sexta-feira, 22 de junho de 2012

Eu quero aprender


Cachecol 
II
baitasar
Sèzar está me testando com o ponto gaitinha, dois pela frente, dois por trás. E parece que vai mudar a lã, mais colorida, mais crespa. Já está conseguindo tricotar e olhar para fora do meu tricô. Isso é bom, as mãos e os olhos juntos, procurando outros caminhos. Nem sempre foi assim, nem sempre é bom que seja assim.
Sem nenhuma dúvida respondeu que não queria aprender a tricotar, não queria dizer que já sabia, tricotava uma carreira por dia
—        Isso é coisa de menina...
—        Tricotar não é coisa de menina, jogar bola não é coisa de menino. — respondeu-lhe olhando direto nos olhos. E como eram lindas aquelas duas agulhas de tricô enfiadas entre minhas linhas
—        Nunca vi guri sentado tricotando, nem guria jogando bola. — a menina e a quieta companhia do seu tricô não pareciam interessadas em seus argumentos naturalistas, é natural o menino jogar bola e brincar de atiradeira, é maternal a menina tricotar e brincar de boneca, sempre foi assim; ela empurrou os ombros para cima e os deixou cair, resignada.
Sêzar não dormiu, vigiava os dedos que lhe roubavam o sono dos olhos, queriam tricotar mais carreiras por dia, não queriam esconderijos. Escutava as vozes que expulsavam o silêncio dos ouvidos, esbugalhavam seus olhos e descosturavam sua boca, para oferecer à escuridão o mais pavoroso dos gritos. O grito do silêncio completo. Calado. A colega que o deixava copiar ganhou importância de menina. Mas não tem como desatar a sombra de si mesmo, assustado com a tosse, o chiado, o aperto no peito, a charada para respirar e o convite para tricotar. Queria fugir, mas não tinha nenhum plano. Escapar por escapar.
Sêzar dava-se aos fantasmas. Mudo. Debatia-se de um lado ao outro e o suor do seu corpo banhava o catre de todos os seus medos. A puxação do ar o deixava exausto. Os seus sonhos não caminhavam despreocupados, tinham os braços retesados, balançavam firmes ao lado do corpo. Músculos frágeis para serem exibidos.
Sêzar não tem medo de morrer. Outras vezes tem. A velha senhora sentou tantas vezes em seu leito, esgotada, uma moribunda cansada e aborrecida dos próprios horrores, a mão na testa do guri: o ar entra e a barriga enche, o ar sai e a barriga desce.
Sou as suas memórias do vivido. Ele não se oferecia à vida, não vivia além de ficar escondido chutando bolas. Aquele jogo frágil era o esconderijo, lá dentro ele podia mais do que fazia. O seu mundo de fantasias.
No quarto há uma cama, sobre a cama um homem e sobre o homem um menino com medo. Assustado com os ventos e a vizinhança das almas de um outro mundo, também impossível. Parece que nada lhe será possível. Encolhido na escuridão respira boca abaixo. Com o peito inchado como uma pomba procura o ar que não pode ver, mas que está na sua volta. Sente os respingos que chegam aos pulmões doloridos. Reza pelo milagre de respirar por todas as frestas do seu cadáver de menino.
O menino engolido pela aragem gasosa, comprimido ao ar livre, não tinha aparência nem voz e não dormia. Acreditava que dormindo a brisa lhe passava despercebida e o amanhã lhe viria sem atropelos. Preferia não ver o tempo se arrastando, resignado na vigilância agitada, recostado à cabeceira com cinco travesseiros enquanto anos, dias e horas rolavam de um lado para outro, boca abaixo, aos trancos e barrancos. O puxamento do ar. A permanência da dor não muda apenas o humor, derrete a sua personalidade. Uma carreira por dia, um dia a cada vez.
Naquela cama tinha um menino e sobre o menino corria um rio teimoso que dormia em movimento. Suas águas escuras repousavam represadas, até que a estrela-d’alva anunciava a nova oportunidade às margens da via láctea leitosa. E para Sêzar um novo dia nascia velho e invisível. Quieto num canto, cheio de travessuras. E só quando as águas do rio transbordavam da represa corriam por riachos e rios até o mar, cumpriam o destino de se transportarem aos oceanos. Da guimba para o maior que retornava ao menor, como chuvas nas suas nascentes. Tinha lágrimas para nascer como um nascente.
Naquela cama tem um homem que conhece cada uma das estrelas do rio lácteo. E sobre aquele rio tem um barco que não dorme. Não quer que o tempo lhe passe despercebido, por isso navega rio abaixo e acima. Tem medo dos lugares com passagem e entrada por terra, não gosta das cavernas.
