Becos sem saída - Núpcias
II
baitasar
Pronto e iluminado para o aborrecimento inconfessável: tomar banho. Sai a
andar pelo quarto. Fala com o que pensa para além do remorso, o manso boi,
touro já foi
— Não arrasta os pés, ninguém
precisa acordar. — olha para trás, no tempo de ver a Memória acomodada na cama.
Aposta que na sua volta, daquele sacrifício de banho com caneco, a mulher já
vai estar presa no sono. Vê um dos peitos da mulher espirrar desajeitado para
fora da camisa de dormir. Continuam bonitos. Quase não vê a pontinha esticada,
mas a vontade o faz ficar com água na boca. Aquela garupa a faz mais linda.
Adora o seu jeito de deitar na largura. É uma preta graúda
— O que tá olhando? — a voz
tremeu, ela também estava se preparando
— A minha preta continua
gostosona.
— Vá logo, tome o seu banho...
A voz da Memória não sai na firmeza que ela gostaria, patinou na
garganta. Ogum sabe que atingiu seu alvo de flechamento, a graúda começa a
ficar alagadiça de dentro para fora
— Minha preta, casamento não
é loteria. — ela sabe, ela sabe, é um acordo que precisa ser levado com cautela
e caldo de galinha, assim nunca faz mal a ninguém
— Mas precisa de confiar na
sorte.
Quando chegou à cozinha o fogo da lenha já virara brasa desfalecida,
quase cinza. Calcula quanta lenha e tempo vai precisar para animar o fogo... e
a água esquentar no ponto de banheiro. Nem é tão frio. Revisa a contagem
negativa da tortura de uma friagem. Decide por acalorar o banho. Enche a panela
e coloca tudo sobre a chapa de ferro morna. Joga os tocos de pau na fornalha
anestesiada. Espera pelas labaredas, está sentado sobre um mocho muito baixo. No
tempo de ficar na tocaia do fogo desveste os chinelos e acomoda um dos pés no
colo para cortar as unhas. A penumbra daquele toco de luz disfarçava suas
vontades de veludo. Com a tesoura em punho se aproxima para o serviço de poda.
Impossível. Desiste nas primeiras tentativas. Vai precisar colocar os pés no
molho da água morna. Caminha de um lado a outro. Senta e espera a água ficar
com o calor do fogo. Até que levanta para buscar a bacia das águas que se
encontra nos primeiros vapores, mistura o quente com o frio, quer o jeito de
suportar sem dor. Enfia os pés no caldo amornado e deixa afrouxando as pinças. Uma
quentura gostosa lhe sobe pelo corpo, depois que a quentura resfria devolve a
água na chaleira que vai para a chapa de ferro desaquecida. Precisa avivar o
fogo, procura por mais lenha. Acabaram. Esquece as unhas. Solta um cochicho de
palavrão
— Quem quer fogo busque a
lenha, quem quer fogo busque a lenha — resmunga baixinho, mas a vontade é
gritar com a força de cada pulmão, sabe que em nada ajuda despertar a casa. Sai
no pátio às escuras procurando a lenha, acabaram e esqueceu-se de juntar os
paus para o fogo
— Praga de urubu não mata
cavalo. — lembrava-se de ouvir o vizinho rachar lenha, bem cedinho na manhã, o
vizinho não fará implicação de birra se ele emprestar uns poucos tocos de
galhos secos. Enfia o pescoço por cima da cerca, encara na escuridão a lenha.
Decide pela doação. No dia seguinte se explica e repõem os tocos de madeira.
Rapidamente planeja o ataque: entrar pelo portão, tudo muito simples. Pegar a
lenha e sair em
retirada. Enfia o boné e vai para o portão
— Até aqui, tá fácil. — abre
o portão e a sineta bate o sinal de boas vindas — Merda... merda... — olha para
os lados, nada. Ergue os olhos, nada.
A lua está escondida. A escuridão é completa. A noite está em silêncio. O
beco está surdo. Todos dormem. Até a cachorrada. Um pequeno arrepio de frio.
Abre o portão. Sai para o beco, anda alguns passos e escuta uma saudação que
lhe parece familiar
— Boa noite, vizinho. — para
congelado e olha para o lado, é o guarda da noite com seu cassetete salvador
enfiado na cintura, o nariz recostado no queixo
— Boa noite, seu guarda...
— O vizinho vai passear ou é
um causo de lobisomem?
— Insônia... e o amigo
vigilante?
— Ando atrás de denúncias.
— Denúncias?
— Isso mesmo... parece que
viram um amaldiçoado sem roupa, lá na encruzilhada, rodava no chão da esquerda pra
direita, como um homem que virou bicho.
— Isso parece coisa de
mandinga.
— Pode que sim, pode que não,
mas caso eu encontre algum bicho peludo com orelhas compridas e cara de
morcego, faço o animalejo desaparecer de pavor. — o vigia de coisa nenhuma
continuava parado, esperava por aclaração daquele inesperado
— Vizinho... essa escuridão
carrega muita coisa escondida nas costas.
