domingo, 17 de junho de 2012

Kichute

Cachecol 
I
Quer Aprender, Sèzar?
baitasar



Comecei a ser tricotado antes do Sèzar nascer, antes da Áurea e do João se conhecerem. A mãe do Sèzar é uma mulher determinada, não deixa nada para depois, uma moçoila casadoura, flutuava com o seu sonho de ser mãe, antes mesmo de conhecer os fluidos e o gozo masculino
—        Quero ter um filho, mamãe.
Para lembrar-se que viera ao mundo para ser mãe de um menino, escolheu o nome do filho antes de conhecer o nome do pai do filho
—        O meu filho vai se chamar Sèzar.
E começou um cachecol para o filho que não tinha previsão para nascer. Todo dia uma carreira, no início tentou usar o mesmo ponto de tricô
— Minha filha, um dia nunca é igual ao outro.
Tomou como conselho o que sua mãe lhe disse e deixou de se preocupar em repetir os pontos da carreira anterior. Cada dia uma carreira com pontos de tricô que não repetia e inventava. Cada dia uma carreira, um dia de cada vez.
Quando o menino já tinha força e habilidade com as agulhas do tricô, começou ensinando o filho o ponto do tricô. O cachecol era dele, justo que manuseie no seu gosto.
Pela frente, por trás, pela frente, por trás, até terminar a carreira. No dia seguinte, troca de mão as agulhas e retorna com a mesma paciência, pela frente por trás, com a mesma disposição, pela frente por trás. Normalmente, se é que existe uma normalidade normal, tem mantido o meu tricô crescendo. Sou o cachecol do Sèzar.
São cinco horas da manhã. Não dormiu, quis e não conseguiu, desistiu do sono que não queria, não iria insistir. Mais um dia de provas na escola e não sabia as fórmulas. Levantou e foi à cozinha, tinha o vazio do corpo adormecido pelo descaso do sono. O aroma daquele cafezinho fez minha memória viajar no tempo do Sèzar, na mesma cozinha, coando o café em coador de pano, a água quente fumegando na chaleira e, ao longe, vó Jueci cantarolando
—        Haiti, Haiti, Haiti, está fazendo na cozinha, está cheirando aqui. — foi por essa época que os cheiros começaram a fincar raízes em minha memória.
Perdeu o sono porque não lembrava nenhuma fórmula matemática. A professora mandava revisar todos os exercícios. Sèzar espichava o olho e copiava da menina do lado. Depois chamava a professora. Tudo estava certinho. Ela abria um sorriso enfeitado
—        Muito bem, Sèzar!
Uma justa recompensa depois do seu esforço em não ser notado copiando as tarefas da menina sentada ao lado. Não copiava por mal, apenas gostava mais do perfume da professora quando ela estava satisfeita. A colega não tinha importância como menina, a professora não tinha importância como mulher, mas ele não queria decepcionar nenhuma delas. Copiava de uma e mentia à outra. Falsificava-se para as duas, mas não enganava a si mesmo, não gostava da matemática.
Tricotava o cachecol que está por terminar um dia. Não tenho pressa e sinto que ele não tem ligeireza. Uma carreira por dia.
O aromado café me devolve à cozinha. Está pronto. Serve na xícara, uma colherinha de açúcar, mexe e toma um pequeno gole, delicioso. Pega uma broa de milho com uma gota de goiabada, deliciosa. Outro gole de café e os dois sabores se misturam, deliciosos. Pega o tricô e faz mais carreira, pela frente por trás, pela frente por trás. Toma o último gole. Volta à cozinha e serve do mesmo café, está delicioso. Guarda o tricô.
Fico guardado dentro da sacola das lãs e agulhas. Vou sendo tricotado e vigiado, uma carreira por dia. Quando Sèzar quer lembrar das lembranças de si mesmo, olha para minha obra inacabada. Examina as variedades dos pontos em cruz, gaitinha, o colorido das lãs, sou os apontamentos da sua vida. Definitivamente, não sou um cachecol como outros cachecóis. Sou o seu cachecol, o cachecol da sua vida.
Antes de Sèzar aprender a tricotar sem parar, até cansar, jogava bola com os outros garotos, não tinha as artes e artimanhas virtuosas de dominar um jogo de bola com os pés, nem tamanho e cara de zagueiro, mas tinha asma, tão importante como fazer golos ou evitar os golos dos garotos do outro time era respirar. Era escalado para impedir os garotos do outro time. O problema era a asma, flutuava acima dos campos de terra e capim ralo. O chiado não queria ser um jogador de bola com os pés, queria respirar e ver a professora feliz.
Foi quando a menina do lado amparou e iluminou o seu sorriso, ele que não sorria para ninguém. Copiava da menina do lado. Não era trapaça do seu jeito de ver, estudava duas vezes; primeiro sozinho e sem entender nada, depois quando copiava as respostas da sua quieta companhia e entendia tudo, era tão simples. Tudo é simples, complicado era pedir ajuda.
Durante o recreio na escola, aquele entretempo que permite às crianças serem crianças, os garotos iam para sua metade do pátio, jogar futebol, com alguma coisa que chamavam de bola, mas que nem sempre era redonda, fofa e macia. Pano, papelão, meia ou tampinhas, qualquer coisa que pudesse ser usada para levar uns chutes. Por isso, todos do time usavam tênis kichute preto com meias pretas, prontos para qualquer aventura.
As gurias ficavam na outra metade, pulando corda, amarelinha, brincando de roda.
Num daqueles dias nublados e mornos de outono, Sèzar não quis jogar, seu kichute sujou de barro. Seu tênis ficou em casa secando. Foi à escola com o sapato dos passeios na casa da avó Jueci. Não conheci nenhum garoto que conseguisse evitar uma poça d’água, sem passar por dentro, espalhando lama sem conta, por tudo.
Enfiou os pés nos sapatos de passear e saiu para o colégio, muito bem recomendado: evitar poças d’água e bolas de qualquer espécie ou não iria visitar a avó. Ele queria mostrar-se à avó.
No recreio, ficou perambulando na outra metade do pátio, entre as meninas pulando e brincando. Outros meninos brincavam junto. Ficou surpreso, achava que todos os garotos jogavam bola ou ficavam na volta do campo gritando palavradas, torcendo contra ou por eles. O recreio não era apenas jogar bola.
Lá estava ela, Sueli, sentada num dos bancos à sombra do cinamomo, com suas bolinhas verdes e amarelas. Uma árvore com as cores da nossa bandeira, as cores branco e azul dos nossos uniformes descansavam na sua sombra, sossegavam na grama.
Ela estava tricotando. Os sapatos do Sèzar visitar sua avó tinham vontade própria, o levaram até aquela sombra e pararam — Enfrente a garota tricoteira — um zunzunzum que tentava empurrá-lo, continuava mudo, até que ela veio em seu socorro
—        Quer aprender? — não lhe disse mais nada, nem resmungou qualquer coisa, a presença do menino não era inconveniente, parecia querer dizer que estava disposta a lhe ensinar a tricotar, também. Tinha um sorriso nos lábios que vinha do coração. Convidava Sèzar para copiar o seu jeito de tricotar.
São tolos desde pequenos, não importa o kichute ou o sapato que usam.

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