domingo, 24 de junho de 2012

Tu mentiu, negão

Becos sem saída - Núpcias


II
baitasar
Pronto e iluminado para o aborrecimento inconfessável: tomar banho. Sai a andar pelo quarto. Fala com o que pensa para além do remorso, o manso boi, touro já foi
—        Não arrasta os pés, ninguém precisa acordar. — olha para trás, no tempo de ver a Memória acomodada na cama. Aposta que na sua volta, daquele sacrifício de banho com caneco, a mulher já vai estar presa no sono. Vê um dos peitos da mulher espirrar desajeitado para fora da camisa de dormir. Continuam bonitos. Quase não vê a pontinha esticada, mas a vontade o faz ficar com água na boca. Aquela garupa a faz mais linda. Adora o seu jeito de deitar na largura. É uma preta graúda
—        O que tá olhando? — a voz tremeu, ela também estava se preparando
—        A minha preta continua gostosona.
—        Vá logo, tome o seu banho...
A voz da Memória não sai na firmeza que ela gostaria, patinou na garganta. Ogum sabe que atingiu seu alvo de flechamento, a graúda começa a ficar alagadiça de dentro para fora
—        Minha preta, casamento não é loteria. — ela sabe, ela sabe, é um acordo que precisa ser levado com cautela e caldo de galinha, assim nunca faz mal a ninguém
—        Mas precisa de confiar na sorte.
Quando chegou à cozinha o fogo da lenha já virara brasa desfalecida, quase cinza. Calcula quanta lenha e tempo vai precisar para animar o fogo... e a água esquentar no ponto de banheiro. Nem é tão frio. Revisa a contagem negativa da tortura de uma friagem. Decide por acalorar o banho. Enche a panela e coloca tudo sobre a chapa de ferro morna. Joga os tocos de pau na fornalha anestesiada. Espera pelas labaredas, está sentado sobre um mocho muito baixo. No tempo de ficar na tocaia do fogo desveste os chinelos e acomoda um dos pés no colo para cortar as unhas. A penumbra daquele toco de luz disfarçava suas vontades de veludo. Com a tesoura em punho se aproxima para o serviço de poda. Impossível. Desiste nas primeiras tentativas. Vai precisar colocar os pés no molho da água morna. Caminha de um lado a outro. Senta e espera a água ficar com o calor do fogo. Até que levanta para buscar a bacia das águas que se encontra nos primeiros vapores, mistura o quente com o frio, quer o jeito de suportar sem dor. Enfia os pés no caldo amornado e deixa afrouxando as pinças. Uma quentura gostosa lhe sobe pelo corpo, depois que a quentura resfria devolve a água na chaleira que vai para a chapa de ferro desaquecida. Precisa avivar o fogo, procura por mais lenha. Acabaram. Esquece as unhas. Solta um cochicho de palavrão
—        Quem quer fogo busque a lenha, quem quer fogo busque a lenha — resmunga baixinho, mas a vontade é gritar com a força de cada pulmão, sabe que em nada ajuda despertar a casa. Sai no pátio às escuras procurando a lenha, acabaram e esqueceu-se de juntar os paus para o fogo
—        Praga de urubu não mata cavalo. — lembrava-se de ouvir o vizinho rachar lenha, bem cedinho na manhã, o vizinho não fará implicação de birra se ele emprestar uns poucos tocos de galhos secos. Enfia o pescoço por cima da cerca, encara na escuridão a lenha. Decide pela doação. No dia seguinte se explica e repõem os tocos de madeira. Rapidamente planeja o ataque: entrar pelo portão, tudo muito simples. Pegar a lenha e sair em retirada. Enfia o boné e vai para o portão
—        Até aqui, tá fácil. — abre o portão e a sineta bate o sinal de boas vindas — Merda... merda... — olha para os lados, nada. Ergue os olhos, nada.
A lua está escondida. A escuridão é completa. A noite está em silêncio. O beco está surdo. Todos dormem. Até a cachorrada. Um pequeno arrepio de frio. Abre o portão. Sai para o beco, anda alguns passos e escuta uma saudação que lhe parece familiar
—        Boa noite, vizinho. — para congelado e olha para o lado, é o guarda da noite com seu cassetete salvador enfiado na cintura, o nariz recostado no queixo
—        Boa noite, seu guarda...
—        O vizinho vai passear ou é um causo de lobisomem?
—        Insônia... e o amigo vigilante?
—        Ando atrás de denúncias.
—        Denúncias?
—        Isso mesmo... parece que viram um amaldiçoado sem roupa, lá na encruzilhada, rodava no chão da esquerda pra direita, como um homem que virou bicho.
—        Isso parece coisa de mandinga.
—        Pode que sim, pode que não, mas caso eu encontre algum bicho peludo com orelhas compridas e cara de morcego, faço o animalejo desaparecer de pavor. — o vigia de coisa nenhuma continuava parado, esperava por aclaração daquele inesperado
—        Vizinho... essa escuridão carrega muita coisa escondida nas costas.
