segunda-feira, 15 de abril de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (Combray, de longe - d)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(d) 

continuando...

   Até mesmo quando tínhamos de ir pelas ruas que ficavam atrás do templo e de onde não o avistávamos, tudo parecia ordenado em relação ao campanário, que surgia aqui e ali entre as casas, talvez ainda mais impressionante ao assomar assim sem a igreja. É verdade que existem vários outros que são muito mais belos vistos dessa maneira, e guardo na lembrança vinhetas de torres acima dos telhados, com outra feição artística que não as que compunham as tristes ruas de Combray. Nunca hei de esquecer, em uma curiosa cidade da Normandia próxima a Balbec, dois encantadores palácios do século xviii, que por muitos motivos me são caros e veneráveis, e entre os quais, quando olhamos do belo jardim que desce das escadarias até o rio, se eleva a agulha gótica de uma igreja por eles oculta e que parece terminar e coroar suas fachadas, mas de um modo tão diferente, tão precioso, tão frisado, tão róseo, tão polido, que bem se vê que não faz parte delas, como não faz parte de dois belos seixos unidos, entre os quais está presa na praia a ponta purpurina e denticulada de alguma concha afuselada em agulha e rebrilhante de esmalte. Em Paris também, em um dos bairros mais feios da cidade, sei de uma janela de onde se avista, após um primeiro, um segundo e até um terceiro plano constituídos pelos telhados amontoados de várias ruas, uma torre violácea, às vezes avermelhada, às vezes também, nas melhores “provas” que lhe tira a atmosfera, de um negro decantado de cinzas, a qual não é mais que o domo de Santo Agostinho e que dá àquela vista de Paris o caráter de certas vistas de Roma, por Piranesi.[1] Mas como a memória, por mais gosto com que as executasse, não conseguisse pôr nessas pequenas gravuras o que eu de há muito havia perdido, isto é, o sentimento que nos induz, não a considerar uma coisa como um espetáculo, mas a tê-la como um ser sem equivalente, nenhuma delas domina toda uma parte profunda de minha vida como a lembrança daqueles aspectos do campanário de Combray nas ruas que ficam atrás da igreja. Se algumas vezes, ao ir buscar às cinco horas as cartas no correio, a gente o avistava, a algumas casas da nossa, à esquerda, erguendo bruscamente, de um cimo isolado, a linha das cumeeiras; se outras vezes, ao ir saber notícias da sra. Sazerat, vendo que era preciso dobrar a segunda rua após o campanário, seguia-se com os olhos a mesma linha que, depois de se haver elevado, tornava a baixar em sua outra vertente; se outras vezes ainda seguíamos além, a caminho da estação, e o víamos obliquamente, mostrando de perfil arestas e superfícies novas, como um sólido surpreendido em um desconhecido momento de sua revolução; ou se, das margens do Vivonne, a abside, musculosamente retesada pela perspectiva, parecia brotar do esforço que fazia o campanário para arremessar sua flecha no coração do céu, era sempre a ele que cumpria voltar, a ele, que dominava tudo, admoestando as casas de um imprevisto píncaro, erguido diante de mim como o dedo de Deus, cujo corpo estivesse oculto na multidão dos humanos, sem que eu por isso o confundisse com ela. E ainda hoje, em alguma grande cidade da província ou em algum bairro de Paris que não conheço bem, quando um transeunte “que me mostra o caminho” me indica ao longe, como ponto de referência, uma torre de hospital, um campanário de convento a erguer a ponta de sua torre eclesiástica na esquina de uma rua que eu devo tomar, por pouco que minha memória lhe possa obscuramente encontrar algum traço de semelhança com a figura amada e desaparecida, se acaso o transeunte se volta para ver se não me perco, há de espantar-se ao me surpreender, esquecido do passeio ou da obrigação, ali parado diante da torre, horas e horas, imóvel, procurando lembrar-me, sentindo, no fundo de mim, terras reconquistadas ao esquecimento, que vão secando e delineando seu perfil; e nesse instante, e mais ansiosamente do que ainda há pouco quando lhe pedia que me informasse, continuo a procurar o caminho, dobro uma rua… mas em meu coração…
   Ao voltar da missa, encontrávamos seguidamente o sr. Legrandin[2] que, retido em Paris por suas atividades de engenheiro, não podia, além das férias, vir à sua propriedade de Combray senão no sábado à tarde até segunda de manhã. Era um desses homens que, fora de uma carreira científica em que aliás venceram brilhantemente, possuem uma cultura muito diversa, literária, artística, que sua especialização profissional não utiliza e de que se beneficia sua conversação. Mais letrados que muitos literatos (não sabíamos naquela época que o sr. Legrandin gozava de certa reputação como escritor e ficamos muito espantados ao ver que um músico célebre compusera uma melodia sobre versos seus), dotados de mais “facilidade” que muitos pintores, imaginam que seu teor de vida não é o que lhes conviria e empregam, em suas ocupações positivas, ou uma indiferença mesclada de fantasia, ou uma aplicação constante, soberba, depreciativa, amarga e conscienciosa. Alto, de belo porte, rosto pensativo e fino de longos bigodes loiros, olhos azuis e desencantados, de uma polidez refinada, causeur como não conhecíamos outro, era, para minha família, que sempre o citava como exemplo, o tipo do homem de escol, que sabia levar a vida da maneira mais nobre e delicada. Minha avó apenas lhe censurava falar um tanto bem demais, muito como um livro, não ter em sua linguagem o natural que havia em suas gravatas lavallière sempre flutuantes, em seu casaco solto, quase de colegial. Espantava-se também das fogosas tiradas em que ele não raro se lançava contra a aristocracia, a vida mundana, o esnobismo, “certamente o pecado em que pensa são Paulo, quando fala do pecado para o qual não há remissão”.[3] 
   Constituía a ambição mundana um sentimento que minha avó era tão incapaz de experimentar e quase de compreender que lhe parecia de todo inútil empregar tamanho ardor em combatê-la. Aliás, não achava de muito bom gosto que o sr. Legrandin, cuja irmã era casada, perto de Balbec, com um gentil-homem da Baixa Normandia, se entregasse a ataques tão violentos contra os nobres, chegando até a censurar a Revolução de não os haver guilhotinado a todos. 

