Becos sem saída - Comunistas desgraçados
III
baitasar
A menina faz contas e planos de arrumar todas as árvores necessárias para
registrar o casório de papel passado. Não pode pensar em adiar o desenlace.
Tudo se debate inquieto pelo seu corpo anguloso. Segredos. As dúvidas da menina
e as certezas do Manualdo. O matutoso sabe que conta com o desvergonhado Ogum. Esse,
por sua vez, quer um tempo de menos trabalho, mais descanso, quer preferência para
sua serventia de macho no tempo que lhe resta. E o vivente faz conta que não
lhe dá muito tempo. Viver de cobrir a sua preta é sua preferência. Mas depois
que ficou comprometido com a solução da tragédia não descansa até a conclusão
combinada. Passa os dias a dizer ao jovem Manualdo
— Sou escorpião.
— E daí, seu Ogum?
— Dos outros planetas...
— Homem bom é trabalhador,
seu Ogum.
O jovem cismador acaba por cutucar com vara curta. É provocação que o mais
velho responde de pronto, ainda não chegou no tempo de levar desaforo para casa
— Essa coisa de homem
trabalhador é conversa de patrão e mulher que esqueceu das carnes e fica
fornicando sozinha com a reza braba do padre.
O jovem fica olhando o sogro de empréstimo, medindo o passo seguinte, não
deve ser maior que o alcance da perna nem menor que o silêncio da covardia
— Hum... se o homem encontra a
mulher satisfeita precisa lhe deixa no descanso, tem que aceitar?
— Menino, cada um faz o que
quer do seu jeito, um não é medida do outro, só não pode jeito de fereza.
Passam o restante daquele dia discutindo as chances de casar sem as
plantações. A fé pode abalar as montanhas, mas é a fêmea que faz o ninho e a
Cariciosa não deixa que o assunto se esfrie mais que o tempo de pensar outra
pergunta
— Onde vamos arrumar tantas
mudas?
— Sei dum lugar...
Todos se voltam para o noivo, agora sim, estão se afogando em pingo
d’água
— Na hora aflita é que a
gente apita, é moleza.
— Mamã, isso não vai nada bem...
— Eu sei, minha filha, acho
que a porca torceu o rabo.
— Vamos escutar o guri, um
voto de confiança.
O rapaz espera a falta de barulho daquelas gargantas aflitas e inquietas,
não quer alertar ninguém além do necessário para aquela missão de resgate.
Depois que todos se aquietam, cochicha em murmúrios as bolinhas de sabão do
planejamento feito para semeadura de floresta. O propósito é aceito como
adequado, já não sabem para que santo se voltam, mas enfim, discutem aos
sussurros mudar árvores de lugar. Tudo em segredo. A necessidade não tem lei, mas
por via das dúvidas não querem testemunhas.
Aquele ataque precisa surpreender como um tufão silencioso que se
arremete do impensado e com o empenho corajoso de libertar o maior número de
vítimas daquelas terras execradas
— Eu também quero ir.
— Não vai, não, filho.
— Mas Ogum...
O ferroviário do boné olha para o guri e para o pé torto, não disfarça na
voz a intenção
— Não tem jeito, precisamos
ser rápidos.
— Ah, eu manco!
— Não é isso Lamparina, a
gente conversa depois.
— O Supimpa tu sempre deixa...
Pronto, o menino fica nos sentimentos de não ter serventia, além de
cumprir o papel de bobo, gente que só se preocupa com coisa sem importância. E
o Ogum só faz é dar mais interesse de prestígio ao ausente
— Rapaz, o teu irmão tem
jeito de milico.
— Aposto que deixava.
— Talvez, mas pra aproveitar
o treino de soldado.
Naquela madrugada, o vento se junta com mais vontade ao frio, pertence
àquelas horas. A névoa adequada àqueles baixios de beirada de rio vem chegando
aos poucos. Tudo assovia baixinho. Os dois homens saem com cara de poucos
amigos. O mais velho passa cinza de lenha na cara de preto. Todos riem. Ele
argumenta que é camuflagem de milico, que viu na televisão. O noivo resmunga
que lhe basta o disfarce da toca de lã enterrada até os olhos
— Guri, tu vem dos índios,
sabe rastejar por aí.
— A tua gente sabe correr.
— Não entendi o mal dito.
— É isso, esse teu tamanhão
merece disfarce.
As mulheres e Lamparina ficam ali, rezando. É assim mesmo, os impedidos
de qualquer comportamento de movimento vivem pela contemplação da oração. Os
gêmeos, analfabetos de religião, privilégio de criança, dormem enroscados, buscam
refúgio sem vergonha de pedir.
Os dois se vão, deixam todos para trás, abandonados. Os dois destemidos desaparecem
no beco deserto. Brincam de esconde-esconde pela escuridão. Agradecem ao bendito
desaparecimento da iluminação dos postes. Estão protegidos pela falta de vontade
das autoridades governar lâmpadas quebradas e queimadas
— To com frio.
