terça-feira, 12 de junho de 2012

As orelhas de abano

XXXIII (3ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres


PARTE TRÊS
se reconheciam pelo nome de guerra e as orelhas
baitasar
É difícil para um aviador viver uma vida comum, cotidianamente em terra. Longe do convívio com as correntes de ar, as belas plumagens, a liberdade, o silêncio. O aviador foi feito para voar, mas o coronel do ar Mário aceitou ser o adido militar daquela embaixada, na terra das bananas e milho, florestas e águas, montanhas e praias, cholos e índios.
Tinha uma missão particular, chefe da polícia dentro do castelo diplomático, responsável pela segurança do séquito conivente com os malabarismos do embaixador.  Aceitou aquelas ordens de transferência mais para fugir do que servir. Esquivava-se das continências na sua freguesia de nascimento, por lá, estavam empolgados com o poder político de mandar prender, matar e torturar. As tiranias usam as armas do medo como cobras e lagartos. Primeiro, prendem. Depois matam. E torturam todos os amigos do conhecido com a invenção das histórias verdadeiras.
Todas as manhãs o coronel militar passava revista na guarda pretoriana e tratava de exigir que todos estivessem em seus lugares. As montanhas, o sol, o calor, dias ensopados dos suores daqueles corpos preparados para matar ou morrer pelo castelo, mas a simplicidade e humildade dos camponeses facilitavam o descumprimento das obrigações do vigiamento.
Desfez os feitos militares de praxe, trocados por cumprimentos de respeito, gestos de cortesia singelos, eram milicos civis, guardiões da vida pelo meio
— Senhor! Permissão para falar!
— Fale, sargento. — o sargento Da Lima foi o braço esquerdo do coronel no tempo de ocupação do castelo. Um preto grandalhão, forte, músculos que faziam sua mão parecer a extensão de uma palmatória gigante, pronta para punir e castigar. Tinha um sorriso imenso e fácil, a voz maior que seus músculos, uma alegria maior que a sua missão, não olhava enviesado, olhava direto
— Os homens querem participar da Festa da Banana.
— Querem sair por aí? Então, cortem os cabelos. — a severidade da hierarquia foi esquecida no tempo, mas o coronel mantinha a austeridade no corte dos cabelos. Um fio condutor. A rigidez que devia ser seguida pelos inferiores da hierarquia militar, pelo menos, no corte milico dos cabelos Uma bobagem..
O corte não é bonito, mas é prático. As orelhas de abano ganhavam destaque. Os soldados se reconheciam pelo nome de guerra e as orelhas. Umas gracinhas.
Baixou as normas para o corte de cabelo do corpo da guarda da embaixada e uso do bigode com ou sem barba – para ele e o tenente América. Todos usam seus cabelos em corte de meia cabeleira curta, cortado à máquina número dois, mantendo-se bem nítido os contornos junto às orelhas e o pescoço, sem disfarces ou desbastamentos a partir da borda da cobertura. Na parte superior da cabeça, o cabelo deverá estar desbastado o suficiente para harmonizar-se com o resto do corte e com o uso da cobertura. Jamais cobrir a testa com franjinhas, pastinha, coisas de viado. A número dois deverá ser usada na nuca, e, apenas com alternativa, os cabos, sargentos e oficiais poderão usar costeletas com comprimentos e volume dentro do bom senso do seu comandante. Para manter a manutenção do corte padrão, já descrito, o mesmo deverá ser efetuado no período máximo de dez dias. Antes que perguntassem determinou que bigodes não autorizaria nem na forma de pensamento, barba por fazer e o militar apanha punição. Coitados.
Aqueles modelos recortados davam destaque aos longos cabelos negros dos cholos. A pele avermelhada no tom da cor da cuia recebia os fios que lhe chegavam aos ombros, pareciam interceder em nome da rebeldia. Refinados. Elegantes. Subversivos. Simples e baratos, quase de graça. Índios e cholos embelezados em seus cabelos estirados na sua pureza.
O ritmo de vida é o mesmo todo dia, todo lento. Assim, podiam aprovar o luxo de reclamar que o tempo não passava e não havia necessidade de correrias para obedecer tantas ordens de reunir e dispersar, tudo aconteceria ao seu andamento oportuno
— ¿Por qué tanta rapidez? – perguntavam como se a inocência fosse uma obrigação humana indestrutível, uma conduta natural apartada de conflitos. A sina do miserável é ver pobre se dar bem. O fado do pobre é a sua cegueira de bandido e mocinho. Serve aos patrões privilegiados, serve-se dos miseráveis rejeitado em becos. Não importa se estão fardados ou nus, cabelos cortados rentes ou alongados até os ombros, todos estão fodidos
— Sargento, explique aos homens que ainda somos diferentes e temos uma missão.
— Sim, senhor!
