quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap II - Voltei-me para a sua nora)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Segundo

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin. 
 

continuando...

     Voltei-me para a sua nora: 

-Completamente Péleas. - disse-lhe para conformar sua afeição pelo modernismo. 
- Esse perfume de rosas subindo até o terraço é puro. É tão forte na partitura que eu, como tenho fever e de rose-rever, espirrava cada vez que ouvia a cena. - Que obra de mestre! - exclamou a Sra. de Cambremer. - Sou doida de ciúmes! -, aproximando-se de mim com gestos de uma mulher selvagem. Como se quisesse me fazer agrados, usando os dedos para tocar as notas imaginárias; a cantarolar alguma coisa que supus ser para ela os adeus de Péleas; e continuou com uma insistência veemente, como se fosse importante que a Sra. de Cambremer me recordasse naquele momento a cena ou antes, talvez, me mostrasse que se lembrava. -Acredito até ser mais belo que Parsifal – acrescentou - porque no Parsifal junta-se às belezas um certo halo de frases melódicas, portanto caducas, já que são melódicas. 
- Sei que é uma grande musicista, senhora - disse-lhe à dama. - Gostaria muito de ouvi-la. - A Sra. de Cambremer-Legrandin contemplou o mar para não tomar parte na conversa. Considerando-se que o que a sogra gostava não era música, julgava o talento dela, um dos mais notáveis na realidade que lhe atribuíam, do mesmo modo sem interesse. É verdade que era aluna ainda viva de Chopin; declarava com razão que a maneira de tocar, o "sentimento" do Mestre não se transmitira através dela à Sra. de Cambremer; mas tocar como Chopin estava longe de ser uma referência para a irmã de Legrandin, que ninguém desprezava tanto como o músico polonês. - Oh! elas estão voando! - exclamou Albertine mostrando as gaivotas que, desembaraçando-se por um momento de seu incógnito de flores, subiam todas juntas para o sol. 
- Suas asas gigantes as impedem de andar - disse a Sra. de Cambremer, confundindo as gaivotas com o albatroz. 
- Gosto muito delas, via-as em Amsterdã - disse Albertine - Elas sentem o mar, vêm aspirá-lo até através das pedras da rua. 
- Ah, esteve na Holanda, conhece os Vermeer? Indagou imperiosamente a Sra. de Cambremer, e no mesmo tom com que teria perguntado: "Conhece os Guermantes?", pois o esnobismo, mudando de lado muda de acento.

     Albertine respondeu que não: achava que se tratava de pessoas vivas. Porém isso passou despercebido. 

-Eu ficaria contente de lhe tocar uma música - disse-me a Sra. de Cambremer. - Mas, eu toco apenas algumas coisas que já não interessam à sua geração. Fui educada no culto de Chopin - disse ela em voz baixa para a nora não ouvir; ela sabia que esta achava que Chopin, nada tinha a ver com música; toca-lo bem ou mal eram expressões destituídas de significado. A nora reconhecia que a sogra era dotada de técnica, embelezava as passagens. 
- Jamais me farão afirmar que ela é musicista - concluía a Sra. de Cambremer-Legrandin.

