Ensaio
baitasar
Conheci mulheres que chuparam cadáveres e juram que
foi por amor; conheci homens que esfolaram os nós dos dedos e juram que foi
amor em defesa da honra: estranho esse amor, esse estranho feitiço de gozar. Os
violentos entraram e saíram da minha casa do mesmo jeito: com recomendação para
não mais voltarem. Tratava dos nós machucados com detergente e querosene.
Somos mulheres de negócio, e o nosso negócio é o
amor com banhos, os amantes procuram abrigo das ruas, quase sempre são boa
gente, nada querem dizer, apenas se redimem da sua força sendo fracos. É um desafio
viver com o trabalho que precisamos realizar e ficar numa boa. Gosto de repetir
às meninas que esse não é um trabalho de equipe, mas fico feliz por elas — Deus
tem um plano para nós. É isso. Não podemos desperdiçar tudo.
Não somos um templo, são apenas negócios. Temos
delírios, mas o discernimento do público e do privado nos faz preciosas.
Sabemos o que devemos fazer o que se espera de nós, e o que não podemos,
estamos em vigília. Não sei se é justo, mas sei que não adianta desafiar a
loucura e continuar com alucinações exagerando a verdade - como se existisse
alguma verdade. Não queremos provar nada, apenas repartir esse amor que
tornamos disponível — Com licença, madame...
— O que
foi, Olalla?
— Nada...
quero descansar, o general já me chega daqui mais um pouco.
— A
foguista está entediada? — a menina me olha e não preciso ser do ramo
trabalhista da adivinhação para saber do pensamento da rapariga. As outras
meninas - lindas, dentro de suas calcinhas e rendas – parecem suspender a
respiração. Tenho o poder para repartir e beneficiar com todas elas, não quero
ser a pior inimiga de alguém. Eu procuro ver se há algum motivo por trás de
tudo. A foguista quer ser uma lenda, será que ela cumpre seu destino e se torna
uma lenda?
— A
foguista pensa em quê?
— Que
tudo esteja bem... essa é minha recompensa.
— E não
está?
— Tenho
dores nas costas...
— A
mocinha é forte, vai passar, tenha fé: carinho, beijinho e abracinho ajuda
aliviar.
— Nunca
vou me tornar heroína nacional, nada do que eu fizer será suficiente...
— A
menina não ia se retirar e ficar em vigília de espera do general?
— Fico
de campana no quarto... — lembro que elas não são donas dos lugares, nem são
obrigadas estar onde não querem, meninas... os homens passam, só está sobrando
quem acredita que está sobrando, não vivam para se testarem, é uma vida
diferente
— Não quero
viver com pressa, a massageadora das minhas pernas disse que estou muito bem.
— É
isso, Olalla, alguém tem que ocupar o quarto: vocês ou outras meninas. — elas
concordavam com tudo, mas não com todas. Ciúmes. Assim, deixavam de ganhar mais
porque entendiam do jogo em que se metiam: conquistar bolsos com suas frestas
de carinho e atenção — O que vocês esperam de mim? — estou na posição de mulher
e dona de uma casa importante e suspeita
— Estou
com tanta energia, estou feliz, é o que os rapazes esperam de mim, mas como me
manter assim?
— Meninas,
fazemos parte de um bordado cuidadoso, confeccionado pelo que aprendemos na hora
certa.
— Preta,
não somos incompetentes!
— Eu
sei, eu sei, mas, às vezes, duvidam das suas qualidades, ficam inseguras para
golpear. Se querem algo, têm que pegar.
— Mas os
comentários feios...
— Todos
têm motivos, ninguém é sem paixão, e a cama é o nosso grande palco. — cada uma ainda
aprenderá que o prazer é o nosso negócio. A casa não existe para combater o
mau, a injustiça, promovemos o prazer, com competência e paciência. Somos o que
somos: fantásticas mais uma vez, a cada vez. Precisamos reagir bem, precisamos nos
esforçar mais, concentrar rapidamente, tensas, mas sob controle, autoconfiança
— Ela fez de novo, ela é incrível, ela é uma lenda!
