segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / VI - Quanto vale ter encontrado um sacristão

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     VI - Quanto vale ter encontrado um sacristão 
     
          Mário esteve três dias ausente, depois voltou a Paris, foi direito à biblioteca da escola de direito e pediu a coleção do Moniteur.
     Leu o Moniteur, leu todas as histórias da república e do império, o Memorial de Santa Helena, todos os periódicos, boletins e proclamações; devorou tudo.
     Quando pela primeira vez se lhe deparou o nome de seu pai nos boletins do grande exército, teve um acesso de febre que lhe durou uma semana. Foi procurar os generais sob cujas ordens servira Jorge Pontmercy, e entre outros o conde H... O sacristão Mabeuf, que procurou de novo descrevera-lhe a vida retirada que seu pai passara em Vernon, o seu isolamento e as suas flores. Mário chegou a conhecer o homem raro, sublime e meigo, a espécie de leão-cordeiro, que fora seu pai.
     Entretanto, ocupado com este estudo, que lhe absorvia todos os instantes, bem como todos os pensamentos, não via quase nunca os Gillenormand. Aparecia às horas de refeição; depois, quando o procuravam, já o não achavam. A tia murmurava, o avô sorria-se, dizendo:

— Ora! É o tempo das raparigas! — Algumas vezes acrescentava: — Diabo! Julgava ser uma brincadeira e parece-me que é uma paixão!

