Becos sem saída - Hálito de Pólvora
I
baitasar
Falta um dia especial para anunciar a alegria
que foi sair da cegueira, escolher um ponto de partida para observar e
investigar. Tudo tem um dia para começar e para terminar — Nem sempre, nem
sempre... — num dia sem muita chuva, sem discursos, mas muitas orações de reza
com medo dos comunistas e alarme por ganância contra a reforma das terras sem
plantar: desceu uma sombra que reduziu o pensamento que discordava e afundou a
ilha Madalena. Foi a negação da vida que se multiplicava nas diferenças.
Os livros não aguentaram a pressão das
águas de março, das missas, do senso comum dos escravos vestidos de deuses - sem
comiseração, compaixão e egoístas - com o
martelar ritmado dos coturnos. Foi o aviso que ali ninguém estava para
brincadeiras. Não tinham comunistas naquela ilha mais que os dedos de uma das
mãos. Os depravados de lá continuam por aqui, mais safados do que nunca. Os
musgos pobres e feios só fizeram aumentar. Os mortos de fome morrem todos os
dias. As putas diminuíram as idades, tudo está começando mais cedo. A vida
ficou mais colorida com a televisão e o cinema mais escuro e distante. Os
livros precisam vender mais do que serem lidos. A escola escolhendo mártires
para justificar a falta de apetite para educar - sua missão é ensinar... o quê?
— Não diz assim, imagina esse mundo maluco sem escolas. — as fofocas foram
culpas que a ilha não pode suportar.
Um fortão de bigodes ralinhos grita
entre os homens da tropa — Os comunistas são fofoqueiros e comem as criancinhas
— Com licença, sargento...
— O
que foi estúpido!
— Acho
que não é bem assim...
— O
que não é bem assim?
— Não
são os comunistas, são os padres...
— Levem
esse e amarrem as mãos. — a algazarra se apodera das vozes e é descolorida de
algum sentido ou humor, usam o medo e a vilania para decretar o silêncio das palavras, a
ordem e o progresso dos livros em branco. Amar ou deixar, viver ou morrer, faça
a sua escolha - não se têm escolhas.
Hoje, os coturnos e os tanques marcham de
volta para os quartéis. É uma marcha arrastada, não é rápida nem súbita. Nem oferecem garantias que não haverá uma meia volta volver - as viúvas sentem saudades.
Eles não têm uma data para o fechamento do estado de sítio em que meteram essa rica
estância. Os pobres de Cristo não podem renunciar da ditadura. Coitados dos
simplórios e parvos que têm a vida iluminada por todas as gentes de bem, eruditos
da comiseração, ou pelo menos, pela maioria daqueles que andam por aí brincando
de cabra-cega, vendando os cegos e lhes colocando guizos para que se vejam pelas
aparências.
Os sintomas da estupidez do navio afundando
são os ratos, eles se movem e buscam outros velhos acomodamentos. Não submergem
junto. Ratazanas graúdas e miúdas da burocracia influente se preparam para os
tempos do novo que é velho, em outra medida — Sanguessugas filhos da puta, eu espero
que a Caldeira de Pedro Botelho lhes deixe a ficar com o cu na mão e com os
chifres e o rabo pegando fogo.
— Deem um caldo nesse com as mãos
amarradas e a língua destravada, depois levem até o rio. — ainda se vive com
desejos de liberdade e gritos mudos, medos e arrepios confusos, mas em todo
caso, essa bebida tão ardente como o fogo do inferno que serviram por esses
anos todos está se terminando. Aqui e acolá já vive se escutando vozes anônimas
— Chega dessa vida anormal, basta desta brincadeira besta de falar aos
cochichos!
— Por
que estamos cochichando? — permanece o golpe. Tudo acobertado por uma lona que
faz calar de medo. A anistia acovarda muitos, mas outros tantos travam as lutas
da inconformidade. Morrem. Sobrevivem. Adoecem. Envelhecem. Viram heróis. Saem
da memória. Outras vidas ficam na clandestinidade. São presas e torturadas.
Deixam de existir na fumaça da tirania. Viram esquecimentos. Cicatriz desunida
e desmaiada, embaraço com caroço: os mortos desaparecidos. Não bastava morrer,
precisava desaparecer. O filho lembra o pai discursando irado entre as paredes
da casa. As mulheres suplicando silêncio — Ainda vamos presas e tu desaparece...
Patriotas que humilharam por migalhas de
silêncio, o mistério de ser e não ser ao mesmo tempo. Falta um dia para
comemorar o término e o sossego militar da força. Uma data para distribuir cravos
vermelhos e livros. No primeiro dia do golpe distribuíram tanques e canhões nas
ruas. Agora que acaba - talvez não tenha acabado e se engana quem acredita que
terminou - tudo é desfeito ao feitio para parecer que nada houve. Ditadura.
Torturas. Mortes subterrâneas. Enquanto os parvos e simplórios sobrevivem para
continuar germinando como os musgos de uma civilização grosseira, barulhenta e
escandalosa. As ratazanas do silêncio envelhecem gordas e camufladas, se apropriam da
memória e devoram a ingenuidade, enquanto a ferrugem rói a ponte do passado com
gritos e tonturas - passado que não passa.
Foi nesse clima de incertezas que o
perneta regressou. Veio dos matos, barro e malária. Matador que se aluga.
Assassino de aluguel. Nele nada de especial: um revólver, uma faca e uma baita
vontade de subir na escala de serviço. Nas calmarias de matança sai perambulando
como um andante caneludo de uma perna só.