     Como se julgava "avançada" e (em arte apenas) "nunca demais à esquerda", dizia, pensava não só que a música progride, mas também que o faz numa única direção, e que Debussy era uma espécie de super-Wagner, ainda um pouco mais avançado que Wagner. Não percebia que, se Debussy não era tão independente de Wagner; como ela própria deveria acreditar dentro de alguns anos, pois enfim a gente se serve das armas conquistadas para terminar de livrar-se daquele a quem momentaneamente venceu, ele no entanto, buscava, após a saciedade que se começava a sentir das obras muito completas, onde tudo está expresso, contentar a necessidade oposta. É claro que teorias sustentavam momentaneamente essa reação, semelhantes àquelas que, em política, correm em apoio às leis contra as congregações, as guerras no Oriente (ensino contra a natureza, perigo amarelo, etc., etc.). Dizia-se que numa época de pressa era conveniente uma arte rápida, exatamente como se teria dito que a guerra futura não podia durar mais que uma quinzena, ou que, com as estradas de ferro, seriam abandonados os pequenos recantos caros às diligências a que o automóvel, entretanto, deveria restituir todas as honras. Recomendava-se que não se cansasse a atenção do auditório, como se não dispuséssemos de atenções diferentes, das quais compete justamente ao artista despertar as mais elevadas. Pois aqueles que bocejam de cansaço depois de dez linhas de um artigo medíocre haviam refeito, todos os anos, a viagem à Bayreuth a fim de ouvir a Tetralogia. Aliás, chegaria o dia em que, durante algum tempo, Debussy seria declarado tão frágil quanto Massenet, e as emoções de Mélisande rebaixadas ao nível das de Manon. Pois as teorias e as escolas, como os micróbios e os glóbulos, entredevoram-se e garantem, com sua luta, a continuidade da vida. Mas esse tempo ainda não havia chegado.
     Como na Bolsa, quando ocorre um movimento de alta, e toda uma categoria de valores se aproveita disso, certo número de autores desdenhados se beneficia com a reação, ou porque não mereciam esse desdém, ou simplesmente o que permitia dizer que uma novidade os realçava: - Porque nele haviam incorrido. E ia-se até buscar, num passado solitário, alguns talentos independentes sobre cuja reputação não parecia dever influir o movimento atual, mas cujo nome dizia-se que um dos mestres novos o citava com benevolência. Muitas vezes era porque um mestre, fosse qual fosse, por mais exclusiva que deva ser sua escola, julga de acordo com seu sentimento original, render justiça ao talento onde quer que se encontre; e até menos ao talento, a alguma inspiração agradável que teve outrora, se liga a um instante amado de sua adolescência. Outras vezes, certos artistas de outra época exibem, num simples trecho realizado, que se assemelha ao que o mestre aos poucos percebeu que ele o desejou fazer. Então, enxerga nesse antigo como que um precursor; a nele, sob outra forma, um esforço parcial e momentaneamente fraternos trechos de Turner na obra de Poussin, uma frase de Flaubert em Montesquieu. E às vezes também, o rumor da predileção do mestre era o resultado de um engano, nascido não se sabe onde e divulgado na escola. Mas ao ser citado, beneficiava-se então da firma sob cuja proteção entrara justamente a tempo, pois, se existe alguma liberdade, um gosto genuíno, na arte é do mestre, as escolas, essas, só se dirigem no sentido da teoria. Fora assim que o espírito, seguindo seu curso habitual que avança por uma direção inclinando-se uma vez num sentido, na vez seguinte em sentido contrário; havia trazido luz do alto sobre um certo número de obras, às quais havia necessidade de justiça, ou de renovação, ou o gosto de Debussy, ou seu capricho, ou algum propósito que ele talvez não tivera, havia acrescentado de Chopin. Enaltecidas pelos juízes nos quais se tinha inteira confiança; beneficiando-se da admiração que Pelléas excitava, encontraram nela brilho novo; e mesmo aqueles que não as tinham ouvido novamente, estavam tão desejosos de as amar que o faziam sem querer; embora com ilusão de liberdade. Mas a Sra. de Cambremer-Legrandin ficava uma parte do ano na província. Mesmo em Paris, doente, ela vivia muito presa no quarto. É verdade que o inconveniente podia sobretudo se fazer sentir à escolha das expressões que a Sra. de Cambremer julgava estarem na moda, e que antes se conformariam melhor à linguagem escrita, nuança que não discernia, pois tirava-as mais da leitura que da conversação. Esta é tão necessária para o conhecimento exato das opiniões como as expressões novas. Entretanto, esse rejuvenescimento dos Noturnos ainda não era anunciado pelos críticos. A novidade só se transmitira pelas conversações "jovens". Permanecia ignorada da Sra. de Cambremer-Legrandin. Dei-me prazer de fazê-la ciente, porém dirigindo-me para tanto à sua sogra, e no bilhar, quando, para atingir uma bola, joga-se pela beirada, de Chopin, bem longe de estar fora de moda, era o compositor preferido Debussy. 

- Vejam só! É divertido. - disse-me sorrindo a nora, como se tudo aquilo não passasse de um paradoxo criado pelo autor de Pelléas.

