quinta-feira, 14 de junho de 2012

Comunistas desgraçados!

Becos sem saída - Comunistas desgraçados


V
baitasar
As reuniões na família continuavam. Já lá se ia dezembro pelo meio. Haviam de encontrar uma saída de dignidade. A barriga da guria já se avolumava, não tinha mais jeito de disfarçar. Já ia pelo tamanho da Memória. As mamas é que não se avolumavam como as pomas da mãe. Memória que tinha predicados de formosura não permitia que ninguém se referisse ao tamanho dos seus peitos. Eles haviam nutrido de vida aos bem pequeninos e alimentado muitos filhos. Ogum concordava, mas impunha como condição que ela não fizesse nenhuma referência a exuberância do seu umbigo. Ele se avolumava sempre que a mulher criava broto de gente na barriga. Acontecia que esses assuntos de homem e mulher tinham perdido em importância. Seu neto não ia nascer sem pai nas vistas de Deus. Ogum lembrou que conheceu um capitão de navio, numa dessas suas andanças
—        Vou procurar o Capitão-boca-mole.
E sem mais delonga se foi na procura do Capitão-boca-mole. O procurado foi achado ancorado na taberna, junto ao cais do porto, desembarcado. Marinheiro em terra se encontra em boteco de beira de rio, bebendo, agarrado à mulher e brigando, tudo junto. O tal marujo da boca mole se dizia diferente, jurava que é sangue direto do Capitão Hook. O gancho que tem no lugar da mão é sina de família. Acidente com baleia. O animal abocanhou o pedaço num descuido do Capitão, que recuperado do susto laçou o bicho e levou a nado para as terras da praia até que os dois encalharam. Ali ficou, sentado na areia, esperando que aquela senhora das águas lhe devolvesse sua parte. Não houve jeito de convencimento. Esperou pelo desfecho esperado e fez abertura da morta, num corte de ponta a ponta. Parece que a distinta já havia vomitado as carnes do Capitão no mar aberto. Nada foi encontrado que não devesse estar por dentro da infortunada. O capitão chegou a pensar em erro de identificação, talvez, fosse outro o animal culpado pela sua devoração. Mas o que estava feito, estava feito. Depois da desistência de encontrar o seu pedaço de mão o capitão mandou fazer um gancho que lhe ocupasse o espaço da carne desaparecida e tivesse serventia de ataque. Assim, o Capitão-boca-mole dos amigos é conhecido como Capitão Gancho dos inimigos
—        Não posso fazer casamento em terra firme, Ogum.
—        Precisa do quê?
—        Um barco e água.
—        Onde vou arranjar barco?
—        Na água sou comandante, mas em terra sou galego...
—        Deixa pra mim.
Ogum voltou para casa com o galego da boca-mole e gancho no lugar da mão. Reuniu a família e colocou todos na carroça, estava decidido que o pedido desta lei de plantação perdeu o sentido. A sexta-feira de lua cheia iria abastar em histórias. Tocou o Ícaro e gritou
—        Vamos fazer o casório da princesa e do príncipe comilão!
Abracadabra. O cavalo estragado pela preguiça foi transformado num puro sangue da realeza, puxou a carga aos trancos e barrancos. Conforme ia desfilando a carroça tomava contornos de um coche suntuoso. Não haveria uma festa a que todos compareceriam com suas melhores roupas, mas Ogum e Memória se preparavam para entregar sua princesinha com todo o requinte do cerimonial. Melhor, a menina teria um homem sem esposas, um marido de primeira mão.
Imaginando sua vida junto do futuro esposo, Cariciosa pensou pedir à mãe que lhe ensinasse a ser justa, para o convívio em seu lar fosse bom para todos. Achou melhor, não. Era mais certo dirigir seu pedido a Xangô. Lembrou os dias de menina com o pai. O calor do corpo de Virgílio e a delicadeza das suas mãos ainda lhe acompanhavam. O vento no rosto e a mão segura do Manualdo a trouxeram para a carroça. A carruagem capenga levava a sua carga para o lago da praça, com chafariz e os barcos pedalinhos
—        O que é isto?
Perguntou o capitão-boca-mole, erguendo seu boné de lona num só golpe pelo gancho
—        A água e o barco que precisamos para as formalidades festivas.
Todos desceram do coche - quem não pode que não se meta - é o lema do Ogum, determinado a finalizar aquele casa-não-casa
—        Os guris se ficam, aqui, desembarcados em terra.
—        Mãe, a gente quer entrar junto...
—        Ficam cuidando dos gêmeos miúdos.
A decisão estava tomada. Família não é democracia. Supimpa veio no rigor da farda militar. Acabou de sair de prontidão no quartel. Todo de azul. Sentou praça naquele ano. Concordou em ficar de sentinela. Afinal, estava aprendendo o cacoete do posto. Assim, uns ficaram na margem e outros foram lago adentro pedalando. Os miúdos ameaçavam chorar