Voltou assim, um fantasma que não
acredita num outro mundo sem mortes e sofrimento. Ele é a morte e o sofrimento.
Ganhou o medo da imbecilidade e uma perna de pau. Ela é inevitável. Tem destino
com muitos caminhos. Solitário em todos eles. Mascate da cegueira. Vende lentes
encaixadas em uma armação. Servem para corrigir a visão ou fazer enxergar o
cego que pensa que vê, e não enxerga. É um espectador que não testemunha. Não
sabe nem muito nem pouco do que herdou da vida. Os cegos crentes dizem que a
derrota da taciturnidade golpista foi uma vitória direta do povo. Mentem. O tal
povo, nada ganhou. Nem soube. Ele ainda espera para ganhar alguma coisa nessa
terra em que se planta e tudo não dá. Mas dá-se um jeitinho. Maldito jeitinho,
bendito jeitinho. Essa é a nossa história de jeitinhos.
Outro dia, o perneta andava de mala na
mão procurando clareação, já cansado de ir para cá e lá. Parou numa bodega de
estrada com cancha de bocha. Pediu comida. Alguns jogavam no pequeno pátio
cercado por paredes de barro. Um sujeito muito grande, chinelos vagabundos de
dedos, aqueles de tiras que só deformam com o uso, se aproximou da mesa e
sentou-se a sua frente. Moscas escoltavam o grandalhão com chinelos de dedo,
cachorrinhos de estimação da sua força de apoio: um comboio de desocupadas vestidas
de preto rezando — Moço... — o perneta ergueu os olhos do macarrão cozido, o
outro na sua frente. Um desdentado pelo fim, só tinha alguns dos dentes por
baixo, a abóboda dentária despovoada, as gengivas vermelhas e inchadas, um
cachorrão desarmado, estava cuidando da sua figura e o moço pareceu bastante
distinto e paciencioso pra escutar a gente deste mundinho perdido.
— Sim?
— foi o que pode responder
— Essa
gente daqui diz que eu sou puto, mas eu não sou não.
— Tá
bem, tá bem... — foi o que arriscou dizer enquanto o sujeito se mantinha em pé,
na sua frente. Não abalançou o olhar acima do prato e do macarrão, queria
desmanchar qualquer vontade do sujeito continuar a conversa, ou seja lá o que
fosse
— Não,
não tá bem, o cu é meu e se eu quiser dar eu dou.
— Tá
bem, tá bem. — não, não estava nada bem, o perambulante perneta queria comer na
paz conveniente do silêncio, têm vezes que é precioso o sossego. Odeia esse
desassossego do macarrão frio. Fica grudento e desmanchado dos vapores do
aroma. Os cilindros finos e compridos ficam duros e desagradavelmente
pegadiços, é como se meter nestas coisas de igreja. O sermão do padre esfria os
vapores do corpo, até que todos se tornam desagradavelmente bajuladores. Não se
submete aos sermões requentados. Repete que sermão só do próprio crucificado. Não
crê em homens que não obedecem ao amor das carnes perfumadas e roliças, desatentos
do sentido da vida que está nas carnes, preferem o fingimento hipócrita. Aposta
que o crucificado se deu bem com as mulheres — O moço quer?
— O
quê?
— O
meu cu!
— Eu
agradeço a sua confiança, mas não vou querer, não.
— Pena,
fica pra uma próxima vez.
O sujeito se ia embora de mãos abanando
e cu balançando. O perneta num impulso infame chamou o desqualificado, não tinha
motivo para prolongar aquela agonia, a não ser o macarrão que já havia
esfriado, e tornou a chamar, do mesmo jeito que o menino não tem motivos para
fuçar no nariz, mas não consegue evitar dançar o dedo mesquinho dentro do
narigudo — Seu puto!
— Mudou
de ideia, moço?
— Não,
mas experimente as lentes que vai enxergar melhor.
— Será
que preciso?
— Só
experimentando.
— Alcança
uma dessas, então, moço. — o cigano é um canalha, não resistiu à tentação de
encolher aquele desgraçado. Não pode permitir ao puto continuar afirmando que
não era puto, ele era puto. O danado da vida precisava se enxergar como ele é,
só é preciso ter um bom professor. Por isso o perneta sempre gostou dos gringos,
com eles não tem conversa, o sujeito trabalha ou não presta. Esse não presta.
Mas, afinal, isso nem era assunto dele, só precisava resolver o caso inacabado
do pai, depois seguia para outras aventuras e oportunidades. Por aqui, todos se
conhecem de um jeito ou de outro, sabem quem presta e quem não tem serventia,
as conveniências diminuem. Cidade de fronteira é pequena e faladeira, é bem
assim, essa gente daqui não tem o que fazer, repete a invenção dos causos até a
chatice. O matador com falta de perna precisa de mais movimento que tem por aqui
- precisa de serviço - ou logo perde utilidade — Moço, por aqui, é tudo
filho-da-puta...
— E
você?
— Sou
o único que sabe o que é... não é que eu não via...
— Ah!
— O
moço não tá entendendo, esses sujeitos ali...
— O
que têm eles?
— Também
são putos da mãe que os pariu... — sua voz grande e fina o fez olhar para os
lados, como o pai do perneta. Isso o guri não sabia dizer se tinha verdade ou
só pesadelo repetido, mas já não tinha importância, eles faziam desaparecer...
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Leia também:
39 - Os joelhos dobrados sobre a terra
41 - Essa coisa de cornos na testa não me cai bem
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