— Estão liberados, mas que tenham os cuidados necessários na tal Festa da Banana.
Antes do nascimento do sol, os guardas se preparavam para acordar depois de uma longa vigília, passo de jabuti, sem afobação, uma comprida noite na missão diplomática. Tudo feito em movimento automático. Ainda de olhos fechados abriam os braços em cruz, para depois fechá-los e levar uma das mãos à boca, escondendo bocejos de moleza. Milico fardado não mostra fraqueza. Milico fardado não tem fraqueza, pelo menos, é o que esperam que todos acreditem. Os corpos suados e amassados não reagiam às primeiras ordens, precisavam ser repetidas. Perdiam o cacoete como máquinas de guerra, um pouco mais de descuido e se tornavam gentis senhores barrigudos com um charuto entre os dedos, a outra mão metida entre as carnes de alguma mestiça. Homens pelo meio.
Os cães latem de acordo com o dono.
Já se passaram uns bons anos, desde que cheguei escorrida e humilhada da casa dos Caraca: una cigarra en la colmena. Antes de descer do carro preto, com banderinha e salvo-conduto, sabia que ia ser comida, não apostava um centavo de cruzeiro nas minhas chances, lembro que repetia
— Adoro, adoro, adoro... — deixava uma perna apoiada no chão, a outra com o joelho na cama, afastava minhas coxas avermelhadas e ia, vinha, queria e queria, sabia e  sentia que ele também adorava me comer. Provocava suas fantasias, acendia as minhas.
Ele olhava minhas virilhas e se enfiava, olhava meus olhos e se empurrava mais fundo, olhava minha boca em súplicas
— Enfia, enfia, enfia tudo... — parecia embriagado com a própria dureza e os meus zumbidos, não falava, não reclamava, não elogiava
— Me come, me come, me come, embaixador filho-da-puta... — e me abraçava com seus grandes braços desajeitados.
Cães e donos ficam num jeito que não sabem mais quem é o dono.
Esses caolhos em terra de cegos já tinham conseguido algumas regalias, como o uso de uniformes mais ajustados àquele clima de calor tórrido. Mas não queriam deixar de lado a autoridade dos tradicionais uniformes camuflados, nem disfarçavam suas emoções observando os passantes que fixavam os olhos em suas poses imóveis, soldados brincando de estátua
— Coronel, com todo respeito. — acho graça como adoram essa palavra: respeito
— Sim, tenente. — respeito com as regras que criam a boa moça e a outra moça
— Senhor, vivemos o tempo do bode no meio da sala.
— Prossiga...
— Em tudo nos apontam culpados, acho que não podemos armar o inimigo.
— Não entendi, tenente.
— Mudar nossos uniformes. — essa é sempre a preocupação, as aparências do pudor, do juízo estético e das mãos. O proibido já foi condenado. As mãos servem para fazer continências e apertar o gatilho. O convencional não é para excitar, mas para ocultar as diferenças. O problema eram as orelhas, tão bonitinhas, mas como impedir o seu destaque? Como impedir que se tornassem atraentes? A deformação da modelagem do corpo esqueceu as orelhas
— Tenente, são apenas cores mais adequadas ao clima.
— Coronel, se o senhor me permite, o inferno está cheio...
— Entendi, tenente.
Talvez o tenente estivesse com razão: ejércitos armados no estaban preparados para esa camisa rosa. Seguiram usando o traje padrão, com bermudas em cor azul e camisa amarela, mangas curtas lisas, uma das mangas na mesma cor das calças aparadas na altura dos joelhos. Nos pés usavam meias de cano longo na cor das bermudas e tênis preto. Estavam desacostumados de serem soldados dispostos a morrer sem nenhuma razão. Pareciam as sentinelas numa grande colônia de férias, a nata refinada de uma sociedade de miseráveis, duquesas de cheiro e duques de fraque, cegos para o enxame das abelhas operárias que estava por vir.
Todas as manhãs, com chuva ou sol rasgando o dia, um homem mulo puxando o seu carrinho de ossos, vidro quebrado, garrafa vazia, qualquer ferro-velho, parava em frente ao portão da embaixada e olhava e olhava os guardas em prontidão de espera. Nenhum dos lados sorria ou resmungava, ninguém avançava ou recuava, apenas ficavam ali, em pé, parados, frente a frente, o soldado e o desdentado, escravos do mesmo patrão. Desenhados para fazerem o serviço sujo. Desconstruídos da própria identidade, sem passado, sem futuro, agarrados ao fuzil, mordendo o bucal, amarrados as rédeas, homem e cavalo, superiores ao tempo das chuvas e inferiores à merda. Conformados ao seu destino: morir de hambre o con los rifles en la mano.
