XXXIV (3ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
caminhamos para a morte que nos espera vazia
baitasar
Os soldados sentinelas se preparavam para o rancho da manhã, como as
devassas se retiravam das luzes do dia, cansadas pela madrugada de prontidão. A
claridade não nos faz bem, preferimos a luz dos abajures que nos transformam em
fantasias fantásticas. Ser puta é um veneno inoculado que me destrói e ergue
meu jeito de terminar a vida, sem sonhos de mudar o mundo, ele é como é:
violador. Se ficares chocada e sentes formigar uma desinteressada raiva, não
fiques sentada me ouvindo, sai para o sol e deixa tua outra fúria virgem
acomodada, em algum banco da praça pública, observa a naturalidade das
crianças, como elas enfiam o dedo no nariz e levam meleca à boca, nem olham
para os lados, com medo da tua vigília, não temos nenhuma importância, melhor
assim, não achas? Não sou o diabo, nem ele se mexe em mim. Apenas caminho para
a morte que me espera vazia, sem nada, por que antecipá-la? medo do tédio? ou
do vazio da alma?
Os horários e as rotinas se acomodavam no leito do rio. A vida seguia seu
curso, água para uns e vinhos para outros. Guarnição na superfície, guarnição no
pântano. Gente destemida de morrer em silêncio, pelas razões do comando, calados
ou atirando.
Naquele dia, receberam ordens de armamento
com o cabo da guarda. Todos se olharam surpreendidos
— Armados
na embaixada?
— São
as novas ordens. — a desconfiança quando é confiada se parece com fofoca,
macumbeiro vira feiticeiro, covarde vira valente, soldado vira polícia.
O visto é lembrado pelas aparências de quem faz, não pelas suas
intenções. Vinagre não se mistura com azeite. O pântano é o pântano.
A meninada das bananas se reúne do outro lado do portão para admirar a
coreografia que mistura a invasão branca, espanhola e portuguesa, sobre índios
e mestiços, cholos de cabeças baixas.
Haverá o dia em que o fogo das putas acenderá as espinhas ósseas e os manterá
erguidos perto da claridade. Então, será a vez da morte de qualquer raça
recuar. Irem foder com a paciência das gentes humildes em outros sítios.
O tenente dá início a ronda entediada, leva no rastro, pelo prédio da
embaixada, o sargento e o cabo Caburé. Encontram o cadeado do portal sul de
acesso enferrujado e travado
— Sargento!
— Sim, senhor tenente!
— Esse cadeado precisa ser
trocado.
— Senhor, será providenciado,
senhor. — o sargento desvia seu olhar militar para o cabo
— Cabo!
— Já entendi, senhor!
Continuam a inspeção matinal. Naquelas terras ensolaradas essa inspeção
diária é o que mais se aproxima de um movimento militar de superfície
— Sargento!
— Sim, senhor tenente!
— Os banheiros do alojamento são
uma sujeira!
— Cabo!
— Soldado Moisés! — o soldado
surge entre as camas do alojamento
— Sim, cabo!
— Esses banheiros precisam de
limpeza!
— Concordo, cabo! — o final
da linha de comando faz continência de respeito, o cabo gira meia-volta e grita
com o soldado às suas costas
— Soldado Moisés! Os
banheiros...
— Senhor, o que eu tenho com
isso?
— Precisam de limpeza...
ordens do sargento!
— Merda...
— Algum verme disse alguma
coisa?
— Cabo, verme indo limpar os
banheiros! — o cabo fez continência de respeito ao sargento que fez continência
de respeito ao tenente.
— Ai meu dente ai meu dente!
— acordo do torpor divino das lembranças que invento porque estavam esquecidas,
meu dente dói. Resmungo a dor que doía do mesmo jeito quando minha irmã Blanca
cantava para a dor passar. A dor ficava aos bagaços no seu colo. Quantas dores
descarregaram no seu regaço desafiando espíritos e hipócritas? Não existem
príncipes perfeitos ou fuzil covarde ou leitores ingênuos
— Ai meu dente ai meu dente —
esse sofrimento deve espremer as imundícies do corpo, me dou a ele para salvar
mais espíritos e hipócritas, sem moedas, sem elogios, escondida, em silêncio,
caminhando de um lado a outro, sozinha, abandonada, depois recostada, como se
fosse uma trégua, uma súplica muda no sofá vermelho.
O soldado Moisés não mede palavras, ele morde suas ordens de serviços,
contrata índias para as suas tarefas, a preço de bananas. Houve quem afirmou,
sem medo de ter qualquer dúvida, que o soldado inventou a acomodação e o
sossego, diz que ajuda a naturalidade
— As miseráveis só entendem
de servir, fazem suas contas com o suficiente para comer. — sua tentativa de
acalmar a consciência
Mas era na vez de negociar a empreitada que o soldado se mostrava na sua
fúria de colonizador, com seu dialeto próprio, mistura sua língua com o idioma
das índias
— Não... é muito!
— ¿Que te passa, soldado?
