Becos sem saída - Comunistas desgraçados
IV
baitasar
Ogum, em atitude de pai oficial, chamou o esposo futuroso para uns poucos
esclarecimentos de família. Esperou a reunião da linhagem, o embaraço tomava
assento no lugar de todos, não sabiam que atitude de pai oficial Ogum iria
tomar. Enquanto o embaraço não era desfeito ele se mantinha em pé, com um dos
gêmeos no colo, à sombra do pórtico da sala de visitações e a cozinha. Pede
silêncio. Parece maior do que é. Não é maior que a porta, mas que se parece
maior, isso parece. Sente lhe chegando pela retaguarda o calor da lenha
queimada no fogão. A chaleira d’água chiava louca por uso de chimarrão. O negão
no uso de memória notou desde o amassamento da chaleira por tombo de descuido: o
chiado não é mais o mesmo, se parece com rouco de soneira com a barriga pra
cima. Junta o guri no chão e serve o chimarrão. Os outros ficam ajeitados onde
dá no jeito, exceção feita a Memória, sentada no sofá, com as costas para os
quadros de São Jorge e o Coração de Maria pendurados na parede. Antes que a
impaciente comece falatório, o anfitrião inicia discurso sobre as desnecessidades
de achar chão de terra para enfiar as novas árvores. Afinal, eles viviam quase
no meio do mato. Aquilo beirava perto do engraçado absurdo. A penumbra daquelas
paredes empobrecia de ver os outros, estendidos num imenso mosaico. O único
bico de luz cai de uma teia de fios do teto, pendurado por mais dois fios. A lâmpada
gordurosa irradiava uma tênue luz empoeirada. A Memória na sua fantasia de
impaciente faz menção de uso da palavra, mas se aquieta, fica afundada no sofá
olhando para as suas meias brancas e chinelos de dedo
— Tudo tá virando em pedra e
cimento com os grã-finos.
— Negão, por que não
plantamos por aqui, na vila.
— Pra quê? Fazê mais mato?
Quem se acalora? Minha preta, aqui, ta tudo virando matoca, um mato de maloca umas
por cima das outras.
Olhou solene para o teto esburacado e depois para as próprias alpargatas
de corda, pensando que honra demais é orgulho
— Tenho sugestão...
— Desembucha logo, negão...
— Vamô esquecê o tal
casamento.
— O quê? — a Memória se
levantou com força, queria entender direito essa falta de memória com o
casamento da filha
— O Manualdo se vem com as
malas de bagagem e se fica por cá... na informalidade.
— Na imoralidade! — era o
torto que ela tinha entendido, traída pela carne que lhe comia na
clandestinidade, um serviço prestimoso que lhe amansava mais que na comparação
com os outros tempos, diga-se para o bem da verdade, mas nem por isso ia deixar
que a bobagem dita fosse feita
— Minha preta, amigado com
fé casado é...
— Os meus filhos são filhos
de um pai casado e uma mãe casada!
— Alguns sim, outros não.
— Por hoje, não, mas por
aqueles dias, sim!
— Minha preta...
— O que foi? — não conseguia
mais voltar no caminho já andado, em pé estava em pé ficava
— Os gêmeos são nossos e a gente
não fez casório de autoridade... — têm alguns assuntos que não se enfia em
conversa de nervosismo, não tem serventia de solução, acalora os ânimos e desregula
as palavras que se despejam da garganta
— Fui abandonada, fiz casório
de necessidade! — pronto, estava dito, o negão foi solução de socorrimento,
antes que o apetite e a desesperança tomasse conta do pensamento da família sem
chefe
— Minha preta, isso não quer
dizer que não vai haver casório. — o negão não pareceu se abalar com o
desmascaramento da sua preta, não tinha vindo até ali para desistir com as
primeiras palavras mal ditas
— Isso quer dizer o quê?
— Minha preta, além disso, se
a premeditação não dá certo, economizamos em outras vinte plantações...
— Meu Deus! Esses dois
emparelham com árvore ou sem árvore. — não conseguia mais sentar, não conseguia
mais parar de caminhar de um lado para outro
— Mamã...
— O quê, menina?— a
impaciência nos faz cegar os próprios olhos
— Estou carregada...
O tempo estava parado, a Terra empacava de girar enquanto ela acariciava
o próprio cesto. Os olhos de todos foram da Maria Cariciosa para Manualdo, dele
para ela. Ninguém se atrevia quebrar o mistério daquele silêncio. Pensar e
dizer o quê
— Mais uma boca... — foi a
solução do Ogum — pelo visto, a guria se enredou nas lãs do guarani e saiu
tosquiada, assim é que o pobre aumenta a própria pobreza.
Memória faz sinal para que o Ogum pare com os discursos de acusamento,
agora já não adianta avisar pra não colocar os carros adiante dos bois. O guri
de cabeleira lisa pedira emprestado o que não devia. Esse cogitabundo antes de
produzir lucros já entrava na família com débitos. Safado de danado, na sombra
da galinha o cachorro bebia água.
A mãe em preparativos de mãe, também em preparativos de avó, se põe a
recolher a colher presa no arpão. Olha com firmeza para o rapaz. A interrupção
das palavras se prolonga. Memória procura algum sinal de encantamento do boto
cor-de-rosa, naquele Manualdo. Tudo é possível, já prestara atenção em história
de homem que se virava em boto, viajava muitas águas até encontrar a mulher
nova dos seus encantamentos para desencaminhar. Revirava boto e desaparecia,
deixando a rapariga em semeadura de muamba. O quitute fora servido ao rapaz.
