albertine não sentirá o cheiro da siringa em você! Este cheiro e o da angélica são talvez os mais persistentes. Além disso, acho que Françoise foi fazer compras.

- Mas então, eu, que hoje estou sem minha chave, como é que poderei entrar?

- Ora, basta tocar a campainha, que Albertine lhe abrirá a porta. E depois, talvez Françoise tenha voltado nesse meio tempo.

   Despedi-me de Andrée. Logo no primeiro toque, Albertine veio me abrir a porta, o que foi bastante complicado, pois, como Françoise havia saído, Albertine não sabia onde acender a luz. Por fim, conseguiu fazer-me entrar, mas as flores de siringa a puseram em fuga. Coloquei-as na cozinha, de modo que, interrompendo a sua carta (não entendi por quê), minha amiga teve de ir ao meu quarto, de onde me chamou, e de estender-se em minha cama. Mais uma vez, no momento, não achei em tudo aquilo nada que não fosse muito natural, no máximo um tanto confuso, em todo caso insignificante. Ela escapara de ser surpreendida com Andrée e ganhara tempo apagando tudo, indo para o meu quarto para não deixar ver a sua cama em desordem e fingira estar escrevendo. Mas veremos tudo isso mais tarde, tudo isso que eu jamais soube se era verdadeiro.
   Salvo este único incidente, tudo se passava normalmente quando eu voltava da casa da duquesa. Ignorando Albertine se eu desejaria ou não sair com ela antes do jantar, encontrava eu de costume, na antecâmara, o seu chapéu, seu casaco, sua sombrinha, que ela deixara para qualquer eventualidade. Logo que os avistava, ao entrar, a atmosfera da casa tornava-se respirável. Eu sentia que, em vez de um ar rarefeito, a ventura é que a enchia. Estava salvo da minha tristeza, a vista desses nadas me fazia possuir Albertine, corria para ela. 
   Nos dias em que eu não descia à casa da Sra. de Guermantes, a fim de que o tempo me parecesse menos longo, durante aquela hora que precedia o regresso da minha amiga, eu folheava um álbum de Elstir ou um livro de Bergotte. 
   Então-como as próprias obras que parecem dirigir-se apenas à vista e ao ouvido exigem que, para desfrutá-las, nossa inteligência desperta colabore estreitamente com esses dois sentidos-eu fazia, sem perceber, que saíssem de mim os sonhos que Albertine suscitara outrora, quando não a conhecia ainda, e que a vida cotidiana havia extinto. Eu os lançava na frase do músico ou na imagem do pintor como um crisol, e deles alimentava a obra que estava lendo. E esta, sem dúvida, me parecia mais viva. Porém Albertine não ganhava menos em ser desse modo transportada de um dos dois mundos a que temos acesso e onde podemos situar alternativamente um mesmo objeto, em escapar assim à esmagadora pressão da matéria para nos recrearmos nos fluidos espaços do pensamento. De súbito acontecia-me, e por um instante, poder sentir pela tediosa moça ardentes afetos. Nesse momento, ela parecia uma obra de Elstir ou de Bergotte, eu experimentava uma exaltação momentânea por ela, vendo-a no recuo da imaginação e da arte. 
   Em breve, preveniam-me que ela acabava de regressar; ainda tinham ordem de não lhe pronunciar o nome se eu não estivesse sozinho, se, por exemplo, estivesse comigo Bloch, a quem eu obrigava a ficar mais um instante, de modo a que não se arriscasse a encontrar a minha amiga. Pois eu escondia que ela morava comigo, e até que a recebia em casa, tamanho era o medo de que um de meus amigos se enamorasse dela, fosse esperá-la fora, ou que, no instante de um encontro na antecâmara ou no corredor, ela pudesse fazer um sinal e marcar um encontro. Depois eu ouvia o ruído da saia de Albertine, que se dirigia para o quarto, pois por discrição e também, sem dúvida, por aquelas tentações com que, no tempo dos nossos jantares na Raspeliere, esforçava-se para que eu não ficasse enciumado, ela não vinha para o meu quarto, sabendo que não estava sozinho. Mas não era só por isto, eu a compreendia logo. Lembrava-me, havia conhecido uma primeira Albertine; depois, bruscamente, ela se mudara numa outra, a atual. E pela mudança não podia eu responsabilizar a ninguém, só a mim mesmo. Tudo o que ela teria logo me confessado facilmente, de bom grado, quando éramos bons camaradas, deixara de expandir-se desde que julgara que eu a amava, ou talvez sem pronunciar o nome do Amor, adivinhara um sentimento inquisitorial que pretende saber, entretanto sofre ao saber, e procura saber ainda mais. Desde aquele dia ela me ocultara tudo. Desviava-se do meu quarto se pensava que eu estava, nem mesmo, muitas vezes, com uma amiga e sim com um amigo, ela cujos olhos se interessavam outrora tão vivamente quando lhe falava de uma moça:

- Convém tratar de convidá-la, gostaria de conhecê-la. 

