sábado, 23 de junho de 2012

Pega essa vela, negão

Becos sem saída - Núpcias
I
baitsar
Um mau presságio para o casório da Maria Cariciosa, os ventos espalhavam o que a boca das fofocas cochicha: a macaca daquele afogamento até os joelhos vai trazer desgraça
—        Acidentes acontecem... — dizia a mãe, depois do tempo passado. Repetia sempre a mesma coisa, as lembranças encharcadas daquela noite se vinham em bocas desavisadas. A leoa devorava com os olhos as carcaças cuvilheiras metidas na besta. Cuidava de desandar o mau agouro, nem queria qualquer insinuação ao casamento da filha feito com a autoridade do mar depois do arredondamento da barriga
—        Antes tarde do que mais tarde.
E não consentia alusão de desprestigiamento ao seu consórcio com Ogum, na mesma cerimônia de casada. Desde a noite do banho no lago dos pedalinhos chama Ogum de marido e ele a pede como sua esposa. Estavam abençoados pela água. Casados até que a morte os separe. Não reparou nenhum resfriamento nos pedidos do negrão. Ela tem se resguardado, acredita que coisa oferecida demais perde o valor e a perseguição fica enjoadiça. Um pouquinho de fome dá mais sabor ao tempero.
Aquele banho-de-igreja da Maria Cariciosa e do Manualdo, firmado pelo Capitão-boca-mole, não teve mais formalidades que a presença das testemunhas da família e dos vagamundos que se banhavam com sabão no lago. Tudo jurado antes do afundamento dos joelhos na água de chafariz. E todos fugindo do guarda noturno. Indivíduo dos mais pequenos e com nariz dos mais grandes. Seus cuidados de vigilância não se atentam aos que se chegam à vila Boa Esperança, mas seus olhos perseguem em atenção os que saem da vila. São olhares de cálculos em importância e perigo. Um dos seus serviços é caminhar por dentro da aldeia de tábuas pobres e telhado de zinco. Andar nos becos. Vez que outra, põe a correr alguma alma penada perambulando pelo pardieiro
—        Obrigado, seu guarda. — quando recebe algum agradecimento dos vileiros faz questão de dizer que está em ofício preventivo e a serviço dos endinheirados
—        Emprego preservativo. — avalia os perigos que podem sair dos becos para as ruas depois da praça. Sua missão é impedir que as ameaças vindas da Boa Esperança chegassem pra lá, nas casas com carros na garagem dos Jardins Suspensos do Lago. Nesta guerra é o cabeça-de-praia. Presume os riscos que correm aquelas gentes das casas grandes e garante embarque e desembarque dos endinheirados. Olhar atento e faro apurado lhe deixa medir pela ponta do nariz a circunstância gravosa. Conhece pelo cheiro.
O guarda da noite puxava dedo de prosa com Maria Memória e saia em ataque
—        A dureza na vila são os marginais. — repetia sempre a mesma condenação. Queria lhe convencer da sua verdade. Maria Memória devolvia sem muito incomodo a presunção do porta-voz dos cremosos
—        Homem pequeno... muitas mentiras inventam uma verdade. — o acanhado de tamanho e atrevido de conversa respondia
—        A vila exige demais da gente do bem.
Naquela noite de núpcias e afogamentos dos joelhos, foi ele que estendeu o cassetete que a Maria Memória agarrou com unhas dentes, enquanto com a outra mão mirava o nariz do baixinho. E ficou assim, pendurada pelo nariz e pelo porrete até desatolar do lago. Depois do ocorrido superado, Maria Memória planeja uma pequena casinha para sua filha casada e com barriga de ninhada
—        Até marimbondo tem casa. — por esses tempos de arrumação das manias, duas pecinhas de acomodamento já seriam suficientes. Afinal, a jovem parelha de noivos só tem carência da pecinha do acasalamento, necessidades de vergonha já conhecidas um do outro, e a cozinha para matar as obrigações de comilância. O apego das conversas podia acontecer na casa da frente. As necessidades do aparelho sanitário seriam acudidas pela casa de banho do casarão. Lugar dos maiores investimentos em acomodação.
Ladrilhos vidrados com desenhos em relevo variados cobrem as paredes. A desigualdade da cor das esmeraldas proporciona um brilho intenso e cambiante. Mostra o trabalho de todos em ajuntar os restos das obras construtoras dos arredores da vila. O vaso curativo, na tonalidade rosa desmerecida e reflexos amarelados, lembra flores enfraquecidas pelo descaso. Murchas na falta de água. A pia auriverde dá ao piso cinza chumbo um aspecto nacionalista. Enquanto a baia do banho se mantém separada por uma cortina plástica, com reflexos azulados na cor verde-água. A família tem o maior orgulho de emprestar suas acomodações aos visitantes. Nenhuma visita se vai sem fazer algum descarrego pelo quarto do banho. Lugar de orgulho e júbilo. Uso de todos. A alma da casa e o cartão das visitas.
A Maria Memória é fábrica pontual da comida em família, tem ambição de transmitir à filha suas heranças culinárias. Marido bom fica se o estômago está bem tratado. Mas tem tempo, espera pelas necessidades e vontades da guria, decide que vai comer o mingau pelas beiradas, a sua menina precisa de jeito no convecimento
—        Minha filha, precisa ir acostumando no preparo da comida.
—        Mamã, eu quero trabalhar, não quero serviço de casa.