— Salve, amigos! — dizia ele, vindo ao nosso encontro. — Como são felizes em se demorarem tanto por aqui; amanhã tenho de regressar a Paris, para meu tugúrio. Oh! — acrescentava, com aquele sorriso docemente irônico e desenganado, meio distraído, que lhe era próprio. — É verdade que lá em casa há toda sorte de coisas inúteis. Só lhe falta o necessário, um grande pedaço de céu como aqui. Trate de conservar sempre um pedaço de céu acima de sua vida, meu menino — acrescentava, voltando-se para mim. — Tem uma bela alma, de qualidade rara, uma natureza de artista, não a deixe em falta do que lhe é preciso.

   Quando, ao regressarmos, nos mandava minha tia perguntar se a sra. Goupil não tinha chegado tarde à missa, éramos incapazes de lhe prestar a informação pedida. Em troca, aumentávamos sua preocupação dizendo-lhe que se achava na igreja um pintor que copiava o vitral de Gilberto, o Mau. Françoise, mandada em seguida ao armazém, voltava nas mesmas, em vista da ausência de Théodore, cuja dupla profissão de mestre do coro, com parte no serviço da igreja, e de empregado de balcão, proporcionava-lhe, com suas relações em todos os meios, um saber universal. 

— Ah! — suspirava minha tia —, quem me dera que já estivesse na hora da Eulalie! Só ela me poderia dizer. 