- Mas ela tem aquilo que você chama de maus modos. 

- Justamente, seria bem mais divertido. - 

   Naquele momento, eu poderia talvez saber tudo. E mesmo quando, no pequeno cassino, ela afastara os seios dos de Andrée, não creio que o fizesse devido à minha presença mas à de Cottard, o qual lhe teria dado fama, segundo pensava sem dúvida, de má reputação. Entretanto, já então ela começara a congelar-se, as palavras confiantes já não saíam de seus lábios, seus gestos eram reservados. Depois afastara de si mesma tudo o que teria podido emocionar-me. Às partes de sua vida que eu não conhecia, dava um caráter ao qual se fazia cúmplice a minha ignorância, para sublinhar o que possuía de inofensivo. E agora, completada a transformação, ela ia diretamente a seu quarto, se eu não estivesse sozinho, não só para não me incomodar, mas para me mostrar que era despreocupada em relação aos outros. Havia só uma coisa que ela nunca mais faria para mim, que ela só teria feito no tempo em que isso me fora indiferente, que teria feito facilmente por isso mesmo, era justamente confessar. Eu estaria, para sempre, como um juiz, reduzido a tirar conclusões incertas de imprudências de linguagem que não eram talvez inexplicáveis sem recorrer à culpabilidade. E ela sempre me sentiria ciumento e juiz.
   Nosso noivado assumia uma condição de processo e dava-lhe a timidez de uma pessoa culpada. Agora ela mudava de assunto quando se tratava de pessoas, homens ou mulheres, que não fossem velhos. Quando ela ainda não desconfiava que lhe tinha ciúmes é que eu deveria ter indagado o que desejava saber. É preciso aproveitar aquele tempo.
   É então que nossa amiga nos fala dos seus prazeres e até dos meios que emprega para dissimulá-los aos outros. Agora, já não teria me confessado como fizera em Balbec, um tanto porque era verdade, um tanto para se escusar de não mostrar mais sua ternura por mim, pois eu já então a deixava cansada, e ela havia percebido, pela minha amabilidade com ela, que não havia necessidade de me agradar tanto quanto aos outros para obter de mim mais do que deles-ela já não teria me confessado como então: 

"Acho estúpido deixar ver que se ama; comigo, é o contrário: quando uma pessoa me agrada, finjo não prestar atenção nela. Assim, ninguém fica sabendo de coisa alguma." 

   Como! Era a mesma Albertine de hoje, com suas pretensões à franqueza e a ser indiferente a todos, que me dissera aquilo! Não teria me enunciado essa regra agora! 
   Ao conversar comigo, contentava-se em aplicá-la dizendo acerca de tal ou qual pessoa que podia inquietar-se:

- Ah! Não sei, não olhei para ela, é insignificante demais.

   E, de vez em quando, para antecipar-se às coisas que eu poderia acabar sabendo, fazia dessas confissões cuja entonação, antes que se conheça a realidade que elas são encarregadas de deturpar, de inocentar, já denuncia como sendo mentiras. 
   Escutando os passos de Albertine com o confortável prazer de imaginar que ela não voltaria a sair aquela noite, admirava-me de que, para essa moça, com quem outrora acreditara jamais poder travar relações, voltar todos os dias para casa significava exatamente entrar em minha casa. O prazer feito de mistério e de sensualidade, que eu experimentara, fugitivo e fragmentário em Balbec, na noite em que ela tinha vindo dormir no hotel, estava completo, estabilizado, enchia a minha casa, outrora vazia, de uma permanente provisão de brandura doméstica, quase familiar, dispersa até pelos corredores, e na qual todos os meus sentidos, ora de fato, ora nos momentos em que eu estava sozinho, em imaginação e pela expectativa do regresso, se nutriam sossegadamente. Ao ouvir fechar-se a porta do quarto de Albertine, caso eu estivesse na companhia de um amigo, apressava-me a fazê-lo sair, só o deixando quando estava certo de que ele já se achava na escada, de que eu descia alguns degraus se fosse necessário. 
   No corredor, Albertine vinha ao meu encontro.

