Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo II
A Nobreza de Bruzundanga
UM leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me uma amável cartinha, pedindo-me
esclarecimentos sobre os usos, os costumes, as instituições civis sociais e políticas da República dos
Estados Unidos da Bruzundanga.
Diz-me ele que procurou informações de tal país em compêndios de geografia, em dicionários da
mesma disciplina e várias obras, nada encontrando a respeito.
O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não procurou
informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando fabulosos lucros aos
impressores e editores, livros escritos em várias línguas e destinados a fazer a propaganda do país no
estrangeiro.
É estranho; pois que, por meio de tais livros, muita gente tem feito fortuna e adquirido notoriedade
nos corredores das secretarias e nos desvãos do Tesouro da República da Bruzundanga.
Pode ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais;
mas não é aí que eles podem ser encontrados.
As obras que a república manda editar para a propaganda de suas riquezas e excelências, logo que
são impressas completamente, distribuem-se a mancheias por quem as queira. Todos as aceitam e logo
passam adiante, por meio de venda. Não julgue o meu correspondente que os “sebos” as aceitem. São
tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, tão infladas de um otimismo de encomenda que ninguém
as compra, por sabê-las falsas e destituídas de toda e qualquer honestidade informativa, de forma a não
oferecer nenhum lucro aos revendedores de livros, por falta de compradores.
Onde o meu leitor poderá encontrá-las, se quer ter informações mais ou menos transbordantes de
entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos,
pois todos as pedem nas repartições públicas para vendê-las a peso aos retalhistas de carne verde, aos
vendeiros e aos vendedores de couves.
Contudo, a fim de que o meu delicado missivista não fique fazendo mau juízo a meu respeito,
vou dar-lhe algumas informações sobre o poderoso e rico país da Bruzundanga.
Hoje lhe falarei das nobrezas da grande Nação; proximamente, em artigos sucessivos, tratarei de
outras instituições e costumes.
A nobreza da Bruzundanga se divide em dous grandes ramos. Talqualmente como na França de
outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada, na Bruzundanga existe a nobreza
doutoral e uma outra que, por falta de nome mais adequado, eu chamarei de palpite.
A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores,
que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma
nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra
qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não.
Lá, o cidadão que se arma de um título em uma das escolas citadas, obtém privilégios especiais,
alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de
cousas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca dirá que
essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de
um medíocre papel de Holanda.
As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando
alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família toda, os colaterais, e os afins.
Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho:
— Minha prima está casada com o doutor Bacabau.
Ele se julga também um pouco doutor. Joana d’Arc não enobreceu os parentes?
A formatura é dispendiosa e demorada, de modo que os pobres, inteiramente pobres, isto é, sem
fortuna e relações, poucas vezes podem alcançá-la.
Cousa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral, não são os exames da escola
superior; são os exames preliminares, aqueles das matrículas que constituem o nosso curso secundário...
Em geral, apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres e não constituem para os
aspirantes senão uma vigília de armas para serem armados cavaleiros.
O título — doutor — anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito do — dom — em terras de
Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está em face de
um coronel com o curso de engenharia, o modo de tratá-lo é matéria para atrapalhações protocolares.
Se só se o chama tout court — doutor Kamisão —, ele ficará zangado porque é coronel; se se o designa
unicamente por coronel, ele julgará que o seu interlocutor não tem em grande consideração o seu
título universitário-militar.
Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dous títulos, mas há ainda aí uma
dificuldade na precedência deles, isto é, se se devem designar tais senhores por — doutor coronel —
ou — coronel doutor. Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck.
Se o nosso grande especialista em cousas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama da
inteligência brasileira.
Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver
no tocante às leis.
O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não
pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.
Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais, sogros, etc., trataram de
reservar o maior número de lugares do Estado para eles. Capiciosamente, os regulamentos da
Bruzundanga vão conseguindo esse desideratum.
Assim, é que os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes aos nossos delegados, cargos
que exigem o conhecimento de simples rudimentos de direito, mas muito tirocínio e hábito de lidar
com malfeitores, só podem ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente.
A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas, mas as leis ordinárias acharam
meios e modos de permitir que os doutores acumulassem. São cargos técnicos que exigem aptidões
especiais, dizem. A Constituição n
ão fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma.
Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de
Medicina e inspetores dos telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são a um só tempo professores
de grego no Ginásio Secundário do Estado, professores de oboé, no Conservatório de Música, e peritos
louvados e vitalícios dos escombros de incêndios.
Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor jurídico da principal estrada
de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços metalúrgicos do Estado e examinador das
candidatas a irmãs de caridade.
Como veem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentes aos seus diplomas.
Um empregado público qualquer que não seja graduado, não pode ser eleito deputado; mas a
mesma lei eleitoral faz exceção para aqueles funcionários que exercem cargos de natureza técnica, isto
é, doutores. Já vimos que espécie de técnica é a tal tão estimada na Bruzundanga. Convém, entretanto,
contar um fato elucidativo. Um doutor de lá que era até lente da Escola dos Engenheiros, apesar de ter
outros empregos rendosos, quis ser inspetor da carteira cambial do banco da Bruzundanga. Conseguiu
e, ao dia seguinte de sua nomeação, quando se tratou de afixar a taxa do câmbio, vendo que, na véspera
havia sido de 15 3/16, o sábio doutor mandou que se o fizesse no valor de 15 3/32. Um empregado
objetou:
— Vossa Excelência quer fazer descer o câmbio?
— Como descer? Faça o que estou mandando! Sou doutor em matemática.
E a cousa foi feita, mas o sábio deixou o lugar, para estudar aritmética.
Continuemos a citar fatos para que esta narração tenha o maior cunho de verdade, apesar de que
muita cousa possa parecer absurda aos leitores.
Certo dia li, nos atos oficiais do Ministério de Transportes e Comunicações daquele país, o seguinte:
“F., amanuense dos Correios da província dos Cocos, pedindo fazer constar de seus
assentamentos o seu título de doutor em medicina. — Deferido”.
O pedido e o despacho dispensam qualquer comentário; e, por eles, todos podem aquilatar até
que ponto chegou, na Bruzundanga, a superstição doutoral. Um amanuense que se quer recomendar
por ser médico, é fato que só se vê no interessante país da Bruzundanga.
Outros casos eloquentemente comprobativos do que venho expondo, posso ainda citar.
Vejamos.
Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país, votou-se um orçamento,
dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem os que ele diminuiu? Os impostos sobre os médicos
e advogados. Ainda mais.
Quando se tratou de organizar uma espécie de serviço militar obrigatório, o governo da
Bruzundanga, não podendo isentar totalmente os aspirantes a doutor, consentiu que eles não residissem
e comessem nos quartéis, no intuito piedoso de não lhes interromper os estudos. Entretanto, um caixeiro
que fosse sorteado perderia o emprego, como todo e qualquer empregado de casa particular.
Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias. O mandarinato chinês,
ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga, tem os seus mandarins botões de safira, de
topázio, de rubi, etc. No país em questão, eles não se distinguem por botões, mas pelos anéis. No
intuito de não fatigar os leitores, vou dar-lhes um quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com
a sua respectiva hierarquia colocada em ordem descendente. Guardem-no bem. Ei-lo, com as pedras
dos anéis:
Médicos (Esmeralda)Advogados (Rubi)Engenheiros (Safira)Doutores Engenheiros militares (Turqueza)Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel)Farmacêutico (Topázio)Dentista (Granada).
Em linhas gerais, são estas as características mais notáveis da nobreza doutoral da Bruzundanga.
Podia acrescentar outras, sobre todos os seus graus. Lembrarei, porém, ao meu correspondente que os
três primeiros graus são mais ou menos equivalentes; mas os três últimos gozam de um abatimento de
50% sobre o conceito que se faz dos primeiros.
Da outra nobreza, tratarei mais tarde, deixando de lado as meninas das Escolas Normais, com os
seus bonés de universidade americana, e os bacharéis em letras da Bruzundanga, porque lá não são
considerados nobres, Entretanto, as primeiras têm um anel distintivo que parece uma montra de joalheria,
pela quantidade de pedras que possui; e os últimos anunciam o seu curso com uma opala vulgar. Ambos
esses formados são lá considerados como falsa nobreza.
continua na página 18...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
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Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
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