Maria Firmina dos Reis
A Escrava
Em um salão onde se achavam reunidas muitas pessoas distintas, e bem
colocadas na sociedade, e depois de versar a conversação sobre diversos
assuntos mais ou menos interessantes, recaiu sobre o elemento servil.
O assunto era por sem dúvida de alta importância. A conversação era
geral; as opiniões, porém, divergiam. Começou a discussão.
— Admira-me, – disse uma senhora de sentimentos sinceramente abolicionistas; – faz-me até pasmar como se possa sentir, e expressar sentimentos
escravocratas, no presente século, no século dezenove! A moral religiosa e a
moral cívica aí se erguem, e falam bem alto esmagando a hidra que envenena
a família no mais sagrado santuário seu, e desmoraliza, e avilta a nação inteira!
Levantai os olhos ao Gólgota, ou percorrei-os em torno da sociedade,
e dizei-me:
— Para quê se deu em sacrifício o Homem Deus, que ali exalou seu
derradeiro alento? Ah! Então não é verdade que seu sangue era o resgate
do homem! É então uma mentira abominável ter esse sangue comprado a
liberdade!? E depois, olhai a sociedade... Não vedes o abutre que a corrói
constantemente!... Não sentis a desmoralização que a enerva, o cancro que
a destrói?
Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e será sempre
um grande mal. Dela a decadência do comércio; porque o comércio e a
lavoura caminham de mãos dadas, e o escravo não pode fazer florescer
a lavoura; porque o seu trabalho é forçado. Ele não tem futuro; o seu trabalho não é indenizado; ainda dela nos vem o opróbrio, a vergonha; porque
de fronte altiva e desassombrada não podemos encarar as nações livres;
por isso que o estigma da escravidão, pelo cruzamento das raças, estampa-se na fronte de todos nós. Embalde procurará um dentre nós, convencer ao estrangeiro que em suas veias não gira uma só gota de sangue escravo...
E depois, o caráter que nos imprime e nos envergonha!
O escravo é olhado por todos como vítima – e o é.
O senhor, que papel representa na opinião social?
O senhor é o verdugo – e esta qualificação é hedionda.
Eu vou vos narrar, se me quiserdes prestar atenção, um fato que ultimamente se deu. Poderia citar-vos uma infinidade deles; mas este basta, para
provar o que acabo de dizer sobre o algoz e a vítima.
E ela começou:
— Era uma tarde de agosto, bela como um ideal de mulher, poética
como um suspiro de virgem, melancólica e suave como sons longínquos de
um alaúde misterioso.
Eu cismava, embevecida na beleza natural das alterosas palmeiras que
se curvaram gemebundas, ao sopro do vento, que gemia na costa.
E o sol, dardejando seus raios multicores, pendia para o ocaso em rápida
carreira.
Não sei que sensações desconhecidas me agitavam, não sei!... Mas
sentia-me com disposições para o pranto.
De repente uns gritos lastimosos, uns soluços angustiados feriram-me
os ouvidos, e uma mulher correndo, e em completo desalinho, passou por
diante de mim, e como uma sombra desapareceu.
Segui-a com a vista. Ela espavorida, e trêmula, deu volta em torno de
uma grande moita de murta, e colando-se no chão nela se ocultou.
Surpresa com a aparição daquela mulher, que parecia foragida, daquela
mulher que um minuto antes quebrara a solidão com seus ais lamentosos,
com gemidos magoados, com gritos de suprema angústia, permaneci com a
vista alongada e olhar fixo, no lugar que a vi ocultar-se.
Ela muda, e imóvel, ali quedou-se.
Eu então a mim mesma, interroguei:
— Quem será a desditosa?
Ia procurá-la – coitada! Uma palavra de animação, um socorro, algum
serviço, lembrei-me, poderia prestar-lhe. Ergui-me.
Mas, no momento mesmo em que este pensamento, que acode a todo
homem em idênticas circunstâncias, se me despertava, um homem apareceu
no extremo oposto do caminho.
Era ele de cor parda, de estatura elevada, largas espáduas, cabelos
negros, e anelados.
Fisionomia sinistra era a desse homem, que brandia, brutalmente, na
mão direita um azorrague repugnante; e da esquerda deixava pender uma
delgada corda de linho.
— Inferno! Maldição! – bradara ele com voz rouca. — Onde estará
ela? – e perscrutava com a vista por entre os arvoredos desiguais que desfilavam à margem da estrada.
— Tu me pagarás – resmungava ele. – E aproximando-se de mim:
— Não viu, minha senhora, – interrogou com acento, cuja dureza procurava reprimir, – não viu por aqui passar uma negra, que me fugiu das mãos
ainda há pouco? Uma negra que se finge doida... Tenho as calças rotas de
correr atrás dela por estas brenhas. Já não tenho fôlego.
Aquele homem de aspecto feroz era o algoz daquela pobre vítima, compreendi com horror.
De pronto tive um expediente. — Vi-a, tornei-lhe com a naturalidade,
que o caso exigia; – vi-a, e ela também me viu, corria em direção a este
lugar; mas parecendo intimidar-se com minha presença, tomou direção
oposta, volvendo-se repentinamente sobre seus passos. Por fim a vi desaparecer, internando-se na espessura, muito além da senda que ali se abre.
E dizendo isto, indiquei-lhe com um aceno a senda que ficava a mais de
cem passos de distância, aquém do morro em que me achava.
Minhas palavras inexatas, o ardil de que me servi, visavam a fazê-lo
retroceder: logrei o meu intento.
Franziu o sobrolho, e sua fisionomia traiu a cólera que o assaltou.
Mordeu os beiços e rugiu:
— Maldita negra! Esbaforido, consumido, a meter-me por estes caminhos, pelos matos em procura da preguiçosa... Ora! Hei de encontrar-te; mas,
deixa estar, eu te juro, será esta a derradeira vez que me incomodas.
No tronco... no tronco: e de lá foge!
— Então, – perguntei-lhe, aparentando o mais profundo indiferentismo,
pela sorte da desgraçada, – foge sempre?
— Sempre, minha senhora. Ao menor descuido foge. Quer fazer acreditar que é doida
— Doida! – exclamei involuntariamente, e com acento que traía os
meus sentimentos.
continua na página 163...
A escrava - Em um salão
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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