- Olhe, enquanto mudo a roupa, mando-lhe Andrée, ela subiu um momentinho para lhe dar boa-noite. -

   E, estando ainda envolvida no seu grande véu cinzento, que descia da touca de chinchila e que eu lhe havia dado em Balbec, retirou-se e voltou para seu quarto, como se tivesse adivinhado que Andrée, encarregada por mim de vigiá-la, ia, ao me contar numerosos detalhes, ao fazer menção ao encontro delas com uma pessoa conhecida, trazer alguma precisão às regiões vagas em que se desenrolara o passeio que haviam feito o dia inteiro e que eu não pudera imaginar.
   Os defeitos de Andrée tinham se denunciado; ela não era mais tão agradável como quando a conhecera. Havia nela, agora, à flor da pele, uma espécie de inquietação acre, prestes a recrudescer como no mar uma rajada de vento, se por acaso eu lhe falasse de alguma coisa que fosse agradável para Albertine e para mim. Isto não impedia que Andrée fosse melhor para mim, gostasse mais de mim e muitas vezes tive a prova disso -do que de pessoas mais amáveis. Mas o menor ar de felicidade que se tivesse, se não fosse causado por ela, produzia-lhe uma impressão nervosa, desagradável como o barulho de uma porta fechada com muita força. Ela admitia os sofrimentos em que não tomasse parte, não os prazeres; se me via doente, afligia-se, lastimava-se, teria cuidado de mim. Mas, se eu tivesse uma satisfação, tão insignificante como espreguiçar-me com ar de beatitude, ao fechar um livro, e dizer:

- Ah, acabo de passar duas horas encantadoras a ler tal livro agradável -, estas palavras, que teriam dado prazer a minha mãe, a Albertine, a Saint-Loup, excitavam em Andrée uma espécie de reprovação, talvez simplesmente mal-estar nervoso. Minhas satisfações causavam-lhe uma irritação que ela não podia ocultar. Esses defeitos eram completados por outros mais graves; um dia em que eu falava daquele rapaz tão entendido em assuntos de corridas, jogos e golfe, e tão inculto quanto ao resto, que eu encontrara com o pequeno grupo em Balbec, Andrée começou a fazer troça: 

- Sabe? O pai dele cometeu um roubo, quase foi processado. Tornaram-se ainda mais petulantes, mas eu me divirto contando o caso a todos. Gostaria que me processassem por denúncia caluniosa. Que belo depoimento eu faria! -

   Seus olhos faiscavam. Ora, eu soube que o pai não cometera nenhum ato desabonador, que Andrée o sabia tão bem como qualquer um. No entanto, julgara-se desprezada pelo filho, havia procurado algo que o pudesse prejudicar, cobri-lo de vergonha, inventara todo um romance de depoimentos que imaginara e ela seria chamada a fazer e, à força de repetir os detalhes dessa invenção, talvez ela própria ignorasse que tudo aquilo não era verdade.
   Tal como se havia tornado (e até sem seus ódios curtos e doidos), não teria desejado vê-la, nem que apenas fosse por causa daquela suscetibilidade malévola que rodeava de um cinturão acre e glacial a sua verdadeira índole, mais calorosa e melhor. Porém as informações que só ela podia me dar sobre a minha amiga interessavam-me demais para que eu desprezasse uma tão rara ocasião para sabê-las.
   Andrée entrava, fechava a porta atrás de si; elas haviam encontrado uma amiga, e Albertine jamais me falara dela.

- Que foi que conversaram?

- Não sei, pois aproveitei que Albertine não estava sozinha para ir comprar lã.

- Comprar lã? 

- Sim, foi Albertine quem me pediu.

- Mais uma razão para não ir, era talvez de propósito para afastá-la. 

- Mas ela me havia pedido antes de encontrar a amiga. 

