sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O perneta regressou

Becos sem saída - Hálito de Pólvora



I
baitasar
Falta um dia especial para anunciar a alegria que foi sair da cegueira, escolher um ponto de partida para observar e investigar. Tudo tem um dia para começar e para terminar — Nem sempre, nem sempre... — num dia sem muita chuva, sem discursos, mas muitas orações de reza com medo dos comunistas e alarme por ganância contra a reforma das terras sem plantar: desceu uma sombra que reduziu o pensamento que discordava e afundou a ilha Madalena. Foi a negação da vida que se multiplicava nas diferenças.
Os livros não aguentaram a pressão das águas de março, das missas, do senso comum dos escravos vestidos de deuses - sem comiseração, compaixão e egoístas - com o martelar ritmado dos coturnos. Foi o aviso que ali ninguém estava para brincadeiras. Não tinham comunistas naquela ilha mais que os dedos de uma das mãos. Os depravados de lá continuam por aqui, mais safados do que nunca. Os musgos pobres e feios só fizeram aumentar. Os mortos de fome morrem todos os dias. As putas diminuíram as idades, tudo está começando mais cedo. A vida ficou mais colorida com a televisão e o cinema mais escuro e distante. Os livros precisam vender mais do que serem lidos. A escola escolhendo mártires para justificar a falta de apetite para educar - sua missão é ensinar... o quê? — Não diz assim, imagina esse mundo maluco sem escolas. — as fofocas foram culpas que a ilha não pode suportar.
Um fortão de bigodes ralinhos grita entre os homens da tropa — Os comunistas são fofoqueiros e comem as criancinhas — Com licença, sargento...
—        O que foi estúpido!
—        Acho que não é bem assim...
—        O que não é bem assim?
—        Não são os comunistas, são os padres...
—        Levem esse e amarrem as mãos. — a algazarra se apodera das vozes e é descolorida de algum sentido ou humor, usam o medo e a vilania para decretar o silêncio das palavras, a ordem e o progresso dos livros em branco. Amar ou deixar, viver ou morrer, faça a sua escolha - não se têm escolhas.
Hoje, os coturnos e os tanques marcham de volta para os quartéis. É uma marcha arrastada, não é rápida nem súbita. Nem oferecem garantias que não haverá uma meia volta volver - as viúvas sentem saudades. Eles não têm uma data para o fechamento do estado de sítio em que meteram essa rica estância. Os pobres de Cristo não podem renunciar da ditadura. Coitados dos simplórios e parvos que têm a vida iluminada por todas as gentes de bem, eruditos da comiseração, ou pelo menos, pela maioria daqueles que andam por aí brincando de cabra-cega, vendando os cegos e lhes colocando guizos para que se vejam pelas aparências.
Os sintomas da estupidez do navio afundando são os ratos, eles se movem e buscam outros velhos acomodamentos. Não submergem junto. Ratazanas graúdas e miúdas da burocracia influente se preparam para os tempos do novo que é velho, em outra medida — Sanguessugas filhos da puta, eu espero que a Caldeira de Pedro Botelho lhes deixe a ficar com o cu na mão e com os chifres e o rabo pegando fogo.
— Deem um caldo nesse com as mãos amarradas e a língua destravada, depois levem até o rio. — ainda se vive com desejos de liberdade e gritos mudos, medos e arrepios confusos, mas em todo caso, essa bebida tão ardente como o fogo do inferno que serviram por esses anos todos está se terminando. Aqui e acolá já vive se escutando vozes anônimas — Chega dessa vida anormal, basta desta brincadeira besta de falar aos cochichos!
—        Por que estamos cochichando? — permanece o golpe. Tudo acobertado por uma lona que faz calar de medo. A anistia acovarda muitos, mas outros tantos travam as lutas da inconformidade. Morrem. Sobrevivem. Adoecem. Envelhecem. Viram heróis. Saem da memória. Outras vidas ficam na clandestinidade. São presas e torturadas. Deixam de existir na fumaça da tirania. Viram esquecimentos. Cicatriz desunida e desmaiada, embaraço com caroço: os mortos desaparecidos. Não bastava morrer, precisava desaparecer. O filho lembra o pai discursando irado entre as paredes da casa. As mulheres suplicando silêncio — Ainda vamos presas e tu desaparece...
Patriotas que humilharam por migalhas de silêncio, o mistério de ser e não ser ao mesmo tempo. Falta um dia para comemorar o término e o sossego militar da força. Uma data para distribuir cravos vermelhos e livros. No primeiro dia do golpe distribuíram tanques e canhões nas ruas. Agora que acaba - talvez não tenha acabado e se engana quem acredita que terminou - tudo é desfeito ao feitio para parecer que nada houve. Ditadura. Torturas. Mortes subterrâneas. Enquanto os parvos e simplórios sobrevivem para continuar germinando como os musgos de uma civilização grosseira, barulhenta e escandalosa. As ratazanas do silêncio envelhecem gordas e camufladas, se apropriam da memória e devoram a ingenuidade, enquanto a ferrugem rói a ponte do passado com gritos e tonturas - passado que não passa.
Foi nesse clima de incertezas que o perneta regressou. Veio dos matos, barro e malária. Matador que se aluga. Assassino de aluguel. Nele nada de especial: um revólver, uma faca e uma baita vontade de subir na escala de serviço. Nas calmarias de matança sai perambulando como um andante caneludo de uma perna só.