   Eulalie era uma rapariga coxa, ativa e surda, que se “retirara” após a morte da sra. de la Bretonnerie, em cuja casa estivera empregada desde menina e que ultimamente alugava ao lado da igreja um pequeno quarto, do qual descia a toda hora para os ofícios religiosos, ou, fora destes, para rezar um pouquinho ou dar uma ajuda a Théodore; no resto do tempo ia visitar pessoas doentes como tia Léonie, a quem contava o que se passara na missa ou nas Vésperas.[4] Não desdenhava de acrescentar algum extraordinário à pequena pensão que lhe dava a família dos antigos patrões, indo de tempo em tempo cuidar da roupa-branca do cura ou de qualquer outra personalidade notável do mundo clerical de Combray. Usava acima de uma manta preta uma pequena touca branca, quase de religiosa; e uma doença de pele lhe dava a parte das faces e ao nariz recurvo o tom róseo vivo da balsamina. Suas visitas constituíam a grande distração de tia Léonie, que a mais ninguém recebia, a não ser o senhor cura. Pouco a pouco minha tia afastara os visitantes, porque tinham todos o defeito de pertencer a uma ou outra das duas categorias de gente que ela detestava. Uns, os piores, de quem se desembaraçara primeiro, eram aqueles que lhe aconselhavam que não se sugestionasse, e professavam, ainda que negativamente e só o manifestando por certos silêncios de desaprovação ou por certos sorrisos de dúvida, a doutrina subversiva de que um passeiozinho ao sol e um bom bife sangrento (quando ela guardava catorze horas no estômago dois miseráveis goles de água de Vichy!) lhe fariam muito mais bem que seu leito e seus remédios. A outra categoria compunha-se das pessoas que pareciam acreditar que ela estava mais gravemente enferma do que pensava e tão gravemente enferma quanto o dizia. Assim, aqueles a quem deixara subir após algumas hesitações e diante das oficiosas instâncias de Françoise e que, durante a visita, haviam demonstrado o quanto eram indignos do favor que lhes concedia, arriscavam timidamente um: “Não acha que se a senhora se sacudisse um pouco por um dia bonito…”, ou que, pelo contrário, depois que ela lhes dissera: “Estou muito mal, é o fim, meus pobres amigos”, lhe haviam respondido: “Ah!, quando não se tem saúde! Mas a senhora ainda irá longe”, tanto estes como aqueles podiam ficar certos de que nunca mais seriam recebidos. E se Françoise se divertia com o ar assustado de tia Léonie, quando de seu leito avistava na rua do Espírito Santo uma dessas pessoas que tinham o ar de quem ia entrar, ou quando ouvia um toque de campainha, ainda ria muito mais, como de uma boa partida, das manobras sempre vitoriosas de minha tia para despachar o visitante e da cara desconcertada que fazia este ao ter de voltar; e, no fundo, admirava sua patroa, que julgava superior a toda aquela gente, visto que não os queria receber. Em suma, minha tia exigia, ao mesmo tempo em que a aprovassem em seu regime, que a lamentassem por seus padecimentos e que a tranquilizassem quanto ao futuro.  
   Nisso é que Eulalie primava. Podia minha tia dizer-lhe vinte vezes em um minuto: “É o fim, minha pobre Eulalie”, que vinte vezes Eulalie respondia: “Conhecendo a sua doença como a senhora conhece, há de chegar aos cem anos, como ainda ontem me dizia a senhora Sazerin”. (Uma das mais firmes crenças de Eulalie, e a que não conseguira abalar o imponente número dos desmentidos trazidos pela experiência, era a de que a sra. Sazerat se chamava sra. Sazerin.)

— Não peço para chegar aos cem — retrucava minha tia, que preferia não dessem a sua existência um limite preciso.