     Era, com efeito, uma paixão. Na alma do mancebo principiava a nascer um sentimento de quase adoração por seu pai.
     Ao mesmo tempo operava-se-lhe uma mudança extraordinária nas ideias. As fases de tal mudança foram numerosas e sucessivas. Como esta é a história de muitos espíritos do nosso tempo, julgamos útil seguir-lhe as fases passo a passo, indicando-as todas.
     A história a que acabava de lançar os olhos, assustava-o.
     O primeiro efeito foi deslumbramento.
     A república e o império, não tinham sido para ele, até então, senão palavras monstruosas. A república, uma guilhotina na luz do crepúsculo; o império, um sabre no meio da noite. Acabava de fitá-los; e onde esperara não achar mais do que um caos tenebroso, vira, com uma espécie de surpresa inaudita, envolta em receio e alegria, cintilar astros: Mirabeau, Vergniaud, Saint-Just, Robespierre, Camille Desmoulins, Danton; e erguer-se um sol Napoleão. Não sabia onde estava. Recuava cego por tanta luz. A pouco e pouco, passado o espanto, acostumou-se àqueles esplendores, fitou as ações a sangue-frio, examinou os personagens sem terror; a revolução e o império colocaram-se-lhe luminosamente em perspectiva diante dos olhos visionários; viu cada um destes dois grupos de acontecimentos e de homens, resumir-se em dois fatos enormes; a república na soberania do direito cívico restituído às turbas; o império na soberania da ideia francesa prescrita à Europa; viu sair da revolução o grande vulto do povo, e do império o grande vulto da França. Depois declarou em sua consciência que tudo aquilo fora bom.
     Do que o seu deslumbramento fazia pouco caso, nesta primeira apreciação demasiadamente sintética, julgamos necessário indicá-lo aqui. O que registamos é o estado de um espírito que caminha. Os progressos não se operam todos de um só impulso. Dito isto, uma vez por todas, tanto para o que precede, como para o que vai seguir-se, continuamos.
     Conheceu então que até àquele momento não soubera mais da sua pátria, do que soubera de seu pai. Não tinha conhecido nem uma nem outro; tivera diante dos olhos uma espécie de voluntária escuridão. Agora via; e de um lado admirava, do outro adorava.
     Sentia-se cheio de saudades e de remorsos; e pensava com desespero que só a um túmulo podia dizer o que tinha na alma. Oh! Se seu pai ainda existisse, se ainda o tivesse, se Deus, pela sua compaixão e bondade, tivesse permitido que aquele pai fosse ainda vivo, como teria corrido, como se precipitaria para ele e lhe diria: Aqui estou, meu pai! O meu coração é igual ao seu, sou seu filho! Como lhe teria beijado a fronte encanecida, inundado os cabelos de lágrimas, contemplando a cicatriz gloriosa; como lhe teria apertado as mãos, adorado o fato, beijado os pés! Porque tinha aquele pai morrido tão cedo, antes da idade, antes da justiça, antes da afeição de seu filho! Mário tinha um contínuo soluço no coração, que a todo o momento dizia: Ai de mim! Ao mesmo tempo tornava-se mais verdadeiramente grave, mais seguro da sua fé e do seu pensamento.
     A cada instante completavam-lhe a razão novos clarões da verdade. Operava-se nele um como engrandecimento interior. Sentia uma espécie de elevação natural produzida por aquelas duas coisas, novas para ele.
     Como quando se tem uma chave, tudo se abria; achava a explicação do que havia odiado e penetrava no que aborrecera; via agora claramente o sentido providencial, divino e humano, das grandes coisas que lhe tinham ensinado a maldizer. Quando pensava nas suas precedentes opiniões, que eram apenas, da véspera, e que não obstante lhe pareciam já velhas, indignava-se e sorria-se. Da reabilitação de seu pai passara à de Napoleão.
     Tudo isto, digamo-lo, não se realizara sem custo. Desde a sua infância que o tinham embebido no modo de pensar do partido de 1814, acerca de Bonaparte. Ora, todos os preconceitos da restauração, todos os seus interesses e instintos tendiam a desfigurar Napoleão, a quem ela ainda execrava mais do que a Robespierre, aproveitando com finura o cansaço da nação e o ódio das mães. Bonaparte tornara-se uma espécie de monstro quase fabuloso, e para o pintar à imaginação das crianças, o partido de 1814 fazia aparecer sucessivamente todas as máscaras assustadoras, desde o que é terrível ficando grandioso, até o que é terrível ficando grotesco, desde Tibério até ao Papão.
     De modo que, falando-se de Bonaparte, cada qual tinha a liberdade de soluçar ou de rir às gargalhadas, contanto que o ódio fizesse acompanhamento obrigado. Mário nunca tivera a respeito desse homem como lhe chamavam, outras ideias no espírito. Tinham-se combinado com a tenacidade própria da sua natureza. Havia dentro de si um como homem pequeno que continuava a odiar Napoleão tenazmente.
     Ao ler, porém, a história, ao estudá-la especialmente nos documentos e nos materiais, o véu que cobria Napoleão aos olhos de Mário, principiou a rasgar-se pouco a pouco, entrevendo um não sei quê de imenso, e desconfiando que até então se tinha enganado, tanto a respeito de Bonaparte como do mais. Cada dia via melhor, e então começou a subir lentamente, ao princípio quase forçadamente, em seguida com transporte e como que atraído por uma fascinação irresistível, primeiro os degraus escuros, depois os degraus vagamente alumiados, finalmente os degraus esplendidamente luminosos do entusiasmo.
     Uma noite, estava o mancebo só no seu quarto, situado nas águas-furtadas. Tinha a vela acesa e lia debruçado sobre a sua mesa, ao pé da janela aberta, por onde entravam todas as variadas visões do espaço e se misturavam com o fio das suas ideias. Que grandioso espetáculo oferece a noite! Ouvem-se uns rumores surdos, sem se saber de onde vêm, vê-se rutilar como uma brasa Júpiter, que é mil e duzentas vezes maior do que a Terra, o azul é negro, as estrelas brilham, é terrivelmente majestoso!
     O mancebo lia os boletins do grande exército, essas estrofes homéricas escritas no campo da batalha; de quando em quando via o nome de seu pai e a cada passo o nome do imperador; o grande império aparecia-lhe todo; sentia dentro em si como que uma maré que engrossava e subia; afigurava-se-lhe às vezes que seu pai passava por ele como um sopro e lhe falava ao ouvido; pouco a pouco tornava-se estranho, julgava ouvir os tambores, os canhões, o galope surdo e longínquo da cavalaria; de espaço a espaço fitava os olhos no céu e via luzir nas profundas amplidões as constelações colossais, depois voltava-os outra vez para o livro que estava a ler e via agitarem-se-lhe diante dele outras coisas colossais. Parecia-lhe o coração pequeno âmbito para as emoções que experimentava. Mário sentia-se extasiado, trémulo, arquejante; de repente, sem ele mesmo saber que força o impelia ou a que poder obedecia, levantou-se, estendeu os braços para fora da janela, fitou os olhos na escuridão, no silêncio, no infinito tenebroso, na eterna imensidade, e gritou:

— Viva o imperador!