Cada um sentia orgulho a sua maneira, por suas próprias razões, ninguém os respeitava como pai ou filhos, nunca foram celebridades do circo: domadores, trapezistas, nem palhaços velhos ou tristes. A popularidade não está interessada em tristezas ou muxoxo. Estão ali, frente a frente, desviados da vida, submissos, encarcerados em seu vestuário da corporação de classe, agarrados às rédeas. Ignorantes da própria vida, marchando e puxando, direita e esquerda, uma e depois a outra, sempre em frente, ninguém recua sem as ordens das ordens. Servem ao mundo organizado das ordens e contraordens, rezando ou orando, torcendo para que as balas, os estilhaços, a fome, a cachaça, a hóstia de bárbaros, não desmanche as suas carnes do peito, arranque os braços ou as pernas, ou ambas, braços e pernas pendurados em algum varal de cordão esfarelado, enquanto a cabeça agarrada ao pescoço assiste horrorizada a inutilidade de tudo aquilo, o desperdício da sua vida sem vida desde o primeiro “Sim, senhor!”.
E a terra misturada ao seu sangue e suor é apenas terra molhada, o barro os receberá de braços abertos: soldado anónimo y un mendigo. São tantos desperdiçados que a estátua é anônima. Cada soldado que desapareceu autorizado a matar foi despachado para morrer. Glória anônima. Desperdício de todos. Ensinados a matar pela vida. É o que esperam deles, marchar-puxar, direita e esquerda, um passo de cada vez, os dentes arreganhados, as gengivas avermelhadas, sempre em frente, os olhos retesados. Cada morte inútil é uma passagem para o nada, uma promessa de gozo da bala, granada, estilhaço.
Esses homens e mulheres de cerimônia estavam tão à vontade que as vigias pareciam desarmadas: los guardias son las armas. Eram soldados desmemoriados das guerras
— Para quê armas, coronel?
— Embaixador, o inferno está cheio... — quando se quer amedrontar basta lembrar que mesmo cheio sempre há mais um lugar por lá
— Concordo, coronel, mas violência só trás mais violência, basta que o soldado da guarda use as armas.
— Embaixador, não podemos fazer a segurança da embaixada... desarmados. — o embaixador Cuerpo-Santo se deixou convencer pela lógica militar: la mejor seguridad es la mejor arma en las manos de la confianza de los mejores hombres. A melhor defesa é um bom ataque aos desprevenidos, quando pensam que acabou, está apenas começando
— Arme os que fazem a vigilância.
— Tudo bem, senhor.
O coronel se afastou antes que o embaixador mudasse as ideias sobre armas e penhor das vidas. Seguiu para o prédio da guarda, o paiol da embaixada. Um arsenal de matar, um arranjo de defesa. Armas, munições e explosivos ficam estocadas para proteger e matar com eficiência, desde que o exército foi inventado isso é assim.
Minha querida, você deve achar que sou contra os exércitos, mas não, você está enganada. Adoro ver aqueles rapazes marchando, os músculos retesados, o queixo duro, o olhar em frente, a arma na mão e aquela batida reta e forte: pum pum pum. As botas amassando o chão me fazem sentir segura, estamos do mesmo lado. Acho um desperdício esses músculos desperdiçados com pólvoras e explosões, arrancados da minha cama por balas e baionetas. Não é bom para os negócios. Mas enfim, é a morte da vida para se ter vida.
A situação do armazém das armas em relação ao nível da vida indicava que era um paiol de poucas mortes, mas nada é nunca o que parece, pelo menos, no mundo das guerras e fofocas. Aquele paiol de superfície com aparência inofensiva escondia um submundo enterrado com acesso restrito ao coronel e ao tenente. Uma carta na manga que muda o jogo se for preciso blefar. Os passos do coronel ecoavam pelos corredores. Ruídos solitários naquela passagem de nível na segurança, saindo do nível um: conforto da mais absoluta paz; para o nível dois, sentinelas armados e atentos que milhos e bananas podem descer da montanha. Para fazer o quê, ninguém nunca soube, mas todo cuidado sempre é pouco quando estamos na casa de estranhos. E toda embaixada é um País dentro do outro País.
As boas vizinhas se conversam nas superfícies das janelas, sobre as cercas; nos pântanos do subsolo, não. A regra é desconfiar se o alerta sobe a segurança ao nível dois. Ninguém, além do coronel e do tenente tinha permissão para seguir para baixo, o nível três de insegurança.
O soldado Moisés que jamais progrediu do nível um, passou a noite no alojamento, se preparava para a rendição do elemento que fizera o serviço armado à noite. Tomou quatro copos de água morna e ficou pronto para as batalhas do dia. Um sujeito armado que bebe aquela água esquentada não me merece confiança. Não confiaria minhas vidas nas mãos armadas desse sujeito. Aliás, desconfiar desconfiando é interessante como lema de toda puta: saber que las órdenes se cumplen, pero nunca cuando atacan a la misericordia.

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