—        Bobagem, é obrigação e orgulho ser dona da casa. — o mundo dessas humanada só faz volta para trás com a mulherada, a guria que fosse acalmando a birra, esposa boa é aquela que fica no domingo assistindo televisão sozinha
—        Menina, eles gostam de jogar bolicho e beber umas cervejinhas. — a mais velha dá de ombros, as coisas se alteram, mas tudo haveria de se ajeitar. Ela sabe que aos poucos é que as tetas se enchem e que muito mais rápido podem esvaziar. Precisa de cuidado e não secar pelo bico o leite da criança, ficar a teta sem precisão de uso. Essa atenção de cautela é a mesma que leva a panela no fogão. Filho que chora a fome precisa ser curado. A comida, isso é que importa. Cara de fome não é a mesma cara da barriga cheia
—        Tudo na sua hora de nascer e de finar-se.
Passa a mão sobre a sua barriga redonda e pensa que não tem motivo de susto. Nada lhe vinha com novidade. Adivinha o tempo chegando, sabe que vai fazer uso da comadre Socorro. Com ela sempre foi assim, na hora dos apertos, gritava pela Socorro. A sua garotinha veio nas mãos da Socorro, negra das mais competentes no serviço de dar à luz aos curumins
—        Não cansam de dizer que a Socorro tem mãos de santa. — fala arrependida do assunto, aparta para longe os pensamentos de nascimento, sua menina não precisa ter preocupação de nascimento tão antes, será tudo na sua hora. Por agora, as urgências são outras. Não têm onde ter casa. Na pressa do casório, o preparativo do acasalamento se resumiu em acomodar os curumins guris no quarto, o jovem casal no sofá da sala. O Lamparina na cozinha, esticado no chão. Por sorte, o soldado Supimpa foi para o quartel, outro chamado de prontidão. Esses milicos vivem de alvoroço e quebradeira. Lá se foi o guri.
Sexta-feira com a lua redonda em brancura, até no galinheiro a farra estava grande. Todos carregados de entusiasmo e perturbação. Os olhos do Ogum assanhados. Tinha molhado o bico na cachaça. Coisa pouca, mas por precaução Memória deu aos guris chá de camomila, aquietados no chão ao lado do sofá-cama
—        Tomem tudo.  — dormiram um com a cabeça junto aos pés do outro. Espera sua vez de reviver algum amoquecar adoidado.
Está preocupada com as próprias memórias de bagunça. Lembra e não lembra as primeiras intimidades de casal casado com o Virgílio, depois o ajuntamento de necessidade com o Ogum. Cada um com benefício e desbotamento. Nada nunca é perfeito, nem para sempre. A única coisa que conta é o amor sem regras de certo e errado, esse louco quando chega provoca refregas de cegueira e ardência nas carnes... até que o acomodamento sossega as urgências.Um facho de labareda levou um desconforto calorento perna acima da Memória. Desconfia que o Ogum também se animou mais que o normal. Pareceu ver aquela cabeça de quepe lavando as mãos com todo o cuidado de uso embaixo das unhas. Um sorriso de tarado nos lábios carnudos. Fez cortadura e lixamento dos aferramentos das mãos, um ferramental com dedos de empilhadeira, fortes e longos. A saliência já é visível. O entusiasmo foi avivando na Memória muitas estações de quentura e derramamento.
Maria lembra precisão de cortadura das unhas dos pés imensos. Tudo é imenso nesse homem. Parecem pés de caranguejo. Respira profundamente. Descansa mais seguidamente entre uma tarefa e outra. A concentração no respiro se torna mais necessária. Está em pé com as mãos na cintura, percorre o dormitório iluminado pela chama da vela de cera. Todos no beco estão nas escuras.
Na certeza, ficam alguns dias sem acender as lâmpadas e esquentar o banho. Economia de energia de luz, mais gasto com lenha. E a descolorida apagada. Todos já fizeram uso da água esquentada na lenha. Falta Ogum. Mais lenha vai queimar. O preço do toco de madeira está subindo. É assim mesmo, quando muitos querem a mesma coisa, pagam mais a frente do valor. Mais árvore de eucalipto vai ser desenraizada.
Memória olha para os cinco e já dormem no sono solto das alucinações e fingimentos. Na iluminura da vela a soneira se vem mais forte. E os mosquitos também
—        Pragas do demônio... — aproxima a vela dos meninos e já estão sendo picados. Passa a esmagar com tapas. Tem as mãos vermelhas do sangue dos filhos. Passa a mão embaixo da cama e retira a bomba de flit. Com rápidas bombadas do detefon vai derrotando os pequenos vampiros. Outra inspeção. Desta vez, os fincudos se foram. Depois de acabar com a chupança nos guris, Maria Memória se aproximou do boné de ferroviário
—        Negão, vai dormir de boné?
—        Esqueci, minha preta, esqueci... guarda pra mim.
—        E o banho? — resmunga que já tomou
—        Vai lavar só a mão?
—        Tá frio.
—        Vai vai, vai logo, não esquece de cortar as unhas do pé.
—        Não tem precisão... — a olhada da Maria Memória o atira com força pela penumbra incompleta do quarto, derrama sua preguiça como o leite fervido ao descuido
—        Merda, o boi é que sofre, mas o carro é que geme. — engole a moleza em seco. Está em pé, na cata os chinelos
—        Pega essa vela, negão.

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