A florista para no alto da escada em silêncio, nua,
espetacular, sinto a vontade de ficar olhando até cansar, os pelos em pé, os
olhos assustados — O que se passa Chaloa? — ali, na intimidade da penumbra dos candelabros,
esperamos uma pela outra, que ela rompesse aquela mudez desconcertante
— O
caixeiro-viajante se foi... morreu. — subi as escadas frágeis, tinha cautela, a
morte nunca havia penetrado na casa, precisava ficar serena
— O que
aconteceu?
— Estava
duro como as pedras da praia, aguentava as minhas ondas que lhe golpeavam como
jamais... se foi sem nenhum suspiro de adeus.
Hoje, durante a desatenção depois das comidas do
almoço - não imaginem que fechamos ao meio-dia, cada uma se vira, depende da
fome e da movimentação na casa, tem vez que a fome vem e vai sem tempo de
salgar a carne – me libertei do casarão e do beco Lampadário Putativo, estava
livre para viver uma outra vida, mais honrada, sem obrigações de tutora das meninas,
o meu descanso das preocupações. Até que um desconforto malfeito mostrava minha
tristeza: sofria a perda das risadas e conversas das meninas, doía minha
privação com a penumbra avermelhada do candelabro e os rolos da fumaça dos
charutos, agonizava perder o desperdício dos sussurros, dos olhares, o entra e
sai dos senhores, as mãos nervosas olhando, escolhendo, os perfumes
— O que
aconteceu Chaloa? — uma morte, um nascimento, são acontecimentos terminantes,
perdas e ganhos, as pessoas mudam, as coisas parecem sair do lugar, é preciso
adormecer e acordar, depois seguir em frente. Tem dia que a gente antes de
acordar já sabe que vai ser muito intenso
— O
sapeca pediu o que sempre pede. — depois da foguista, a florista é a menina que
não me mostra despreparo para o trabalho, sabe que a flecha que chega no alvo
precisa de um arco firme e retesado, mãos fortes e decididas, olhos e
concentração, a respiração suave, e eu fiz, fiquei muito feliz
— Estou
pronto, e a mocinha florista?
— Não
esqueça, meu senhor: controlar antes que a notícia chegue ao cérebro — e fiz o
que tinha que ser feito, ele se foi sem um aviso de indisposição, está lá,
deitado com os olhos arregalados, sorrindo - como se morto tivesse o direito de
sorrir - e duro, o defunto continua de prontidão, espetado como em vida,
ansioso por massagem, suplicante
— Vamos
lá olhar a sua vítima... — me arrependi do dito, mas o que foi dito não tem
mais como recolher no esconderijo do pensamento, revestir de refinado e
escoltar como uma contraprova intelectual.
As meninas fizeram jeito de acompanhamento fúnebre. Lembrei
que o serviço precisava ser servido - a vida continua, menos para o morto - não
é um trabalho de equipe
— Vocês
continuem com as honras da casa enquanto examino a situação do morto. — a
foguista subiu as escadas, cobriu a nudez da florista com seus braços. As três,
o morto e um segredo
— Como
você sabe que o morto morreu? — as perguntas da foguista são improváveis,
causam desagrado, mas precisam de resposta
— O
coração está parado e o coitado não respira.
— E tem
cara de defunto... mas e aquilo... — aponta para o dardo do caixeiro das viagens,
arroxeado e indelicadamente duro
— Foi o
que restou com vida. — a voz da menina florista saia sumida, quase escondida
— Bobagem,
Chaloa... isso assim não é alguma forma de vida própria.
— Meninas,
não se pode entregar o morto nesse estado de rigidez à família.
— O que
se faz?
— A
florista termina o serviço!
— Por
amor... — tudo isso sem chorar.
Depois pedimos os serviços do general, e perguntamos
se tem algum jeito da situação se resolver...
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