— El pago en dinero está alto
para lavar os banheiros.
— ¡No es justo!
— Bueno, en tal caso, voy a
recordar al sargento que es tiempo de
cambiar a las mestizas que haces los servicios domésticos.
— ¡Hijo-de-puta!
— Vamos com isso! Que los
cuartos de baño precisam ser limpos.
— Hijo...
Mais uma manhã de rotina e os resmungos de sempre. É o costume mandar
quem pode e obedecer quem precisa. Alguns precisavam obedecer mais do que
outros, não bastava saber que eram necessários para os banheiros e a ordem
unida em marcha, era preciso zelar pelo silêncio das suas consciências, todos eram
protegidos pela sua poderosa fé na camaradagem
— E o cabo Caburé?
— Está de folga, coronel!
— Preciso de um corte no
cabelo.
O coronel já conhecia a resposta, mas precisava dar na vista de querer
saber o que já sabia. Coisas do submundo das aparências, mas elas não enganam
apenas quem se deixa iludir, formam as ideias de como devemos morrer. Assim, o
coronel elegeu para si morrer salvando as aparências do seu posto das entranhas
humanas, não agia como um semeador de medos, sensações vagas de ameaça, gritos,
pelotões de fuzilamentos, sempre contando com o silêncio divino. Até ser
chamado para empunhar sua espada. Desembainhada e manchada de sangue. Jamais
pensou ter que desembalar sua espada. No início, até se preocupava com sua
limpeza e brilho, mas com o tempo percebeu que nunca limparia o suficiente.
Assim, como o asfalto ao sol, essas preocupações foram derretidas, impermeabilizadas
de qualquer consciência, ninguém ensina o outro a ter consciência
— Quando o cabo retornar da
desocupação me avise, quero fazer a manutenção do cabelo.
— Sim, senhor.
Desvia a atenção do sargento para atender a embaixadora
— Sim, senhora.
O sargento caminha alguns passos sem afastar a imaginação dos ouvidos, se
mantém em distância segura e faz jeito de estar preocupado com alguma outra
coisa, mas tem na cara a assombração da desconfiança humana. Pensa que é fácil
inventar o que os dois conversam
— Querido, estou muito só.
— Sim, senhora.
— Preciso de você.
— Já vou, senhora.
— Não aguento mais.
— Tenha calma, senhora.
O sargento reconhecia que era uma mulher bem comportada. Discreta. Uma
embaixatriz perfeita para essa gente de milho e bananas. Nativa das elites. O
coronel deveria acreditar em bananas se achava que as suas respostas lacônicas
impediam o sargento de saber aquilo que a mulher lhe dizia ao ouvido. Cochichos
obscenos. O subalterno tinha as suas desconfianças que as coisas verdadeiras
aconteciam dentro das nossas cabeças, a cruz era carregar tudo em silêncio. O
sargento ficava calado, mas eu preferi lançar tudo pela boca do lápis. Além do
mais, o papel receita tudo, para o bem ou para o mal.
As pessoas gostam de falar, eu gosto de escrever, mesmo mastigando demais
as palavras. O silêncio deste diálogo me faz bem. A única coisa que me faz
perder a resignação é ficar na frente da folha em branco, ter nas mãos um toco
de lápis sem ponta, bagana gasta ou quebrada, e uma ideia pronta, imaginada de
repente ou depois de muita briga com as ideias ou com a falta delas. Olho para
os cantos e tetos procurando um apontador de tocos de lápis. Não encontro ou
não tenho, nestas horas, não importa mais, profundamente enervada, agarro o
toco e vou desfiando pouco a pouco com os dentes a sua ponta. Fico com as
nervuras entre as minhas pinças brancas, como se acabasse de desfiar uma
carcaça velha. Urubu carniceiro. Passo a unha pelos vãos em vão. Olho novamente
para o papel, agora com um toco desfiado a dentadas, tudo inútil. A magia já se
foi. Rezo de ódio contra a pobreza do lápis e essas ideias imaginativas com o
gosto da morte.
E gosto de morte é o que não falta na montanha de milho. Os mestiços
sabem que nunca voltam os mesmos depois que subiram a montanha. É como se ela
cobrasse uma vida de sacrifício para continuar grávida de milho. O caso das
bananas é recente, ainda não dá para saber da montanha a cota de sacrifícios em
vidas por safra.
Todas as manhãs antes da subida, cada um e uma, se dirigiam a montanha
com uma mesma prece, aprendida de velho pra criança, desde sempre
— Senhora de terra viva,
grávida de milho e banana, permita que eu volte para minha família, mas se for
seu desejo que eu fique em suas entranhas, assim seja cumprido. Amém.
Para mim sempre foi um mistério que hombres
y mujeres de milho pudessem acreditar
numa mãe que exige tantos sacrifícios. É desconcertante esse enigma de vida e
morte. E, mais misteriosa, ainda, a candura mística da vida no entorno da
montanha. É maravilhosa e assustadora a submissão aos seus desígnios e umidades
— Agora, coronel!
— Sim, senhora.
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