- Ah! - respondia eu, recobrando o fôlego. E logo a suspeita me assaltava de novo: - Mas quem sabe se ela não tinha marcado um encontro de antemão com essa amiga e não combinara um pretexto para estar segura de ficar sozinha quando quisesse?-Além disso, não estaria eu certo de que a velha hipótese (a de que Andrée só me dizia a verdade) fosse a boa? Andrée talvez estivesse mancomunada com Albertine. Amor, dizia eu comigo em Balbec, a gente tem por uma pessoa cujos atos principalmente nos despertam o ciúme; sentimos que, se ela no-los contasse todos, talvez nos curássemos facilmente de amar. O ciúme, por mais habilmente dissimulado que seja por aquele que o sente, é bem depressa descoberto por aquela que o inspira, e que por sua vez usa de habilidade. Ela procura nos iludir acerca de que nos possa tornar infelizes, e o consegue, pois, àquele que não está prevenido, por que razão uma frase insignificante revelaria as mentiras que ela esconde? Não a distinguimos das outras; dita com temor, é ouvida sem atenção. Mais tarde, quando estivermos a sós, voltaremos àquela frase, e ela não nos parecerá perfeitamente adequada à realidade. Mas essa frase, lembramo-nos bem dela? Parece nascer em nós, espontaneamente, a seu respeito e quanto à exatidão de nossa lembrança, uma dúvida do tipo daquelas que fazem com que, no decurso de certos estados nervosos, a gente nunca possa lembrar se correu ou não o ferrolho, e isto tanto na qüinquagésima como na primeira vez; dir-se-ia que se pode recomeçar indefinidamente o ato sem que ele jamais seja acompanhado de uma lembrança exata e libertadora. Pelo menos podemos fechar a porta uma qüinquagésima primeira vez. Ao passo que a frase inquietante está no passado, numa audição incerta, cuja renovação não depende de nós. Então, exercemos nossa atenção sobre outras pessoas, que não escondem nada, e o único remédio, que absolutamente não queremos, seria ignorar tudo para não ter o desejo de saber melhor. Logo que o ciúme é descoberto, é considerado por aquela de quem é o objeto como uma desconfiança que autoriza a traição. Além disso, para tentar saber alguma coisa, nós é que tomamos a iniciativa de mentir, de enganar. Andrée e Aimé bem que nos prometem não dizer nada, mas o farão? Bloch não pôde prometer nada, visto que nada sabia, e, por pouco que converse com cada um dos três, Albertine, com a ajuda do que Saint-Loup teria denominado "cotejo", saberá que lhe mentimos quando pretendíamos ser indiferentes a seus atos e moralmente incapazes de mandá-la vigiar. Assim ocorrendo-relativamente ao que fazia Albertine-, à minha infinita dúvida habitual, indeterminada demais para não ser indolor, e que era para o ciúme o que são para o desgosto esses começos de esquecimento em que o sossego nasce do vago-o pequeno fragmento de resposta que me trazia Andrée colocava de imediato novas perguntas; eu não conseguira, ao explorar uma parcela da grande zona que se estendia ao meu redor, mais que afundar para dentro dela aquele incognoscível que é para nós, quando procuramos efetivamente nos representá-la, a vida real de uma outra pessoa. Continuava a interrogar Andrée, enquanto Albertine, por discrição e para me deixar (tê-lo-ia adivinhado?) todo o lazer de questionar sua amiga, prolongava o ato de despir-se no quarto.

- Creio que o tio e a tia de Albertine gostam muito de mim - disse eu estouvadamente a Andrée, sem pensar no seu temperamento. E logo vi o seu rosto viscoso alterar-se como um xarope azedo, parecendo turvar-se para sempre. Sua boca se fez amarga. Nada mais restava em Andrée daquela alegria juvenil que, como todo o pequeno grupo e apesar de sua natureza enfermiça, ela ostentava no ano de minha primeira temporada em Balbec, e que agora (é verdade que Andrée estava um pouco mais velha) se eclipsava tão depressa nela. Mas eu ia fazê-la involuntariamente renascer antes que me deixasse para ir jantar em casa.- Alguém me fez hoje um imenso elogio de sua pessoa - disse-lhe. E logo um raio de alegria iluminou seu olhar, ela parecia amar-me de fato. Evitava olhar-me, mas ria no vago com dois olhos subitamente bem redondos.

- Quem foi? - perguntou com um interesse ingênuo e glutão. Disse-lhe um nome e, fosse quem fosse, ela estava feliz.

   Depois, chegava a hora de ir embora, ela me deixava. Albertine voltava para junto de mim; tirara o vestido e agora trazia um dos peignoirs de crepe da China, ou dos chambres japoneses, cuja descrição havia pedido à Sra. de Guermantes e para vários dos quais eu recebera certos detalhes suplementares da Sra. Swann, por meio de uma carta que principiava por estas palavras: "depois de seu longo eclipse, julguei, ao ler a sua carta relativa aos meus teagown, receber notícias de uma alma do outro mundo." 

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