—        Acontece coisa que ninguém entende.
—        Eu mesmo tenho que fazer cuidado de caminhar, outra noite uma mulher desconhecida ficou a me reclamar na praça.
—        E o senhor?
—        Não fui, podia ser traição... e se me sai da escuridão algum desonesto?
—        Bem que fez...
—        E o amigo por que se vai a caminhar de cuecas? — o baixinho anda na cata da ameaça antes do ribeirinho sair da vila. Chama trabalho de cautela
—        Caminho dormindo.
—        Ah, fala e se levanta durante o sono...
—        Isso.
—        Então, o vizinho tá dormindo?
—        Já acordei.
—        É bom já ter acordado, assim pode voltar pra dentro e não vai preso por desvergonha.
—        Já to indo.
O Ogum volta para sua cozinha resmungando que Deus é bom, o diabo não é mau, mas o guarda da noite é um reduzido de merda em dieta de altura
—        Só vem para estes lados no serviço de caçar preto, esse sujeitinho tem pra si que todo preto é bandido ou lobisomem.
O resmungador procura por velas. O toco de vela queima muito rápido. Vai ficar cego de luz. Sorri amarelo jura que a sorte não havia de abandonar quem não merece ser largado
—        Merda! — mede com as palavras as suas novas possibilidades, o toco de luz queimou todo
—        Otimismo, Ogum... não pode piorar. — suas chances continuam as mesmas no escuro, ainda procura por velas.
Sobe no mocho, até a altura daquela tábua retorcida, o armário da cozinha. Com uma das mãos afasta a cortina de pano xadrez com vermelho e preto, a outra segura o toco de vela apagado. Revira com os olhos os copos, afasta os pratos com a língua, segura com os pés garfos e facas. Encontra duas velas. Acende as duas. Toma um gole da pinga Ferrão na Abelha. Sente a queimação do estômago que se espalha. Está pronto. Enche a bacia de água fria da chaleira e se vai ao quarto de banho. Tira as cuecas. Fica com os chinelos de dedos. Os havaianos de sola pretinha. Pega a caneca cheia d’água e se abstém da própria vontade para se satisfazer na fartura da Maria Memória. Molha-se com nervosismo e fúria. Alagado de água esfriada procura pelo sabão. Esqueceu também a toalha. Treme de frio e raiva. Impede o desalento. Vai até o quarto da cozinha deixando um rastro de água. Volta com o sabão amarelo da louça em uma das mãos, um pano de enxugar pratos na outra. Raspa aquele detergente de barra sobre a cabeça e fica em esfregação até desengordurar o corpo, sentir-se brilhante e polido. Joga-se sob a água da bacia de uma só vez. Mantém a própria agitação escondida, respira profundamente. Agarra-se ao pano dos pratos com exagero e seca as partes. O queixo treme.
Seco e polido, ele sai do quarto de banho. Estende o pano novamente na cozinha. Larga o sabão de volta na bandeja. Recolhe bacia e chaleiras. A cada passo arrastado o chão de madeira estremece, rangendo os pregos fincados na madeira, dentes na carne amaldiçoada. E assim, só de chinelos havaianos e uma vela na mão iluminando seu caminho, volta para Maria Memória
—        Cortou as unhas?
—        Cortei...
Num assopro deixa o quarto nas escuras. Não vai reparar, deitada de lado. Gosta de examinar outras partes
—        Hum...
—        O que foi, minha preta?
—        Cheiro gostoso, meu negão... gostei, perfume novo?
Devagarzinho, as mãos da Memória esquentam o corpo de pau de carga com um fogo diferente da lenha. O toco não é mais de madeira. Parece com o ferrão da abelha. E ele se fica assim, reacendendo a própria chama pelas mãos da Memória. Ela agora espalha o cheiro do amor. Adora seu perfume de mulher desejosa. Vai varrendo as cinzas. A cada gemido do homem, a mulher pedia silêncio e lhe tapava a voz com uma das mãos
—        Sem gritos...
Anjos vinham aos pensamentos de Ogum segredavam
—        Ogum, o paraíso é para os que sofrem.
—        Psiu... — pede silêncio aos anjos
—        O quê, negão?
—        Minha preta graúda... não para...
Maria Memória refresca as lembranças e coloca os olhos no centro daquilo que quer extrair com a boca. Está envolta em baba, mas não é de raiva, a bacia redonda aquece com o bafo do seu negão, um com a cabeça junto aos pés do outro
—        Ai1
—        O que foi, minha preta?
—        Tuas unhas do pé... não cortou!
—        Nem estão tão compridas...
—        Tu mentiu, negão.
—        Amorzinho, eu dou um jeito nas unhas depois.
—        Perdi a vontade.
—        Minha preta, não faz assim... não fica de birra.

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Leia também: 
10 - Pega essa vela, negão 

12 - O esfriamento das virilhas

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