     Desde então terminou tudo: o Papão da Córsega o usurpador o tirano o monstro que era amante de suas irmãs o histrião a quem Talma dava lições o envenenador de Jafa o tigre Bonaparte tudo isto se desvaneceu e deu lugar no seu espírito a um vago e brilhante clarão, em que a uma altura inacessível resplandecia o pálido fantasma marmóreo de César.
     O imperador, que para seu pai fora apenas o benquisto capitão que inspirava admiração e ardor no seu serviço, para Mário foi mais do que isso. Foi o construtor predestinado do grupo francês que sucedia ao grupo romano no domínio do Universo. Foi o maravilhoso arquiteto de um desabamento, o continuador de Carlos Magno, de Luís XI, de Henrique IV, de Richelieu, de Luís XIV e da comissão de salvação pública, de certo com suas máculas, com suas faltas e mesmo com seus crimes, quer dizer, sendo homem, porém augusto nas faltas, brilhante nas máculas, poderoso nos seus crimes. Foi o homem predestinado que obrigava a dizer a todas as nações: A grande nação. Foi mais ainda; foi a encarnação da própria França, conquistando a Europa pela espada que ele empunhava, e o mundo pelo clarão que de si derramava. Mário viu em Bonaparte o espectro deslumbrante que se erguerá sempre na fronteira, guardando o futuro. Déspota, mas ditador; déspota resultante de uma república e resumindo em si uma revolução. Tornou-se Napoleão para ele o homem-povo, como Jesus Cristo é para todos os cristãos, o homem-Deus.
     Como se vê, à maneira de todos os recém-conversos de uma religião, a sua conversão embriagava-o, precipitando-se na adesão e indo mais longe do que devera. Era essa a sua natureza; chegado a um declive, era-lhe quase impossível parar. Apossava-se dele o fanatismo pela espada, embaraçando no seu espírito o entusiasmo pela ideia. Não reparava que com o gênio confundia a admiração da força, isto é, que estabelecia nos dois compartimentos da sua idolatria de um lado o que é divino, do outro o que é brutal. A muitos respeitos não fez mais do que principiar a enganar-se por outro modo. Admitia tudo. Encontra-se às vezes o erro na indagação da verdade. Mário possuía uma espécie de boa fé violenta que tomava tudo em globo. No novo caminho em que ele entrara, tanto julgando as faltas do regime como medindo a glória de Napoleão, o mancebo esquecia as circunstâncias atenuantes.
     Fosse como fosse, estava dado um passo prodigioso. No que ele outrora vira a queda da monarquia, via agora o triunfo da França. Estava mudada a sua orientação. O que tinha sido poente, era nascente. Mudara de posição, ficando com o rosto para onde estava com as costas.
     Todas estas revoluções, porém, se efetuavam nele sem que sua família o suspeitasse.
     Quando nesta misteriosa operação chegou a perder de todo a sua antiga pele de bourbonista e de ultra, e a despojar-se da sua qualidade de aristocrata, de jacobita e realista, ficando completamente revolucionário, profundamente democrata e quase republicano, dirigiu-se a casa de um gravador do cais dos Ourives a encomendar cem bilhetes de visita com este nome: Mário, barão de Pontmercy.
     O que apenas era uma consequência toda lógica da mudança que nele se operara, mudança na qual tudo gravitava à roda de seu pai. Como, porém, não conhecia ninguém, meteu os seus bilhetes de visita no bolso, à míngua de não ter a quem os entregar.
     Por outra consequência também natural, à medida que se iam estreitando os laços entre ele e seu pai, à medida que se lhe ia aumentando a veneração pela memória do coronel e pelas coisas a favor das quais ele combatera durante vinte e cinco anos, iam afrouxando os laços que o prendiam a seu avô. Como já dissemos, desde muito que o gênio de Gillenormand lhe desagradava. Havia já entre eles todas as dissonâncias costumadas entre um mancebo sério e um velho frívolo. A alegria de Geronte molesta e exaspera a melancolia de Werther. Enquanto entre eles se deu comunhão de opiniões políticas e de ideias, Mário estivera ligado a Gillenormand como por uma ponte. Apenas, porém, caiu essa ponte, abriu-se o abismo. E, sobretudo, Mário não podia de modo nenhum tolerar que Gillenormand por motivos desarrazoados, o tivesse sem piedade arrancado aos braços do coronel, privando deste modo o pai do filho e o filho do pai.
     À força de se compadecer de seu pai, chegara Mário quase a odiar seu avô.
     Nada disto, porém, como já dissemos, se revelava nas maneiras exteriores do mancebo. Apenas se ia tornando cada vez mais frio, mais lacônico à mesa e mais raro em casa. Se sua tia lhe ralhava, o mancebo curvava-se submisso, pretextando os seus estudos, as suas aulas, os exames, as conferências, etc. O avô, esse não saía do seu infalível diagnóstico: «Namoricos! Namoricos! Eu bem sei o que isso é».
     Mário de tempos a tempos fazia algumas saídas.

— Ora não me dirão para onde é que vai sempre este estroina? — exclamava a tia.

     Numa dessas excursões, que eram sempre pouco demoradas, fora o mancebo a Montfermeil para cumprir a recomendação de seu pai, procurando o antigo sargento de Waterloo, o estalajadeiro Thenardier. Thenardier tinha quebrado, a estalagem estava fechada e ninguém sabia que caminho ele tinha levado. Estas averiguações detiveram Mário quatro dias por fora de casa.
     Nada disse o avô isto agora sempre vai passando das marcas.
     Tanto a Gillenormand como a sua filha, afigurava-se-lhes que o mancebo trazia ao peito, por baixo da camisa, um objeto suspenso do pescoço por uma fita preta.

continua na página 478...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - VI - Quanto vale ter encontrado um sacristão
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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