— Acontece coisa que ninguém
entende.
— Eu mesmo tenho que fazer
cuidado de caminhar, outra noite uma mulher desconhecida ficou a me reclamar na
praça.
— E o senhor?
— Não fui, podia ser traição...
e se me sai da escuridão algum desonesto?
— Bem que fez...
— E o amigo por que se vai a
caminhar de cuecas? — o baixinho anda na cata da ameaça antes do ribeirinho
sair da vila. Chama trabalho de cautela
— Caminho dormindo.
— Ah, fala e se levanta
durante o sono...
— Isso.
— Então, o vizinho tá
dormindo?
— Já acordei.
— É bom já ter acordado,
assim pode voltar pra dentro e não vai preso por desvergonha.
— Já to indo.
O Ogum volta para sua cozinha resmungando que Deus é bom, o diabo não é
mau, mas o guarda da noite é um reduzido de merda em dieta de altura
— Só vem para estes lados no
serviço de caçar preto, esse sujeitinho tem pra si que todo preto é bandido ou
lobisomem.
O resmungador procura por velas. O toco de vela queima muito rápido. Vai
ficar cego de luz. Sorri amarelo jura que a sorte não havia de abandonar quem
não merece ser largado
— Merda! — mede com as
palavras as suas novas possibilidades, o toco de luz queimou todo
— Otimismo, Ogum... não pode
piorar. — suas chances continuam as mesmas no escuro, ainda procura por velas.
Sobe no mocho, até a altura daquela tábua retorcida, o armário da cozinha.
Com uma das mãos afasta a cortina de pano xadrez com vermelho e preto, a outra
segura o toco de vela apagado. Revira com os olhos os copos, afasta os pratos
com a língua, segura com os pés garfos e facas. Encontra duas velas. Acende as duas.
Toma um gole da pinga Ferrão na Abelha. Sente a queimação do estômago que se
espalha. Está pronto. Enche a bacia de água fria da chaleira e se vai ao quarto
de banho. Tira as cuecas. Fica com os chinelos de dedos. Os havaianos de sola
pretinha. Pega a caneca cheia d’água e se abstém da própria vontade para se
satisfazer na fartura da Maria Memória. Molha-se com nervosismo e fúria.
Alagado de água esfriada procura pelo sabão. Esqueceu também a toalha. Treme de
frio e raiva. Impede o desalento. Vai até o quarto da cozinha deixando um
rastro de água. Volta com o sabão amarelo da louça em uma das mãos, um pano de
enxugar pratos na outra. Raspa aquele detergente de barra sobre a cabeça e fica
em esfregação até desengordurar o corpo, sentir-se brilhante e polido. Joga-se
sob a água da bacia de uma só vez. Mantém a própria agitação escondida, respira
profundamente. Agarra-se ao pano dos pratos com exagero e seca as partes. O
queixo treme.
Seco e polido, ele sai do quarto de banho. Estende o pano novamente na
cozinha. Larga o sabão de volta na bandeja. Recolhe bacia e chaleiras. A cada
passo arrastado o chão de madeira estremece, rangendo os pregos fincados na
madeira, dentes na carne amaldiçoada. E assim, só de chinelos havaianos e uma
vela na mão iluminando seu caminho, volta para Maria Memória
— Cortou as unhas?
— Cortei...
Num assopro deixa o quarto nas escuras. Não vai reparar, deitada de lado.
Gosta de examinar outras partes
— Hum...
— O que foi, minha preta?
— Cheiro gostoso, meu negão...
gostei, perfume novo?
Devagarzinho, as mãos da Memória esquentam o corpo de pau de carga com um
fogo diferente da lenha. O toco não é mais de madeira. Parece com o ferrão da
abelha. E ele se fica assim, reacendendo a própria chama pelas mãos da Memória.
Ela agora espalha o cheiro do amor. Adora seu perfume de mulher desejosa. Vai
varrendo as cinzas. A cada gemido do homem, a mulher pedia silêncio e lhe
tapava a voz com uma das mãos
— Sem gritos...
Anjos vinham aos pensamentos de Ogum segredavam
— Ogum, o paraíso é para os
que sofrem.
— Psiu... — pede silêncio aos
anjos
— O quê, negão?
— Minha preta graúda... não
para...
Maria Memória refresca as lembranças e coloca os olhos no centro daquilo
que quer extrair com a boca. Está envolta em baba, mas não é de raiva, a bacia
redonda aquece com o bafo do seu negão, um com a cabeça junto aos pés do outro
— Ai1
— O que foi, minha preta?
— Tuas unhas do pé... não
cortou!
— Nem estão tão compridas...
— Tu mentiu, negão.
— Amorzinho, eu dou um jeito
nas unhas depois.
— Perdi a vontade.
— Minha preta, não faz assim...
não fica de birra.
_______________________
Leia também:
10 - Pega essa vela, negão
12 - O esfriamento das virilhas
_______________________
Leia também:
10 - Pega essa vela, negão
12 - O esfriamento das virilhas
Nenhum comentário:
Postar um comentário