Voltou assim, um fantasma que não acredita num outro mundo sem mortes e sofrimento. Ele é a morte e o sofrimento. Ganhou o medo da imbecilidade e uma perna de pau. Ela é inevitável. Tem destino com muitos caminhos. Solitário em todos eles. Mascate da cegueira. Vende lentes encaixadas em uma armação. Servem para corrigir a visão ou fazer enxergar o cego que pensa que vê, e não enxerga. É um espectador que não testemunha. Não sabe nem muito nem pouco do que herdou da vida. Os cegos crentes dizem que a derrota da taciturnidade golpista foi uma vitória direta do povo. Mentem. O tal povo, nada ganhou. Nem soube. Ele ainda espera para ganhar alguma coisa nessa terra em que se planta e tudo não dá. Mas dá-se um jeitinho. Maldito jeitinho, bendito jeitinho. Essa é a nossa história de jeitinhos.
Outro dia, o perneta andava de mala na mão procurando clareação, já cansado de ir para cá e lá. Parou numa bodega de estrada com cancha de bocha. Pediu comida. Alguns jogavam no pequeno pátio cercado por paredes de barro. Um sujeito muito grande, chinelos vagabundos de dedos, aqueles de tiras que só deformam com o uso, se aproximou da mesa e sentou-se a sua frente. Moscas escoltavam o grandalhão com chinelos de dedo, cachorrinhos de estimação da sua força de apoio: um comboio de desocupadas vestidas de preto rezando — Moço... — o perneta ergueu os olhos do macarrão cozido, o outro na sua frente. Um desdentado pelo fim, só tinha alguns dos dentes por baixo, a abóboda dentária despovoada, as gengivas vermelhas e inchadas, um cachorrão desarmado, estava cuidando da sua figura e o moço pareceu bastante distinto e paciencioso pra escutar a gente deste mundinho perdido.
—        Sim? — foi o que pode responder
—        Essa gente daqui diz que eu sou puto, mas eu não sou não.
—        Tá bem, tá bem... — foi o que arriscou dizer enquanto o sujeito se mantinha em pé, na sua frente. Não abalançou o olhar acima do prato e do macarrão, queria desmanchar qualquer vontade do sujeito continuar a conversa, ou seja lá o que fosse
—        Não, não tá bem, o cu é meu e se eu quiser dar eu dou.
—        Tá bem, tá bem. — não, não estava nada bem, o perambulante perneta queria comer na paz conveniente do silêncio, têm vezes que é precioso o sossego. Odeia esse desassossego do macarrão frio. Fica grudento e desmanchado dos vapores do aroma. Os cilindros finos e compridos ficam duros e desagradavelmente pegadiços, é como se meter nestas coisas de igreja. O sermão do padre esfria os vapores do corpo, até que todos se tornam desagradavelmente bajuladores. Não se submete aos sermões requentados. Repete que sermão só do próprio crucificado. Não crê em homens que não obedecem ao amor das carnes perfumadas e roliças, desatentos do sentido da vida que está nas carnes, preferem o fingimento hipócrita. Aposta que o crucificado se deu bem com as mulheres — O moço quer?
—        O quê?
—        O meu cu!
—        Eu agradeço a sua confiança, mas não vou querer, não.
—        Pena, fica pra uma próxima vez.
O sujeito se ia embora de mãos abanando e cu balançando. O perneta num impulso infame chamou o desqualificado, não tinha motivo para prolongar aquela agonia, a não ser o macarrão que já havia esfriado, e tornou a chamar, do mesmo jeito que o menino não tem motivos para fuçar no nariz, mas não consegue evitar dançar o dedo mesquinho dentro do narigudo — Seu puto!
—        Mudou de ideia, moço?
—        Não, mas experimente as lentes que vai enxergar melhor.
—        Será que preciso?
—        Só experimentando.
—        Alcança uma dessas, então, moço. — o cigano é um canalha, não resistiu à tentação de encolher aquele desgraçado. Não pode permitir ao puto continuar afirmando que não era puto, ele era puto. O danado da vida precisava se enxergar como ele é, só é preciso ter um bom professor. Por isso o perneta sempre gostou dos gringos, com eles não tem conversa, o sujeito trabalha ou não presta. Esse não presta. Mas, afinal, isso nem era assunto dele, só precisava resolver o caso inacabado do pai, depois seguia para outras aventuras e oportunidades. Por aqui, todos se conhecem de um jeito ou de outro, sabem quem presta e quem não tem serventia, as conveniências diminuem. Cidade de fronteira é pequena e faladeira, é bem assim, essa gente daqui não tem o que fazer, repete a invenção dos causos até a chatice. O matador com falta de perna precisa de mais movimento que tem por aqui - precisa de serviço - ou logo perde utilidade — Moço, por aqui, é tudo filho-da-puta...
—        E você?
—        Sou o único que sabe o que é... não é que eu não via...
—        Ah!
—        O moço não tá entendendo, esses sujeitos ali...
—        O que têm eles?
—        Também são putos da mãe que os pariu... — sua voz grande e fina o fez olhar para os lados, como o pai do perneta. Isso o guri não sabia dizer se tinha verdade ou só pesadelo repetido, mas já não tinha importância, eles faziam desaparecer...

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