terça-feira, 11 de setembro de 2012

A foguista está entediada?

Ensaio


baitasar
Conheci mulheres que chuparam cadáveres e juram que foi por amor; conheci homens que esfolaram os nós dos dedos e juram que foi amor em defesa da honra: estranho esse amor, esse estranho feitiço de gozar. Os violentos entraram e saíram da minha casa do mesmo jeito: com recomendação para não mais voltarem. Tratava dos nós machucados com detergente e querosene.
Somos mulheres de negócio, e o nosso negócio é o amor com banhos, os amantes procuram abrigo das ruas, quase sempre são boa gente, nada querem dizer, apenas se redimem da sua força sendo fracos. É um desafio viver com o trabalho que precisamos realizar e ficar numa boa. Gosto de repetir às meninas que esse não é um trabalho de equipe, mas fico feliz por elas — Deus tem um plano para nós. É isso. Não podemos desperdiçar tudo.
Não somos um templo, são apenas negócios. Temos delírios, mas o discernimento do público e do privado nos faz preciosas. Sabemos o que devemos fazer o que se espera de nós, e o que não podemos, estamos em vigília. Não sei se é justo, mas sei que não adianta desafiar a loucura e continuar com alucinações exagerando a verdade - como se existisse alguma verdade. Não queremos provar nada, apenas repartir esse amor que tornamos disponível — Com licença, madame...
—        O que foi, Olalla?
—        Nada... quero descansar, o general já me chega daqui mais um pouco.
—        A foguista está entediada? — a menina me olha e não preciso ser do ramo trabalhista da adivinhação para saber do pensamento da rapariga. As outras meninas - lindas, dentro de suas calcinhas e rendas – parecem suspender a respiração. Tenho o poder para repartir e beneficiar com todas elas, não quero ser a pior inimiga de alguém. Eu procuro ver se há algum motivo por trás de tudo. A foguista quer ser uma lenda, será que ela cumpre seu destino e se torna uma lenda?
—        A foguista pensa em quê?
—        Que tudo esteja bem... essa é minha recompensa.
—        E não está?
—        Tenho dores nas costas...
—        A mocinha é forte, vai passar, tenha fé: carinho, beijinho e abracinho ajuda aliviar.
—        Nunca vou me tornar heroína nacional, nada do que eu fizer será suficiente...
—        A menina não ia se retirar e ficar em vigília de espera do general?
—        Fico de campana no quarto... — lembro que elas não são donas dos lugares, nem são obrigadas estar onde não querem, meninas... os homens passam, só está sobrando quem acredita que está sobrando, não vivam para se testarem, é uma vida diferente
—        Não quero viver com pressa, a massageadora das minhas pernas disse que estou muito bem.
—        É isso, Olalla, alguém tem que ocupar o quarto: vocês ou outras meninas. — elas concordavam com tudo, mas não com todas. Ciúmes. Assim, deixavam de ganhar mais porque entendiam do jogo em que se metiam: conquistar bolsos com suas frestas de carinho e atenção — O que vocês esperam de mim? — estou na posição de mulher e dona de uma casa importante e suspeita
—        Estou com tanta energia, estou feliz, é o que os rapazes esperam de mim, mas como me manter assim?
—        Meninas, fazemos parte de um bordado cuidadoso, confeccionado pelo que aprendemos na hora certa.
—        Preta, não somos incompetentes!
—        Eu sei, eu sei, mas, às vezes, duvidam das suas qualidades, ficam inseguras para golpear. Se querem algo, têm que pegar.
—        Mas os comentários feios...
—        Todos têm motivos, ninguém é sem paixão, e a cama é o nosso grande palco. — cada uma ainda aprenderá que o prazer é o nosso negócio. A casa não existe para combater o mau, a injustiça, promovemos o prazer, com competência e paciência. Somos o que somos: fantásticas mais uma vez, a cada vez. Precisamos reagir bem, precisamos nos esforçar mais, concentrar rapidamente, tensas, mas sob controle, autoconfiança — Ela fez de novo, ela é incrível, ela é uma lenda!