     Agora era certo que ela só ouviria Chopin com respeito e até com prazer de ouvir minhas palavras, que acabavam de fazer soar a hora da libertação da velha marquesa, puseram-lhe no rosto uma expressão de reconhecimento por mim, e sobretudo de alegria. Seus olhos brilharam como os de Latude na peça denominada “Latude, ou Trinta e cinco anos de cativeiro," e seu peito aspirou o ar marinho com aquela dilatação que Beethoven tão bem assinalou no Fidelio, quando seus prisioneiros por fim respiram "este ar que vivifica". Julguei que ela ia pousar no meu rosto os lábios com seu buço. 

- Como, o senhor gosta de Chopin? Ele gosta de Chopin, ele gosta de Chopin! - exclamou ela num acasalamento apaixonado, como se dissesse: "Como, o senhor conhece também a Sra. de Francquetot?", com a diferença de que minhas relações com a Sra. de Francquetot lhe teriam sido profundamente indiferentes, ao passo que o meu conhecimento de Chopin lançou-a numa espécie de delírio artístico. A hipersecreção salivar não bastou mais. Não tendo nem mesmo procurado compreender o papel de Debussy na reinvenção de Chopin, sentiu apenas que meu juízo era favorável. O entusiasmo musical a arrebatou:
- Élodie! Élodie! Ele gosta de Chopin. -

     Seus seios se soergueram e os braços agitaram-se no ar. 

- Ah, bem que eu senti que o senhor era músico exclamou. - Hhartista como o senhor é, compreendo que goste. É tão belo! -

     E sua voz era tão pedregosa como se, para exprimir seu ardor por Chopin, ele houvesse, imitando Demóstenes, enchido a boca com os pedregulhos da praia. Por fim veio o refluxo, atingindo até o pequeno véu que ela não teve tempo de pôr a salvo e foi traspassado; e afinal a marquesa enxugou com seu lenço bordado a baba de espuma com que sua lembrança de Chopin acabava de lhe umedecer o buço. 

- Meu Deus - disse-me a Sra. de Cambremer-Legrandin -, acho que minha sogra está bastante atrasada; esquece que temos de jantar em casa do meu tio de Ch'nouville. E além disso, Cancan não gosta de esperar. -

     "Cancan" ficou incompreensível para mim e pensei que talvez se tratasse de um cachorro. Mas, quanto aos primos de Ch'nouville, eis o que ocorria. Com o passar do tempo, amortecera na jovem marquesa o prazer de pronunciar-lhes o nome dessa maneira. E no entanto fora para desfrutá-lo que ela antigamente decidira casar-se. Em outros grupos mundanos, quando se falava dos Chenouville, o costume era (ao menos de cada vez que a partícula vinha precedida de um nome que terminasse por vogal, pois em caso contrário era-se obrigado a apoiar-se no de, visto recusar-se a língua a pronunciar Madam' d' Ch'nonceaux) que fosse sacrificado o e mudo da partícula. Dizia-se: 

"Senhor d' Chenouville".

     Entre os Cambremer a tradição era inversa, mas igualmente imperiosa. Era o e mudo de Chenouville que se suprimia em todos os casos. Que o nome fosse precedido de "meu primo" ou de "minha prima", era sempre de "Ch'nouville" e nunca de Chenouville. (No caso do pai desses Chenouvilles, dizia-se "notre onc/e" noite; pois não se era bastante refinado em Féterne para pronunciar "noite” como teriam feito os Guermantes, cuja algaravia intencional, suprimiu consoantes e nacionalizando os nomes estrangeiros, era tão difícil de dizer como o francês antigo ou o dialeto moderno.) Toda pessoa que entrasse para a família Cambremer recebia logo, sobre essa questão dos Ch'nouville, uma advertência da qual a Srta. Legrandin não tivera necessidade. Uma vez em visita, ouvindo uma moça dizer:

"Minha tia d'Uzai", "mon onk de Ray”; ela não reconhecera de imediato esses nomes ilustres que tinha o h -kj - de pronunciar: Uzes e Rohan; sentira o espanto, o embaraço e a vergonha de alguém que tem à sua frente, na mesa, um utensílio recentemente inventado de que não conhece o uso e com o qual não tem coragem de começar a comer. Mas, na noite e no dia seguinte, repetira deliciada: "minha tia d',tJ -y - com aquela supressão do s final, supressão que a deixara estupefata na véspera, mas que agora lhe parecia tão vulgar não conhecer que, tendo suas amigas lhe falado de um busto da duquesa d'Uzes, a Srta. Legradin lhe respondera mal humorada, e num tom altivo: 