   E como Eulalie, além disso, sabia como ninguém distraí-la sem a fatigar, suas visitas, que se realizavam regularmente todos os domingos, salvo impedimento imprevisto, eram para minha tia um prazer cuja expectativa a mantinha naqueles dias em um estado a princípio agradável, mas logo depois doloroso como uma fome excessiva, por pouco que Eulalie se atrasasse. Muito prolongada, aquela volúpia de esperar por Eulalie se transformava em suplício, e minha tia não cessava de olhar as horas, bocejava, sentia tonturas. O toque da campainha de Eulalie, se ressoava no fim do dia, quando não mais a esperava, fazia-a quase se sentir mal. Na realidade, aos domingos, não pensava senão naquela visita e, mal acabado o almoço, Françoise tinha pressa de que deixássemos a mesa, a fim de que ela pudesse subir para “entreter” minha tia. Mas (sobretudo a partir do instante em que o bom tempo se instalava em Combray) muito depois que a hora altiva do meio-dia, descida da torre de Santo Hilário que ela armoriava com os doces florões momentâneos de sua coroa sonora, vibrava em torno de nossa mesa, junto ao pão bento, também chegado familiarmente da igreja, nós ainda nos deixávamos ficar sentados diante dos pratos das Mil e Uma Noites, adormentados pelo calor e principalmente pela refeição. Pois, ao fundo permanente de ovos, de costeletas, de batatas, de compotas, de biscoitos, que nem sequer nos anunciava mais, Françoise acrescentava — de acordo com os trabalhos dos campos e pomares, o fruto da pesca, as surpresas do comércio, as amabilidades dos vizinhos e seu próprio gênio inventivo, e de tal forma que nosso cardápio, como essas quatro-folhas que esculpiam no século xiii à entrada das catedrais, refletia de certo modo o ritmo das estações e os episódios da vida — um rodovalho, porque a peixeira lhe garantira que estava fresco, um peru, porque descobrira um esplêndido no mercado de Roussainville-le-Pin, alcachofras com tutano, porque ainda não as preparara dessa maneira, uma perna de carneiro assada, porque o ar livre dá apetite e teria tempo de “baixar” dentro de sete horas, espinafres para variar, damascos, porque constituíam ainda uma raridade, groselhas, porque dali a quinze dias não haveria mais, framboesas, porque o sr. Swann as trouxera expressamente, cerejas, por serem as primeiras que dava a cerejeira do quintal depois de dois anos de esterilidade, o requeijão de que eu tanto gostava outrora, um doce de amêndoas, porque o encomendara na véspera, um brioche, porque era nossa vez de “oferecê-lo”. Depois de tudo, feito expressamente para nós, mas dedicado em particular a meu pai, era-nos oferecido um creme de chocolate, inspiração e atenção pessoal de Françoise, fugaz e leve como uma obra de circunstância onde ela pusera todo o seu talento. Aquele que se recusasse a provar, dizendo: “Já terminei, não tenho mais fome”, ter-se-ia imediatamente rebaixado ao nível desses grosseiros que, até no presente que lhe faz um artista de uma obra sua, examinam o peso e o material, quando o que vale é a intenção e a assinatura. Deixar no prato uma gota que fosse, denotaria a mesma impolidez que se levantar a gente diante do próprio compositor, antes de terminada a audição.
   Afinal minha mãe me dizia: “Anda, não fiques por aqui, sobe para o teu quarto se achas que faz muito calor lá fora, mas vai primeiro tomar um pouco de ar, para não leres logo ao sair da mesa”. Ia sentar-me então junto da bomba e de sua bacia, muitas vezes ornada, como uma pia batismal gótica, de uma salamandra, que esculpia sobre a pedra tosca o relevo móvel de seu corpo alegórico e fuselado, no banco sem encosto sombreado por um lilás, naquele recanto do jardim que dava para a rua do Espírito Santo, por uma porta de serviço, e de cujo terreno malcuidado se elevava, acima de dois degraus e formando saliência, como um edifício independente, a despensa. Percebia-se seu lajedo brilhante e vermelho como pórfiro. Mais que a caverna de Françoise, parecia um pequeno templo dedicado a Vênus. Regurgitava das oferendas do leiteiro, do fruteiro, da verdureira, vindos às vezes de remotas aldeias para lhe dedicar as primícias de seus campos. E sua cimeira tinha sempre a coroá-la o arrulho de uma pomba.

continua na página 60...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (Combray, de longe - d)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1] A igreja de Santo Agostinho, construída por Victor Baltard entre os anos de 1860 e 1871, possui um domo de cinquenta metros de altura, evocando, para o narrador, o domo da igreja de São Pedro, em Roma. Giambattista Piranesi (1720-78), autor de uma série de Vistas de Roma, uma centena de águas-fortes inacabadas e da obra Antiguidades romanas, de 1756. [n. e.]
[2] Primeira aparição dessa personagem que pontuará toda a caminhada do herói, até o final, quando aparecerá sob a figura do protetor do jovem Théodore. [n. e.]
[3] Citação da Epístola aos Hebreus, vi: 4-8. [n. e.]
[4] Uma das revelações finais da natureza do Tempo e da Arte, no último volume da obra, virá justamente da lembrança repentina da claridade e dos ruídos do pequeno quarto de Eulalie, ao lado da igreja, quarto em que o herói tem de passar uma noite, quando criança. [n. e.]

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