XXXI (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
diferente é o
olho que olha
baitasar
Naquela noite, depois do aproveitamento forçado pelo mais velho, aquele
só com um olho, perdido defendendo a mãe do tio violentador, foi inevitável,
veio o mais novo cheio de coragem, afinal, arrombada por um, arrombada por
dois.
Fiquei como serventia de um prato de comida, depois de morta a fome
ficava encilhada sobre a cama. Homem nenhum consegue entender esse abandono.
Acordava todos os dias com a disposição de morrer, um animalzinho ferido,
largada nas beiradas de alguma estrada vazia de gente, desabitada de amor, em
decomposição. Esperando um olhar apático qualquer que me estendesse à mão sem
apetite de comer uma boceta índia. Ninguém dava importância, não tinha renome,
não tinha fama, não tinha dignidade, uma índia madraça abandonada pelo
esquecimento. Um palavrão para essa gente do bem, com ouvidos sensíveis e
olhares anuviados.
Para alguns, bem poucos, havia liberdade, ordem e riqueza, a
sensibilidade das palavras ingênuas, para as muitas cholas e índias, essas
coisas não existiam. As orgias dessas gentes bem de vida me deixavam
abandonada. Arrombada. Não descobria mais nenhum sentido em continuar do lado
de cá. Fazia bigamia de putaria. Não conseguia emancipar-me do vício daquela
gente exemplar, ilustre, gloriosa e caolha: una
familia piadosa. Preferia minhas supertições e conversas con la
Vieja, mas o que mais incomodava era
a bolsa vazia: hizo el servicio de forma
gratuita. O prometido foi descumprido
Gritar e pedir ajuda para quem do lado de cá? Pelo jeito, com essa
gente bonita e piedosa, sou culpada por negociar ou apanhar. O melhor seria que
eu não existisse, mais fácil para todos. Os guris dariam conta das suas vontades com as mãos até
encontrarem a mocinha dos sonhos, a tentação vestida de vigilante familiar. Uma
puta invisível, um anjo cínico, um faz de conta simpático, a tradição familiar.
Mantive o silêncio dos meus gritos. Minha confiança nos espíritos haveria de
encontrar um jeito de desatamento dessa armadilha, mas, pelo visto, o desate
das coisas do lado de lá tem outro jeito de soltura, outro tempo de acontecer.
De qualquer maneira, enquanto obedecia minhas ordens de serviço, fiz o
trabalho escravo de revezamento para amansar aqueles dois. A necessidade
empurra a gente na perseguição de alguma ajuda. Foi quando minhas rezas foram
atendidas e achei os escritos e ditos de la
Vieja.
Não conhecia a leitura de escola, mas sabia leitura da professora la Vieja
— Niña Preta, você precisa
conhecer o letramento das letras. — ela sempre quis ensinar de ouvir contar e
ler dos seus livros de encantaria
— Essas letras têm serventia de uso pra limpar as porcarias de cheiro da
patroa?
— Terá uso de serventia num dia que está por vir. — ela sabia mais do que
dizia que queria, mas la Montaña pesava mais que as palavras de la Vieja,
com se o destino do escrito fosse apenas ser lido e representado
— Então, esse dia e as leituras precisam esperar. — sempre fui prática,
aguento bem o sofrimento, desde que as minhas vontades não esqueçam quem manda
— Mi hija, nada espera no
mundão ou mundinho.
— Nem dona Lara, quer o serviço aprontado antes de precisar ordenar
feitura. — repetir leva à perfeição.
Assim, não ia à escola, o assunto nunca foi assunto, acabou antes de
virar assunto de importância, a sentença não foi escrita, não houve
necessidade, a decisão foi tomada por dona Lara
— Lugar de índio não é na escola, essa índia madraça tem mais do que
precisa, o costume de limpeza não se aprende na escola e de mais a mais não
veio se instruir, veio servir.