— Cala a boca, Manualdo.
— Não quis atrapalhar.
— Silêncio, merda...
Já saíram da vila e têm o rumo desenhado na memória, planejamento da
guerrilha santa, os infiéis perdem algumas árvores sagradas para acobertamento
de casamento. Por enquanto, estão em desfavor, caminham nas escondidas e a
gritaria à-toa da cachorrada os acompanha a cada passo. Têm os ouvidos atentos
aos assopros do guarda-noturno. Um sujeito de um pouco menos de metro e meio,
enrolado num cobertor, sob um chapéu de duas abas que lhe cobrem as orelhas. Na
cintura leva um cassetete de borracha que lhe desce até o tornozelo, o nariz
lhe cai até o queixo. Dizem que jamais precisou desembalar a borracha do cinto.
Chegam à praça dos pedalinhos. Esperam que a sentinela avançada caminhe para a
outra ponta da rua. Assim, ele passa a noite, caminha de uma ponta a outra da
rua. É só preciso esperar. Hora ele está aqui, hora ele está lá. Não tem como
errar. O assoprador de apito numa extremidade da rua, eles na ponta de terra da
praça, no outro fim, arrancando pelas raízes as árvores recém-enterradas
— Consegui duas.
— Eu tenho três.
O apito aproxima o noturno dos violadores de túmulos, Manualdo ri de nervoso.
Os nervos pregam essas peças de culpas e desculpas. E o que não falta é gente
doente dos nervos, riem do nervoso
— Qual é a graça?
— Estava a matutando que a
ocasião faz o ladrão.
— Fecha essa tramela à toa...
psiu... aí vem o pequeno.
— Homem desse tamanho só
serve pra escorar carga e tapar chocalho.
Saem nas correrias com as cinco reféns. Fogem do pequeno vigilante, não
tem serventia além dessa de vigia. Carregam os mastros como levam o saco das
batatas, por sobre os ombros. Um fardo sem remorsos. As únicas testemunhas são
os cães. Latem para ouvidos calados pelo sono afundado da madrugada. Chegam. Encontram
todos em silêncio. O
cuidado e vigilância da família sucumbiram na sonolência. Todos dormem. Até as
galinhas. Enquanto o galo já se apronta para as suas cantorias. Está de um lado
a outro pelo pátio. Bate os esporões, como soldados inferiores batem os
calcanhares, em continências para as autoridades superiores. Age como sentinela
em vigília. Espera pela hora certa de abrir a sua cantoria.
Ambos caem exaustos pela missão cumprida. Salvos.
Na manhã seguinte, o sogro e o genro de fato, mas não de direito, passam
a quebrar as pedras do quintal cimentado. Invencionice da Maria Memória, em seu
jeito cismado de limpeza exigiu o sumiço da terra no pátio
— Não quero mais terrinha e
graminha para limpar. — o marido Ogum passou cimento por tudo
— E os bichos de pena? —
perguntou enquanto acinzentava
— Ficam no porão.
E assim foi feito. O minúsculo quintal foi todo vestido em argamassa de
palmo e meio. Levantado para cima do nível da rua e cercado com bambu deitado
no comprido e amarrados nos postes por fio de cobre. Precaução contra o
entra-sai desgovernado e o tempo de muita chuva com alagamento desmedido. O
galinheiro ficou abaixo do rés-do-chão. Agora, para dar jeito da plantação de árvores,
é preciso quebrar o pavimentado. Depois de muito martelar marreta em ponteira,
fazem a toca de uma das árvores. Buscam a muda e a enfiam na cova
— Não quero sombra deste lado
da casa, tratem de arrumar outro lugar.
Os desejos da Maria Memória são para serem cumpridos. Jamais discutidos.
Saem pra lá e cá e nenhum dá no jeito de agradar Maria Memória. Ficam impedidos
de acabar o começado. Quando se dão por vencidos, olham em volta, as mudas, muito
murchas e abatidas, haviam desistido desse mundo, mortas da sede e fome da
terra
— Filho, acho que exageramos.
— Não enraizou nenhuma das
morta.
— Antes de matar a onça, não
se faz negócio com o couro.
— Preciso dá a notícia pra
Cariciosa.
Juntos ficaram picotando os cadáveres. Todinhos. O Manualdo inutilizava
um galho, aí o Ogum pá, picotava outro. Depois outro, as folhas, o tronco. Tudo
virou lenha e lenda urbana
— Guri, nada se perde, ao que
está feito, alívio; ao por fazer, recomendação.
Não ficou qualquer pista. Todas incineradas no fogo, lenha de
combustível. Nenhum cadáver, nenhum crime. Desaparecidas.
A data do enlace vinha e nada das árvores. Nesse rumo, o fiscal da
prefeitura não tinha nada o que fiscalizar e anotar. Nada de casório por
autoridade.
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