—        Calem a boca, não façam barulho.
Era o Supimpa, já arrependido da ideia. Olhava para os lados, esperando o desembarque dos milicos, cassetete nas mãos e muita vontade de seguir as ordens do alto
—        Prendam esses comunistas baderneiros!
Supimpa procurava com o olhar nas praias do chafariz, não viu os jipes e tanques inimigos de desembarque
—        Calem a boca. — gritou para os irmãos
—        Por quê?
—        A polícia...
—        Estão todos bêbados de alívio.
Lamparina falava aos cochichos. Sempre foi mais calado, mas havia resolvido aliviar o mais velho. Já vai longe o tempo em que cuidava das galinhas enquanto o irmão saia para jogar bola nos campos de lama da vila
—        Por quê?
—        Tu já tem novo General-Presidente.
—        Trocou?
—        Ainda não, só em março do ano que vem, um tal general Figueiredo...
—        Quem sabe seja o último...
—        É... quem sabe?
O mais novo desvendou a razão da prontidão no quartel do mais velho. Lamparina descobria que estava cansado daquilo tudo. O irmão fazia obediência de prontidão e não sabia da razão. O mais novo parecia querer fazer confissão, era a boca falando com o coração cheio de... não sabe muito bem o que
—        Irmão, to indo embora.
—        Ainda nem terminou o casório.
—        Não é daqui, quero sair dessa vida de vileiro.
—        Fazê o quê?
—        Vou catar ouro.
—        Vai terminar catando lixo.
Pobre sina de pobre, sempre que quer mudança na vida aparece alguém desconfiado e decreta que não vai dar certo e vai ficar pior, não tem jeito... pobre tem utilidade de existência para enricar os bem de vida
—        Vou catar ouro. — onde? num lugar longe? tantas perguntas querendo sair garganta afora
—        Serra Pelada... — o mais velho puxa pela memória e não encontra nome de lugar conhecido. Pensa que o outro vai se enfiar em algum cafundó e não se acha mais nem no caminho de volta, nunca ouviu falar
—        Ta tudo nas escondidas, mas tem ouro por lá. — onde fica isso? quer insistir no ponto de fazer o outro desistir
—        Na Serra dos Carajás... — é aqui perto? é perto da onde? chega de que jeito?
—        No estado do Pará, na Amazônia! — grita por espanto da lonjura, o guri vai... e se chegar, não volta mais. Todos no lago se voltam. Os dois calam, mas recomeçam os sussurros quando a precaução de zelo mais se parece com brincadeira de moleque do que uma ameaça que existe pelos fatos
—        Tá de brincadeira, como você vai?
—        Carona... ou caminhando, sei lá. — e a mãe que não sabe
—        Mando carta...
Ficam em silêncio, um ao lado do outro. Supimpa enfia as mãos no bolso da calça de milico. Enxerga o sofrimento da mãe, mas não tem na vontade jeito de alterar o decisório do irmão, que cada um cumpra a sua sina. Às vezes partimos sem nunca sair ou ficamos sem nunca ficar de verdade. Ele também tem palavreado de importância sobre o seu futuro
—        Também tenho decisão tomada. — vai fazer o quê? se não é coisa ruim que o irmão faça com vontade
—        Aceitei convite do Calçacurta... — agora que ficou na dívida de conhecimento foi o caçador de ouro, quem? não sabia se seria de confiança
—        Aquele delegado da polícia, lá do redor da vila. — por que polícia? tanta coisa pra sair fazendo, achou perigoso, mas a decisão tomada estava tomada, e o quartel? é carreira bonita
—        Termino esse ano...
O mais novo se ajeita e finca o olhar para o chão
—        Cuidado...
No meio do tanque irregular de jardim, o Capitão-boca-mole, legítimo representante da dinastia bóia-fria das águas, se ergue e pede a todos que fiquem em pé. Todos se levantam com dificuldades de equilíbrio bêbado. Maria Cariciosa, com as mãos a serenar a barriga, reclama das náuseas, acha que vai vomitar
—        Respira fundo, amorzinho.
O único que parece não se incomodar com aquele balanço das águas é o boca-mole, acostumado com o embalo de ondas maiores
—        Estamos aqui reunidos para casar esses dois jovens amantes...
—        Corta o discurso, boca-mole... as alianças.
—        Quem carrega? — todos se olham, não sabem, nem um nem outro
—        Nem eu!
Iniciam a caça pelas alianças. Tentam os bolsos, as bolsas e as sacolas, dentro dos sapatos. E, como em uma brincadeira de dominó, o Capitão-boca-mole se desequilibra, leva o gancho ao ar, procura alguma coisa pra se enganchar e derruba a moça, a mais próxima. Cai agarrado ao vestido da noiva que empurra o noivo que puxa a sogra que se agarra ao pescoço de Ogum que se atraca no vazio do buraco. Afundam até os joelhos
—        Comunistas desgraçados!

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