Cachecol
I
Quer Aprender, Sèzar?
baitasar
baitasar
Comecei
a ser tricotado antes do Sèzar nascer, antes da Áurea e do João se conhecerem.
A mãe do Sèzar é uma mulher determinada, não deixa nada para depois, uma
moçoila casadoura, flutuava com o seu sonho de ser mãe, antes mesmo de conhecer
os fluidos e o gozo masculino
— Quero ter um filho, mamãe.
Para
lembrar-se que viera ao mundo para ser mãe de um menino, escolheu o nome do
filho antes de conhecer o nome do pai do filho
— O meu filho vai se chamar Sèzar.
E
começou um cachecol para o filho que não tinha previsão para nascer. Todo dia
uma carreira, no início tentou usar o mesmo ponto de tricô
—
Minha filha, um dia nunca é igual ao outro.
Tomou
como conselho o que sua mãe lhe disse e deixou de se preocupar em repetir os
pontos da carreira anterior. Cada dia uma carreira com pontos de tricô que não
repetia e inventava. Cada dia uma carreira, um dia de cada vez.
Quando
o menino já tinha força e habilidade com as agulhas do tricô, começou ensinando
o filho o ponto do tricô. O cachecol era dele, justo que manuseie no seu gosto.
Pela
frente, por trás, pela frente, por trás, até terminar a carreira. No dia
seguinte, troca de mão as agulhas e retorna com a mesma paciência, pela frente
por trás, com a mesma disposição, pela frente por trás. Normalmente, se é que
existe uma normalidade normal, tem mantido o meu tricô crescendo. Sou o
cachecol do Sèzar.
São
cinco horas da manhã. Não dormiu, quis e não conseguiu, desistiu do sono que não
queria, não iria insistir. Mais um dia de provas na escola e não sabia as
fórmulas. Levantou e foi à cozinha, tinha o vazio do corpo adormecido pelo
descaso do sono. O aroma daquele cafezinho fez minha memória viajar no tempo do
Sèzar, na mesma cozinha, coando o café em coador de pano, a água quente
fumegando na chaleira e, ao longe, vó Jueci cantarolando
— Haiti, Haiti, Haiti, está fazendo na
cozinha, está cheirando aqui. — foi por essa época que os cheiros começaram a
fincar raízes em minha memória.
Perdeu
o sono porque não lembrava nenhuma fórmula matemática. A professora mandava
revisar todos os exercícios. Sèzar espichava o olho e copiava da menina do lado.
Depois chamava a professora. Tudo estava certinho. Ela abria um sorriso
enfeitado
— Muito bem, Sèzar!
Uma
justa recompensa depois do seu esforço em não ser notado copiando as tarefas da
menina sentada ao lado. Não copiava por mal, apenas gostava mais do perfume da
professora quando ela estava satisfeita. A colega não tinha importância como menina,
a professora não tinha importância como mulher, mas ele não queria decepcionar
nenhuma delas. Copiava de uma e mentia à outra. Falsificava-se para as duas, mas
não enganava a si mesmo, não gostava da matemática.
Tricotava
o cachecol que está por terminar um dia. Não tenho pressa e sinto que ele não tem
ligeireza. Uma carreira por dia.
O
aromado café me devolve à cozinha. Está pronto. Serve na xícara, uma colherinha
de açúcar, mexe e toma um pequeno gole, delicioso. Pega uma broa de milho com
uma gota de goiabada, deliciosa. Outro gole de café e os dois sabores se
misturam, deliciosos. Pega o tricô e faz mais carreira, pela frente por trás,
pela frente por trás. Toma o último gole. Volta à cozinha e serve do mesmo
café, está delicioso. Guarda o tricô.
Fico
guardado dentro da sacola das lãs e agulhas. Vou sendo tricotado e vigiado, uma
carreira por dia. Quando Sèzar quer lembrar das lembranças de si mesmo, olha
para minha obra inacabada. Examina as variedades dos pontos em cruz, gaitinha,
o colorido das lãs, sou os apontamentos da sua vida. Definitivamente, não sou um cachecol
como outros cachecóis. Sou o seu cachecol, o cachecol da sua vida.
Antes
de Sèzar aprender a tricotar sem parar, até cansar, jogava bola com os outros
garotos, não tinha as artes e artimanhas virtuosas de dominar um jogo de bola
com os pés, nem tamanho e cara de zagueiro, mas tinha asma, tão importante como
fazer golos ou evitar os golos dos garotos do outro time era respirar. Era escalado
para impedir os garotos do outro time. O problema era a asma, flutuava acima
dos campos de terra e capim ralo. O chiado não queria ser um jogador de bola
com os pés, queria respirar e ver a professora feliz.
Foi
quando a menina do lado amparou e iluminou o seu sorriso, ele que não sorria
para ninguém. Copiava da menina do lado. Não era trapaça do seu jeito de ver,
estudava duas vezes; primeiro sozinho e sem entender nada, depois quando
copiava as respostas da sua quieta companhia e entendia tudo, era tão simples.
Tudo é simples, complicado era pedir ajuda.
Durante
o recreio na escola, aquele entretempo que permite às crianças serem crianças,
os garotos iam para sua metade do pátio, jogar futebol, com alguma coisa que
chamavam de bola, mas que nem sempre era redonda, fofa e macia. Pano, papelão,
meia ou tampinhas, qualquer coisa que pudesse ser usada para levar uns chutes.
Por isso, todos do time usavam tênis kichute preto com meias pretas, prontos
para qualquer aventura.
As
gurias ficavam na outra metade, pulando corda, amarelinha, brincando de roda.
Num
daqueles dias nublados e mornos de outono, Sèzar não quis jogar, seu kichute
sujou de barro. Seu tênis ficou em casa secando. Foi à escola com o sapato dos
passeios na casa da avó Jueci. Não conheci nenhum garoto que conseguisse evitar
uma poça d’água, sem passar por dentro, espalhando lama sem conta, por tudo.
Enfiou
os pés nos sapatos de passear e saiu para o colégio, muito bem recomendado: evitar
poças d’água e bolas de qualquer espécie ou não iria visitar a avó. Ele queria mostrar-se
à avó.
No
recreio, ficou perambulando na outra metade do pátio, entre as meninas pulando
e brincando. Outros meninos brincavam junto. Ficou surpreso, achava que todos
os garotos jogavam bola ou ficavam na volta do campo gritando palavradas,
torcendo contra ou por eles. O recreio não era apenas jogar bola.
Lá
estava ela, Sueli, sentada num dos bancos à sombra do cinamomo, com suas
bolinhas verdes e amarelas. Uma árvore com as cores da nossa bandeira, as cores
branco e azul dos nossos uniformes descansavam na sua sombra, sossegavam na grama.
Ela
estava tricotando. Os sapatos do Sèzar visitar sua avó tinham vontade própria, o
levaram até aquela sombra e pararam — Enfrente a garota tricoteira — um
zunzunzum que tentava empurrá-lo, continuava mudo, até que ela veio em seu
socorro
— Quer aprender? — não lhe disse mais
nada, nem resmungou qualquer coisa, a presença do menino não era inconveniente,
parecia querer dizer que estava disposta a lhe ensinar a tricotar, também.
Tinha um sorriso nos lábios que vinha do coração. Convidava Sèzar para copiar o
seu jeito de tricotar.
São
tolos desde pequenos, não importa o kichute ou o sapato que usam.
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