quarta-feira, 18 de junho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - Parêntesis / III - Sob que condição se pode respeitar o passado

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sétimo — Parêntesis

III - Sob que condição se pode respeitar o passado
     
     O monaquismo, do modo que existia na Espanha e existe ainda no Tibete, é uma espécie de tísica para a civilização. Suspende rápido a ação vital do corpo social.
     Despovoa de um modo simples. Claustração, castração. Foi um flagelo para a Europa.
     Acrescentai a isto a violência, tão frequentes vezes feita à consciência, as vocações forçadas, a feudalidade que se apoiava no claustro, a primogenitura que ver a no monaquismo o excesso da família, as ferocidades de que acabamos de falar, os in pace, as bocas fechadas, os cérebros murados, tantas inteligências desditosas me das no calabouço dos votos, eternos, a profissão, o enterramento das almas vivas. Acrescentai os suplícios individuais às degradações nacionais, e, quem quer que sejais, sentir-vos-eis estremecer em presença da cogula e do véu, duas mortalhas de invenção humana.
     Todavia, apesar da filosofia e do progresso, o espírito claustral persiste em pleno século XIX a respeito de certos pontos e em certos lugares, e uma estranha recrudescência espanta nesta ocasião o mundo civilizado. A teima das instituições envelhecidas em quererem perpetuar-se, assemelha-se à obstinação do perfume rançoso que nos reclamasse os cabelos, à pretensão do peixe podre que quisesse ser comido, à perseguição da roupa de criança que quisesse vestir o homem, à ternura dos cadáveres que voltassem a abraçar os vivos.
      Ingratos!, diz a roupa. Protegi-vos do mau tempo e não quereis saber de mim!
     Porquê? Venho do alto mar, diz o peixe. Fui a rosa, diz o perfume. Eu amei-vos, diz o cadáver. Fui eu que vos civilizei, diz o convento.
     A isto uma única resposta: Noutro tempo.
     Parece estranho haver quem pense na prolongação indefinida das coisas defuntas e no governo dos homens por embalsamação, quem queira restaurar os dogmas em mau estado, dourar de novo os retábulos, remoçar os claustros, tornar a benzer os relicários, mobilar outra vez as superstições, reabastecer os fanatismos, pôr cabos novos nos hissopes e nas espadas, reconstituir o monaquismo e o militarismo, quem acredite na salvação da sociedade pela multiplicação dos parasitas, quem pretenda impor o passado ao presente. Há teóricos, todavia, que professam estas teorias. O processo desses teóricos, aliás homens de espírito, é simplíssimo; aplicam sobre o passado um esboço a que dão o nome de ordem social, direito divino, moral, família, respeito aos passados, autoridade antiga, tradição santa, legitimidade, religião, e vão gritando: «Vede! Olhai para isto, homens de bem!» Esta lógica também era conhecida dos antigos. Cobriam de greda uma novilha preta e diziam: «É branca, bos crétatus».
      Enquanto a nós, respeitamos uma ou outra coisa do passado, e poupamo-lo todo, contanto que ele esteja pelo que realmente é, uma coisa morta; pois se quer ser uma coisa viva, nesse caso atacamo-lo e fazemos esforços para o matar.
      Superstições, hipocrisia, beatice, prejuízos, todas estas larvas, apesar de larvas, têm apego à vida; têm dentes e unhas no seu fumo; é necessário arcar com elas peito a peito e fazer-lhes a guerra, mas guerra sem tréguas; pois é uma das fatalidades da humanidade ser condenada a combater eternamente com fantasmas. É sempre difícil agarrar a sombra pela garganta e derrubá-la.
     Um convento em França, à luz do meio-dia do século XIX, é um colégio de mochos, fazendo frente ao dia. Um claustro, em flagrante delito de ascetismo no meio da pátria dos cidadãos de 89, de 1830 e 1848, Roma dilatando-se por Paris, é um anacronismo. Em tempos normais, para dissolver um anacronismo e fazê-lo desaparecer de todo, basta fazer-lhe soletrar uma data. Porém nós não estamos em tempos normais.
     Combatamos, portanto.
     Combatamos, mas distingamos. O característico da verdade é não ser nunca excessiva. Que necessidade tem ela de exagerar? Há coisas que é necessário destruir e coisas que devem simplesmente esclarecer-se e olhar-se. Que força não tem o exame benévolo e grave! Não apliquemos a chama onde a luz basta.
     Na hipótese, pois, do século XIX somos contrários, em tese geral, às clausuras ascéticas, entre todos os povos, tanto na Ásia como na Europa, tanto na Índia como na Turquia. Quem diz convento, diz pântano. É evidente a sua putrefacção, insalubre a sua estagnação, a sua fermentação dá origem a febre entre os povos, estiolando-os; a sua multiplicação torna-se uma praga do Egito. Não podemos lembrar-nos sem horror desses países em que os faquires, os bonzos, os santões, os caloiros, os marabutos, os talapões e os dervixes pululam como vermes.
     Dito isto, subsiste a questão religiosa. Esta tem certos aspectos misteriosos, quase temíveis; seja-nos lícito, pois, encará-la de frente.

continua na página 391...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - III - Sob que condição se pode respeitar o passado
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
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Monaquismo é um estilo de vida dedicado à prática religiosa, caracterizado pela renúncia aos bens materiais, pela busca da perfeição espiritual e, em muitos casos, pela vida em comunidade ou isolamento.

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