A florista para no alto da escada em silêncio, nua, espetacular, sinto a vontade de ficar olhando até cansar, os pelos em pé, os olhos assustados — O que se passa Chaloa? — ali, na intimidade da penumbra dos candelabros, esperamos uma pela outra, que ela rompesse aquela mudez desconcertante
—        O caixeiro-viajante se foi... morreu. — subi as escadas frágeis, tinha cautela, a morte nunca havia penetrado na casa, precisava ficar serena
—        O que aconteceu?
—        Estava duro como as pedras da praia, aguentava as minhas ondas que lhe golpeavam como jamais... se foi sem nenhum suspiro de adeus.
Hoje, durante a desatenção depois das comidas do almoço - não imaginem que fechamos ao meio-dia, cada uma se vira, depende da fome e da movimentação na casa, tem vez que a fome vem e vai sem tempo de salgar a carne – me libertei do casarão e do beco Lampadário Putativo, estava livre para viver uma outra vida, mais honrada, sem obrigações de tutora das meninas, o meu descanso das preocupações. Até que um desconforto malfeito mostrava minha tristeza: sofria a perda das risadas e conversas das meninas, doía minha privação com a penumbra avermelhada do candelabro e os rolos da fumaça dos charutos, agonizava perder o desperdício dos sussurros, dos olhares, o entra e sai dos senhores, as mãos nervosas olhando, escolhendo, os perfumes
—        O que aconteceu Chaloa? — uma morte, um nascimento, são acontecimentos terminantes, perdas e ganhos, as pessoas mudam, as coisas parecem sair do lugar, é preciso adormecer e acordar, depois seguir em frente. Tem dia que a gente antes de acordar já sabe que vai ser muito intenso
—        O sapeca pediu o que sempre pede. — depois da foguista, a florista é a menina que não me mostra despreparo para o trabalho, sabe que a flecha que chega no alvo precisa de um arco firme e retesado, mãos fortes e decididas, olhos e concentração, a respiração suave, e eu fiz, fiquei muito feliz
—        Estou pronto, e a mocinha florista?
—        Não esqueça, meu senhor: controlar antes que a notícia chegue ao cérebro — e fiz o que tinha que ser feito, ele se foi sem um aviso de indisposição, está lá, deitado com os olhos arregalados, sorrindo - como se morto tivesse o direito de sorrir - e duro, o defunto continua de prontidão, espetado como em vida, ansioso por massagem, suplicante
—        Vamos lá olhar a sua vítima... — me arrependi do dito, mas o que foi dito não tem mais como recolher no esconderijo do pensamento, revestir de refinado e escoltar como uma contraprova intelectual.
As meninas fizeram jeito de acompanhamento fúnebre. Lembrei que o serviço precisava ser servido - a vida continua, menos para o morto - não é um trabalho de equipe
—        Vocês continuem com as honras da casa enquanto examino a situação do morto. — a foguista subiu as escadas, cobriu a nudez da florista com seus braços. As três, o morto e um segredo
—        Como você sabe que o morto morreu? — as perguntas da foguista são improváveis, causam desagrado, mas precisam de resposta
—        O coração está parado e o coitado não respira.
—        E tem cara de defunto... mas e aquilo... — aponta para o dardo do caixeiro das viagens, arroxeado e indelicadamente duro
—        Foi o que restou com vida. — a voz da menina florista saia sumida, quase escondida
—        Bobagem, Chaloa... isso assim não é alguma forma de vida própria.
—        Meninas, não se pode entregar o morto nesse estado de rigidez à família.
—        O que se faz?
—        A florista termina o serviço!
—        Por amor... — tudo isso sem chorar.
Depois pedimos os serviços do general, e perguntamos se tem algum jeito da situação se resolver...


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