domingo, 7 de abril de 2024

Edgar Allan Poe - Contos: Uma Descida ao Maelstrom (04)

Edgar Allan Poe - Contos


Uma Descida ao Maelstrom
Título original: A Descent into the Maelstrom
Publicado em 1841

continuando...

« Como eu sofresse o efeito doloroso da náusea da descida, agarrei-me instintivamente ao barril com mais força e fechei os olhos. Durante alguns segundos não ousei abri-los, esperando uma destruição instantânea e admirando-me de não estar nas angústias supremas da imersão. Mas os segundos decorriam; vivia ainda. A sensação da queda cessara, e o movimento do navio assemelhava-se muito ao que era já, quando fôramos levados na cintura de espuma, com a diferença de que o barco estava mais inclinado. Encorajei-me de novo e olhei uma vez mais para o que me rodeava.

« Jamais esquecerei as sensações de medo, de horror e admiração que senti ao olhar à minha volta. O barco parecia suspenso como por magia, a meio caminho da sua queda, na superfície interior de um funil de uma vasta circunferência, de uma profundidade prodigiosa, e cujas paredes admiravelmente polidas poderiam parecer de ébano, se não fosse a surpreendente velocidade com a qual elas piruetavam e a brilhante e horrível claridade que elas repercutiam sob os raios da lua que, desde o buraco circular que já descrevi, deixava cair um rio de ouro e de esplendor ao longo das paredes negras e penetrava até à mais íntima profundeza do abismo.

« Primeiro, eu estava demasiado perturbado para observar fosse o que fosse com alguma exatidão. A explosão geral desta magnificência aterradora era tudo o que se podia ver. Contudo, quando vim um pouco a mim, o meu olhar dirigiu-se instintivamente para o fundo. Nessa direção, podia alongar o olhar sem obstáculo por causa da posição do nosso barco, que estava suspenso sobre a superfície inclinada do abismo; corria sempre sobre a quilha, isto é, a sua ponte formava um plano paralelo ao da água que fazia como um talude inclinado a 45 graus, de forma que parecia sustentarmo-nos sobre um lado. Não podia deixar de reparar, contudo, que não tinha mais dificuldade em me manter com as mãos e pés nesta posição do que se estivéssemos em plano horizontal, e isso acontecia, suponho, devido à velocidade com que nós girávamos.

« Os raios da lua pareciam procurar o fim do fundo do abismo; no entanto, não podia distinguir nitidamente, por causa de um espesso nevoeiro que envolvia tudo e sobre o qual pairava um magnífico arco-íris semelhante a esse ponto estreito e vacilante que os muçulmanos afirmam ser a passagem entre o Tempo e a Eternidade. Este nevoeiro, ou esta espuma, era sem dúvida ocasionado pelo choque das grandes paredes do funil; quanto ao rugido que subia desse nevoeiro para o céu, não tentarei descrevê-lo.

« A nossa primeira escorregadela para o abismo, a partir do círculo de espuma, tinha-nos levado para uma grande distância da vertente; mas posteriormente a nossa descida não se efetuou tão rapidamente, ao aproximarmo-nos. Nós navegámos sempre em círculos, que por vezes nos projetavam para cima centenas de jardas e outras vezes faziam-nos descrever uma volta completa, em torno do turbilhão. A cada volta, aproximávamo-nos do abismo, lentamente, é certo, mas de uma maneira muito sensível. Olhei em redor, sobre o vasto deserto de ébano que nos retinha, e apercebi-me que o nosso barco não era o único objeto que caíra nas garras do turbilhão. Por cima e por baixo de nós viam-se destroços de barcos, grandes pedaços de madeira, troncos de árvores, bem como um bom número de artigos mais pequenos, tais como peças de mobiliário, malas partidas, barris e aduelas. Já descrevi a curiosidade sobrenatural que substituíra os meus primeiros terrores. Parecia-me que ela aumentava à medida que me aproximava do meu espantoso destino. Comecei então a espiar com um estranho interesse os numerosos objetos que flutuavam junto de nós. Era preciso que eu estivesse a delirar, porque encontrava mesmo uma espécie de divertimento a calcular as velocidades relativas na descida para o turbilhão de espuma.

« Este pinheiro, surpreendi-me uma vez a dizer, será a primeira coisa que dará o terrível mergulho e que desaparecerá; e fiquei muito desapontado de ver que um barco da marinha mercante holandesa tomara a dianteira e se afundara primeiro. O decorrer do tempo, depois de ter feito conjeturas desta natureza, e de me ter sempre enganado, este facto — o facto do meu invariável erro — lançou-me numa ordem de reflexões que fizeram de novo tremer os meus membros e bater o meu coração ainda mais apressadamente.  