Quando recomeçou a falar parecia que a boca tinha perdido o corpo
— Como já disse, esses se
casam com qualquer arbusto fincado no chão.
— Se vocês quiserem, posso
trazer frei Domingos da pastoral.
— Calma, seu comilão...
Esperam pelos pensamentos da Memória. A mãe já com destino traçado de avó
abre a boca com calmaria, como alguém que encontra a solução procurada
— Vamos nos aproveitar desse
tempo de nasce papa e morre papa.
A conversa da família estava encerrada. Ninguém entendeu coisa alguma
daquele final, mas se a mãe da prejudicada se dava por satisfeita o resto do
bando obedecia.
No dia seguinte, Memória já está de falação com o padre, tem a filha pela
mão. Toma o desvio dos atalhos nas boas maneiras, esclarecendo sua tristeza e
solidariedade
— Padre, sei que vocês estão
em luto.
— Luto, dona Memória?
— Sim, o crime do padre...
— Mas que crime, dona Memória?
— esse lhe parecia mais desinformado que a filha abrindo as pernas sem o
cuidado de não embuchar
— O Papa...
— Ah, não... foi um ataque do
coração.
— É mesmo? — ela desconfia
que esteja mais bem informada que esse ajudante de Deus desinformado
— É... mas já vai passar.
A morte só é ruim pra quem morre... quem fica logo arruma jeito de seguir
em frente, o espetáculo de deglutição da vida precisa continuar
— Como assim?
— Em breve, já teremos a
fumaça branca e um outro velho papa.
— Rei retirado, é rei reposto.
— a Memória parou um minuto suas preocupações com a filha, ela estava intrigada
com essa história de fumaça branca e fumaça preta. Não sabia que podia existir
a tal fumaça branca, mas isso é assunto para outro dia, conversa de menos
seriedade com o padre
— Obrigado por suas preocupações,
mas qual a razão da sua visita?
Havia chegado o momento, a Memória precisava colocar os pingos nas letras
certas. Nas dobraduras do destino vale tudo, usar qualquer papel com calma e
doçura, inventar seu próprio cenário
— A nova lei...
— Qual lei?
— Essa que pra casar é
preciso plantar árvores...
— É um absurdo!
— Ah, então o padre concorda
que não é preciso plantar nenhuma árvore.
— Não é bem isso, dona
Memória. — pronto, tinha alertado o inimigo com a sua boca grande e jeito de
querer tudo no certinho do ajustado, lhe veio um pressentimento de
ressentimento, tantos anos o Santo Padre pendurado em sua parede sem lhe
oferecer nenhum favorecimento
— Então, o que é?
A Memória em vias de se tornar avó de fato se põe em guarda, o padre deu
um rumo inesperado para aquele pequeno complô de desobediência, parece que a
igreja não está preparada para fazer justiça. Quase abre a boca pra dizer que
isso não é nada comparada com a eternidade, mas não sabe se o padre entende de
eternidade, é muito jovem
— Sabe como é, dona Memória...
chefe novo a gente não conhece, por enquanto... seguimos a lei.
— Padre, não temos as árvores
e a barriga da guria está encantada!
— Minha filha... — o padre
resmunga enquanto junta as próprias mãos ao peito, delicadamente. Tão
suavemente era o padre, que Maria Memória jura que se parecia com um Padre Santo,
o próximo a virar
— O que posso fazer? As leis
são para serem cumpridas.
— Mas eles não querem mais
viver no pecado da carne desabençoada, cobiçam muito casar no padre, são as
leis de Deus... essas vêm antes.
— O que já foi feito não pode
ser desfeito.
— Isso a gente já sabe, mas
queremos os proclamas e a data marcada. — um casório com a autoridade de Deus
— Depois das plantações...
— Padre, uma família tem que
ter um marido... a menina precisa casar.
— Se for a vontade de Deus.
— Padre, a quem Deus promete,
não falta ...
Maria Memória olha o padre com a boca cheia de palavrada obscena, engole
arranhando pela garganta, ainda não está louca de brigar com alguém que se
parece com santo. Tudo no seu tempo. Ela vira santa ou ele desfigura em homem. Tudo no seu tempo.
Afinal, estão em luto.
Aguarda pelo andamento dos dias, o luto aliviado há de chegar.
Não existe algo mais importante que a sua filha, se Deus não quer o casamento é
ele que peca
— Padre, agora sei o que
matou o Santo Padre... tão depressa.
— O quê, minha filha?
— A deslealdade e a estupidez.
— O quê?
— Esqueceram do Crucificado...
— olha para o homem a sua frente e é isso que vê, apenas um homem. Com medo.
Pensa que ainda estão confusos com as mudanças seguidas de chefia. Não sabem
que rumos irão seguir. Desconhecem as ordens superiores.
Engraçado, até instantes, ela juraria que só haveria um caminho, o
caminho da palavra de Deus. Sacode a cabeça para afastar esses pensamentos do
demônio. Ela não sabe com certeza, mas ela já desconfia: continua na
condição de escrava. Trazida da África. Batizada e obrigada a seguir padre
— A gente se fala qualquer
dia destes, padre.
— Deus lhe abençoe, minha
filha. Boa sorte.
— O senhor está nas
necessidades mais do que a guria carregada de barriga. — pegou a Maria
Cariciosa pela mão e se foram. Desistiu. Sabia que casório longe do padre não
ia ter força. Ela naquela dúvida e a menina estufando. Duas crescendo de
volume.
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Leia também:
07 - Todos dormem. Até as galinhas.
09 - Comunistas desgraçados!
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