- Você poderia ao responder como é correto: "Mame d'Uzai". -  

     Desde então compreendo que, em virtude da transmutação das matérias consistentes em elementos cada vez mais sutis, a fortuna considerável e tão honradamente adquirida que herdara do pai, a educação completa que havia recebido, sua assiduidade à Sorbonne, tanto às aulas de Caro como às de Brunetiere, e aos concertos Lamoureux, tudo isso devia volatilizar-se, encontrar sua sublimação última no prazer de dizer um dia: "minha tia d'Uzai". Isso não exclui de seu espírito a idéia de que continuaria a freqüentar, ao menos nos primeiros tempos após o matrimônio, não certas amigas de quem gostava; e que não estava resignada a sacrificar, porém determinadas outras de quem não gostava e às quais desejava poder dizer (pois se casara para aquilo)-; lhe apresentar minha tia d'Uzai; e, quando viu que essa aliança era, extremamente difícil: 

- Vou apresentá-la à minha tia de Ch'nouville. - Vou levá-la para jantar com os Uzai. -

     Seu casamento com o Sr. de Cambremer, dera-lhe a oportunidade de dizer a primeira dessas frases, mas não a segunda, visto que a sociedade que seus sogros frequentavam não era aquela que ela havia julgado e com a qual continuava a sonhar. E, depois de me ter dito de Saint Loup (para tal adotando uma expressão do próprio Robert, se, para conversar com ela, eu falava como Legrandin, por uma sugestão inversa ela me respondia no linguajar de Robert, que não sabia ser tom de empréstimo a Rachel), aproximando o polegar do indicador, entrecerrando os olhos como se encarasse algo infinitamente delicado conseguira capturar: 

- Ele tem uma bela qualidade de espírito! Elogiou-o com tanto calor que poderiam achar que estava apaixonada por ele (aliás, tinham cochichado que outrora, quando estava em Doncieres, Robert fora seu amante), mas na verdade simplesmente para que eu o confirmasse e chegar a isto: 
- O senhor é muito ligado à duquesa de Guermantes. Estou doente, quase não saio, e sei que ela permanece confinada num círculo de amigos seletos, o que acho muito bom, e assim conheço-a muito pouco, mas sei que é uma mulher absolutamente superior. -

     Sabendo que a Sra. de Cambremer mal a conhecia, e para me fazer tão pequeno quanto ela, ladeei esse assunto e respondi à marquesa que havia conhecido principalmente o seu irmão, Sr. Legrandin. A este nome, ela assumiu o mesmo ar evasivo que eu tivera para com a Sra. de Guermantes, mas acrescentando-lhe uma expressão de descontentamento, pois pensou que eu dissera aquilo para humilhar, não a mim, mas a ela. Estaria roída pelo desespero de ter nascido Legrandin? Pelo menos, era o que afirmavam as irmãs e cunhadas do marido, nobres damas provincianas que não conheciam ninguém e não sabiam coisa alguma, invejavam a inteligência da Sra. de Cambremer, sua instrução, sua fortuna, os dotes físicos que ostentara antes de cair enferma. 

- Ela não pensa em outra coisa, é isto que a está matando - diziam essas maldosas quando falavam da Sra. de Cambremer a qualquer pessoa, mas de preferência a um plebeu, para que este, se era presumido e estúpido, desse mais valor à gentileza com que o tratavam, com essa afirmativa do que possui a plebe de vergonhoso, ou então, se era tímido e fino, e aplicasse as palavras a si mesmo, para terem o prazer, sempre recebendo-o bem, de lhe fazerem indiretamente uma insolência. Mas, se essas damas julgavam falar a verdade em respeito à cunhada, enganavam-se. Tanto menos sofria esta por ter nascido Legrandin, visto haver perdido a lembrança de o ter sido. Sentiu-se melindrada por eu ter lhe devolvido tal lembrança e calou-se como se não tivesse compreendido nada, não julgando necessária uma precisão, nem mesmo uma confirmação de minha parte. 
- Nossos parentes não são a causa principal do encurtamento da nossa visita - disse-me a velha Sra. de Cambremer, que provavelmente estava mais farta que sua nora quanto ao prazer que há em dizer: "Ch'nouville". - Mas, para não cansá-lo com muita gente, este senhor - disse ela mostrando o advogado não ousou trazer aqui a esposa e o filho. Eles passeiam na praia à nossa espera e já devem começar a se aborrecer. -