Naquela cama vazia tinha um menino que ainda não sabe se acordou, mas vai de um lugar para outro, enquanto a escola o espera. A menina do tricô era uma esperança. Os medos seriam guardados em pequenas caixinhas. Precisava manter o controle. Repetia, repetia e repetia, olhando para o pequeno espelho
—        Este ano me promete.
Mas as promessas do ano não passam de desejos que se copiam, enquanto nada de novo acontece. As espinhas, as pernas finas e a brancura da pele que o torturam não são de verdade. Nem os travesseiros são de verdade, apenas a menina é de verdade. Tudo apontava para um grande fracasso, mas até o fracasso seria melhor que a transparência da indiferença de toda e qualquer coisa que o cortejo mortuário de olhares com silêncios. Sêzar ouve os pensamentos ou pelo menos acha que ouve
—        Coitado...
—        Deus me livre ficar com um aleijado assim!
Analisa com atenção e minúcia as leis da natureza em seu corpo. Examina a testa, as bochechas magras, o pescoço, os ombros. Jamais se vê sorrindo de verdade. Os risos do menino são inventados. Treinados à exaustão. Tudo falso, até mesmo o ar que engole boca abaixo, uma carreira por dia, um sorriso por dia, tudo contadinho
—        Quero ser outra pessoa?
Ele quer!
Coloca o creme na escova e massageia os dentes bem do jeitinho que mamãe ensinou: com os dentes de cima move a escova para baixo e com os de baixo move para cima. Várias vezes para cada um deles
—        Sêzar, meu filho, tenha paciência, os dentes são para sempre. Algum dia, você ainda vai me agradecer.
—        Obrigado, mamãe. — ele agradece, desde já.
Sêzar está ansioso, por isso chegou tão cedo. Quase não conseguiu engolir o café. Queria abreviar o tempo e a distância do caminho, engolir as pedras das ruas com seus passos acelerados e olhos espetados. Ansiava iniciar com as boas-vindas à garota do tricô. Dispensaria a carona da mamãe, já era um homem
—        Mãe, sem essa. Não precisa me levar.
—        Mas, meu filho...
—        Mãe, eu não quero.
Chegou de carro com a abertura do portão do colégio. A mãe motorista levou um tempo até acreditar que nem tudo que chiava era asma. Ela montou para Sêzar um plano de atitudes com a escola. Uma crise é uma crise, todos precisavam estar preparados: confiar na medicação, seguir a orientação médica e chamar dona Áurea. Sempre em estado de alerta. Sempre no nível quatro, mas pronta para subir ao nível cinco.
Ele foi o primeiro a chegar.
Passou pelo portão de ferro e borboletas o seguiram. Finalmente, conseguiu sorrir. Um sorriso pequeno, uma gargalhada descontrolada para Sêzar. Foi para sua aresta ao lado do santuário da Imaculada Senhora. Dali observava reservadamente o ir e vir naquela praça de cimento e ferro. Tinham um acordo, pelo menos esse era o entendimento de Sêzar, eles o deixavam bisbilhotar e fingiam que ele não existia. Não tinha prestígio de influência. Era um nada e só lhe prescreviam pensamentos de cuidados e prejuízo
—        Hoje, não vou jogar bola.
Ninguém o convida para jogar. Sonhava em ser um zagueiro destruidor, daqueles que 'passa a bola, mas o jogador fica'. Nunca jogou.
Olha as paredes, as árvores, os bancos de cimento, os caminhos de pedra e o jardim das freiras. O tempo invade de ansiedade. Logo atrás, vem o burburinho. Formigas cortadeiras, jardineiras, trabalhadoras, guardas, vigilantes, saúvas, medíocres. Vejo baratas. Os espaços se preenchem desordenados. Como diria o coordenador do pátio e dos corredores, tudo preenchido com indisciplina. É o jeito revolucionário da ternura. O disciplinador quer tudo certinho para manter o controle. Os jovens não querem ser controlados, querem transformar o mundo com a ternura e a rebeldia. Virar de cabeça para baixo, fazer de um jeito diferente dos pais. Mas como os pais, eles são os seus pais.
Chegavam caminhando e ficavam esparramados pelo pátio.
As vozes se elevam de todos os cantos e santos
—        E aí, parceiro...
—        Vamos esmagar os vermes!
As tribos se formam de antigas amizades. Os alunos com seus abrigos marinho ou azul e camiseta branca. As gurias com saia marinha ou azul e blusa branca. Nos dias de frio, usam blusão vermelho. Um dos disciplinadores fica no portão, confere o uniforme e os recados dos pais. Chegam pelo portão até o pátio interno, acomodados em prateleiras... esperam um bom prato e digestão fácil.
Sèzar se aproxima da menina do tricô
—        Eu quero aprender... — sorri o riso do coração.

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