« Não era um novo terror que me afetava assim, mas o nascer de uma esperança bem mais emocionante. Esta esperança surgia em parte da memória, em parte também da observação presente. Recordei a imensa variedade de destroços que juncavam a costa de Lofoden e que todos eram absorvidos e reenviados para o Moskoe-Strom. Estes artigos, na maioria, eram desfeitos da maneira mais extraordinária — despedaçados, esfolados, a ponto de terem o aspecto de estarem cheios de pontas e lascas. Mas recordava-me distintamente então de que havia alguns que não estavam desfigurados por completo. Não podia agora reparar nesta diferença supondo que os fragmentos esfolados fossem os únicos que tivessem sido completamente absorvidos; os outros, ao entrarem no turbilhão num período bastante avançado da maré, ou depois de terem entrado ali, bastante lentamente, para não atingir o fundo antes do fluxo ou do refluxo, conforme os casos. Admiti como possível, nos dois casos, que tivessem subido rodopiando de novo até ao nível do oceano sem sofrer a sorte dos que tinham sido arrastados mais cedo ou absorvidos mais rapidamente. Fiz também três observações importantes: a primeira, que, regra geral, quanto mais pesado é o corpo, mais rápida é a descida; a segunda, que duas massas tendo um comprimento igual, uma esférica e a outra seja qual for a forma, é maior a velocidade de descida para a esférica; a terceira, que tendo duas massas de um volume igual, uma cilíndrica e a outra seja de qual for a forma, a cilíndrica era absorvida mais lentamente.

« Desde o meu salvamento, tive a este respeito algumas conversas com um velho mestre-escola do distrito, e foi ele que me ensinou o emprego das palavras cilindro e esfera. Explicou-me — mas esqueci a explicação — que aquilo que eu observava era a consequência natural da forma dos destroços flutuantes e demonstrou-me como um cilindro girando num turbilhão, apresentava mais resistência à sucção e era atraído com mais dificuldade do que um corpo de outra forma qualquer e de um volume igual.

« Não hesitei por muito tempo sobre o que tinha a fazer. Resolvi agarrar-me com confiança à barrica a que me conservara sempre abraçado, desatar o cabo que a retinha à bitácula, e atirar-me com ela ao mar. Esforcei-me, por sinais, por despertar a atenção do meu irmão sobre os barris flutuantes, ao pé dos quais nós passávamos e fiz tudo o que pude para lhe fazer compreender o que ia tentar. Julguei, passado algum tempo, que ele adivinhara o meu desígnio; mas tivesse-o ou não compreendido, sacudiu a cabeça com desespero e recusou abandonar o lugar junto da argola. Era-me impossível agarrá-lo; a conjuntura não permitia demoras. Assim, com uma amarga angústia, abandonei-o ao seu destino; amarrei-me à barrica com o cabo que a amarrara à torre de vigia e, sem hesitar nem mais um momento, precipitei-me com ela para o mar.

« O resultado foi precisamente a que eu esperava. Como sou eu próprio que lhe conto esta história, como vê, escapei — e como já conhece a maneira que empreguei para me salvar, pode desde já prever tudo o que teria para lhe dizer — abreviarei a minha história e irei direito à conclusão. 

« Decorrera cerca de uma hora desde que abandonara o barco quando ele, depois de ter descido a uma grande distância deu, uma após outra, três ou quatro voltas precipitadas e, arrastando o meu bem-amado irmão, mergulhou de proa, rapidamente e para sempre, no caos da espuma.

« O barril ao qual eu estava amarrado vogava já quase até metade da distância que separava o fundo do abismo do sítio de onde me precipitara pela borda, quando ocorreu uma grande mudança no turbilhão. A vertente das paredes do vasto funil tomou-se cada vez menos escarpada. As evoluções do turbilhão tomaram-se gradualmente menos rápidas. Pouco a pouco a espuma e o arco-íris desapareceram, e o fundo do abismo pareceu elevar-se lentamente. 

« O céu tornou-se claro, o vento abrandou, e a Lua cheia desapareceu radiosamente a oeste, quando me encontrei à superfície do oceano, mesmo em frente da costa de Lofoden, e por cima do lugar onde antes estava o turbilhão de Moskoe-Strom. Era a hora da acalmia, mas o mar elevava-se ainda em vagas enormes, em consequência da tempestade. Fui levado violentamente para o canal de Strom e lançado em poucos minutos à costa, entre os pescadores. Um barco apanhou-me, esgotado de fadiga, e, embora o perigo tivesse desaparecido, a recordação destes horrores tinham-me tomado mudo. Os que me levaram para bordo eram meus velhos camaradas do mar e companheiros de todos os dias, mas não me reconheceram, como não teriam reconhecido um homem que viesse do mundo dos espíritos. Os meus cabelos, que na véspera eram de um negro de asas de corvo, estavam tão brancos como os vê agora. Disseram-me também que toda a expressão da minha fisionomia estava mudada. Contei-lhes a minha história — não quiseram acreditar. Conto-lhe agora a si, mas mal me atrevo a esperar que o senhor acredite mais em mim que os pescadores de Lofoden.»  

Fim

 continua na página 377...
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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