     Pedi que os indicassem exatamente e corri para buscá-los. A mulher tinha um rosto redondo como certas flores da família das ranunculáceas e, no canto dos olhos, um signo vegetal bastante considerável. E, já que as gerações humanas conservam seus caracteres como uma família de plantas, da mesma forma que no rosto murcho da mãe, o mesmo sinal, que poderia auxiliar na classificação de uma variedade, inchava-se sob o olho do filho; minha solicitude para com sua mulher e seu filho comoveu o advogado. Manifestou interesse pela minha estada em Balbec. 

- O senhor encontrar-se um tanto deslocado, pois aqui a maioria é de estrangeiros. E, enquanto falava, ia me olhando, pois, não gostando de estrangeiras embora muitos deles fossem seus clientes, queria assegurar-se de que eu não era hostil à sua xenofobia, caso em que teria batido em retirada, dizendo: 
- Naturalmente, a Sra. X pode ser uma mulher encantadora. É uma questão de princípios. -

     Como, à época, eu não tinha nenhuma opinião acerca dos estrangeiros, não testemunhei desaprovação, e ele se sentiu em terreno seguro. Chegou a me convidar para que fosse um dia à sua casa, em Paris, a fim de ver sua coleção de Le Sidaner, e arrastar comigo os Cambremer, dos quais evidentemente julgava que eu fosse íntimo. 

- Eu o convidaria junto com Le Sidaner - disse-me ele, convencido de que eu só viveria na expectativa desse dia bendito. - O senhor verá que homem especial. E seus quadros o deixarão encantado. É claro que não posso rivalizar com os grandes colecionadores, mas creio que sou eu quem possui a maior quantidade de suas telas preferidas. Isso lhe interessará tanto mais, ao voltar de Balbec, por serem marinhas, pelo menos na maior parte. -

     A mulher e o filho, constituídos da natureza vegetal, escutavam com recolhimento. Sentia se que em Paris a sua residência era uma espécie de templo de Le Sidaner. Esses gêneros de templo não são inúteis. Quando o deus tem dúvidas sobre si próprio, tapa com facilidade as fissuras de sua opinião com os testemunhos irrecusáveis de criaturas que devotaram a vida à sua obra.
     A um sinal de sua nora, a Sra. de Cambremer ia se levantando e me dizia: 

- Já que o senhor não quer instalar-se em Féterne, não gostaria pelo menos de vir jantar um dia na semana, amanhã, por exemplo? - E em sua benevolência, para decidir-me, acrescentou: - O senhor reencontrará o conde de Crisenoy - que eu absolutamente não havia perdido, pela simples razão de que não o conhecia. Ela ainda começava a fazer brilhar a meus olhos novas tentações, porém estacou de repente. O presidente do conselho que, ao regressar, soubera que ela estava no hotel, procurara-a sorrateiramente por toda parte, e ficara vigiando; fingindo encontrá-la por acaso, veio apresentar-lhe suas homenagens. Compreendi que a Sra. de Cambremer não desejava estender a ele o convite para o almoço que acabava de me fazer. No entanto, ele a conhecia há bem mais tempo do que eu, sendo há vários anos um dos convivas de costume das vesperais de Féterne que eu tanto invejava durante minha primeira estada em Balbec. Mas a antigüidade não é tudo para as pessoas mundanas. E de muito bom grado reservam os almoços para as relações novas que ainda espicaçam a sua curiosidade, sobretudo quando chegam precedidas de uma recomendação calorosa e de prestígio como a de Saint-Loup. A Sra. de Cambremer calculou que o presidente do conselho não tinha ouvido o que ela dissera, mas, para acalmar os remorsos que sentia, dirigiu-lhe as frases mais amáveis. No ensolaramento que afogava no horizonte a costa dourada de Rivebelle, habitualmente invisível, discernimos, mal destacados do azul luminoso, saindo das águas, róseos, argentinos, imperceptíveis, os pequenos sinos do ângelus que ressoavam nos arredores de Féterne. 
- Isto ainda é bastante Pelléas - observei à Sra. de Cambremer-Legrandin. - Sabe a que cena quero me referir? 
- Creio que sim. -