Assim, minhas leituras eram treinadas nas folhas de la Vieja. O que sei de
ler foi o que os meus olhos acharam nas letras esparramadas no assoalho do
quarto, livros esfarrapados, amarelados, ensebadas de si mesmas. Lendo e
escutando letras cansadas e sumidas. Aprendida a leitura dos escritos o tempo
de uso havia chegado, folheava lentamente, procurava alguma reza de simpatia
para amansar meus inimigos. E o meu sorriso triste se abriu
— Abaixo, leão, a espada no chão, em cima de cinco Salomé. Tu gurizim Calçado
és de ferro, eu sou de aço, quer ser o demônio, sente o embaraço, em nome das
três pessoas da Santíssima Trindade, que sai o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
— em seguida, eu rezava três Pais-Nossos e três Ave-Marias, para as três
pessoas da Santíssima Trindade, por três dias, durante três meses.
Até que sucedeu o que tinha que vir, a bolsa se encheu de sofrimento. Desisti
de sorrir, nada queria daquele trabalho que não era trabalho, a superfície do
dia estava misturada com os arrombamentos subterrâneos da madrugada. Não tinha
gosto por nenhum. Perdi o gosto pelo dia e aprendi a esperar acordada.
As desconfianças sempre chegam e depois de algum dia se confirmam para o
bem ou para o mal. Não tinha certeza de confirmação, mas desconfiava com
confiança que carregava o filho de um dos filhos do patrão, ou dos dois. Pelo
jeito que me fizeram uso, esse filho tinha dois pais.
Tanto não queria filho que me parecia bastar o meu não querer. Não
bastou. Foi noite sim de um e não do outro, revezando de um, próxima do outro.
Teve madrugada de muita fome, os dois vieram juntos, queriam serviço de
coincidência. Até que o meu bucho se entregou na feitura de um neto para dona
Lara.
Quando anunciei que a barriga estava crescendo os dois gurizim sumiram.
Nem para o almoço apareciam. Chegavam tarde e saiam cedo da madrugada, se
tivesse pensado esse grito de embuchada não teria dado tão certo, me vi livre
dos gurizim. Agradeci la Vieja e as rezas pras três pessoas da
Trindade, mas sempre desconfiei que se uma das três pessoas fosse mulher, o
assunto se resolvia antes.
Nada estava decidido, mas já estava feito. Até que o assunto do meu bucho
cheio chegou à superfície do dia, das conversas com o jeito de passar o tempo,
onde se diz de tudo e não se fala de nada, um sentido sem sentido, como ter
muitos conhecidos e nenhum amigo pra se desvestir dos personagens seus dramas
de faz-de-conta. Primeiro, chegaram os gritos e as ofensas
— Índia madraça! Pensa que vai fazer da minha família o mercadinho da
putaria? — não queria ouvir, queria que alguém enfiasse a mão em sua boca, como
me faziam, trapos na garganta, buchas no canhão — Cala a boca ou te enfio até
na garganta!
— Quem é o dono do embaraço? — respondi que não sabia, bem podia ser um
como o outro, ou os dois
— Vai tirar! — gritar e acusar se parece com rezar, basta começar.
Agarrou meu braço e arrastou o beco, o chão de poeira, as pedras, o
orgulho, a vergonha, o ódio, a escravidão, debaixo dos meus pés até a igreja.
Na portaria fez o sinal em cruz na testa, no nariz, no queixo, depois uma crua
maior na testa, no ombro esquerdo, no ombro direito, amém. Eu estava doida para
voar, mas as correntes no pescoço não me deixava respirar.
Fui carimbada como puta na testa. A mesma boca que se derramou sobre a
tiração de filhos dos outros, sentia a própria bocarra encher-se de esterco
— Padre, essa abriu as pernas.
— É preciso ensinar que não se fala das virilhas, não se toca nas
virilhas... — e eu doida pra voar, conversar con la Vieja
— Niña Preta, não faça nada que
pareça que as tuas partes são diferentes.
— Vieja, elas são diferentes?
— Bobagem, é tudo igual.
— Eu não entendo, Vieja.
— Diferente é o olho que olha. — adoro essas lembranças de conversinhas
de mansinho
Foi quando de birra, respondi
— Não quero tirar...
— Pois tira de qualquer jeito!
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