     Mas "não sei coisa nenhuma" era o que proclamavam a sua voz e seu rosto, que não se ajustavam a qualquer lembrança, e o seu sorriso sem apoio, no ar. A velha marquesa não se recobrava do pasmo de que os sinos chegassem até nós e ergueu-se, pensando na hora: 

- Mas na verdade - disse eu -, em geral, aqui de Balbec não se enxerga essa costa e nada se ouve também. É preciso que o tempo tenha mudado e haja bem alargado o horizonte. A não ser que os sinos venham buscá-la, pois estou vendo que eles a fazem partir; são para a senhora a sineta do jantar. -

     O presidente do conselho, pouco sensível ao toque dos sinos, espiava furtivamente o molhe, entristecendo-se por vê-lo tão deserto aquela tarde. 

- O senhor é um verdadeiro poeta - disse-me a Sra. de Cambremer. - Percebe-se que é tão vibrante, tão artista... Venha que vou lhe tocar Chopin - acrescentou, erguendo os braços com ar extasiado e pronunciando as palavras com uma voz rouca, que parecia deslocar pedregulhos. Depois veio a deglutição da saliva, e a velha dama enxugou instintivamente com o lenço a leve escovinha, dita à americana, do seu buço.

     O presidente do conselho, sem querer, me prestou um grande serviço dando o braço à marquesa para conduzi-la ao carro, pois certa vulgaridade de ousadia e de gosto pela ostentação dita uma conduta que outros hesitariam em assumir, e que está longe de desagradar na vida mundana. Além disso, depois de tantos anos, estava muito mais habituado do que eu. Bendizendo-o, não tive coragem de imitá-lo e caminhei ao lado da Sra. de Cambremer-Legrandin, que quis ver o livro que eu trazia na mão. O nome da Sra. de Sévigné fê-la fazer uma careta; e, empregando uma palavra que havia lido em certos jornais, mas que, falada e posta no feminino, e aplicada a um escritor do século XVII, dava um efeito esquisito, ela me perguntou: 

- Acha-a verdadeiramente talentosa? -

     A velha marquesa deu ao lacaio o endereço de uma pastelaria aonde precisava ir antes de voltar à estrada, rósea da poeira da tarde, em que azulavam em forma de garupa os rochedos escalonados. Perguntou a seu velho cocheiro se um dos cavalos, que era friorento, fora suficientemente agasalhado, se o casco de outro não o incomodava. 

- Vou escrever-lhe para combinarmos - disse-me ela a meia voz. - Vi que o senhor conversava sobre literatura com minha nora, ela é adorável - acrescentou, embora não pensasse desse modo; mas havia adquirido o hábito conservado por bondade de o dizer para que seu filho não desse a impressão de ter feito um casamento por dinheiro. 
- E depois - aduziu num último mastigamento entusiasta - ela é tão harrtthisstta! -

     Em seguida subiu para o carro, balançando a cabeça, erguendo o cabo da sombrinha, e voltou pelas ruas de Balbec, sobrecarregada dos ornamentos de seu sacerdócio, como um velho bispo em viagem de crisma. 

- Ela o convidou para almoçar - disse-me severamente o presidente do conselho quando o carro se afastou e eu voltei com minhas amigas. - Estamos estremecidos. Julga que me descuido dela. Diabos, sou fácil de tratar, sempre estou aí para responder: "Presente." Mas quiseram tomar conta de mim. Ah, então - acrescentou com ar finório e erguendo o dedo como alguém que distingue e argumenta isso eu não permito. É atentar contra a liberdade de minhas férias. Fui obrigado a dizer: "Chega!" O senhor parece estar muito bem com ela. Quando atingir a minha idade, verá que a sociedade é bem pouco e lamentará ter dado tanta importância a essas ninharias. Bem, vou dar uma volta antes do jantar. Adeus, crianças - gritou, como se já estivesse distante cinquenta passos.

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