Ensaio 08
baitasar
baitasar
No
quarto há uma cama, sobre a cama um homem, sobre o homem um menino com medo. E
quando Sèzar respira boca abaixo, tem o corpo retesado, desesperado engole o ar
aos goles, afogado.
O
celular de Sèzar dispara um sinal sonoro, retira a máscara do nebulizador e
atende — Não posso, Gustavo... não posso. — desliga e o deixa sobre a cama. Daniel
e Gustavo modelam as aparências dos seus músculos na academia,
uma rotina antiga dos três amigos gremistas: pesos, medidas, espelhos e dietas. Naquela tarde, Sèzar
não foi, precisa da máscara do nebulizador, a máscara dos músculos pode
esperar.
Muitos
anos antes, ele franzino, eles montanhas rochosas. A intuição da sobrevivência
do Sèzar aproximou os seus lamentos ao amontoado corpóreo do Daniel-Gustavo, dois
gorilas brancos desde os tempos do colégio. Sèzar jamais gostou de esportes,
tinha convicção que essas disputas de contato físico apenas reforçavam suas
fraquezas, diminuíam suas chances por alguma coisa, qualquer coisa, estava
encarcerado e precisava de guarda-costas. As aulas de jogar bola não ajudavam e
o medo de fracassar atrapalhava mais. Não podia consolar-se com ninguém. O
silêncio frio de palavra nenhuma.
Ergueu-se sobre as pernas e pediu a sua mãe a
primeira camisa de jogar bola — Futebol, Sèzar? — respondeu que ele e outros
meninos – treinava os dois para serem seus guarda-costas – estavam fundando a
jovem torcida organizada tricolor da escola. Assim, se tornou um torcedor
futebolista ocasional e um gremista musculoso – não foi por amor, mas
necessidade – agora, era um deles. Com o devido tempo e treino poderia ser
transformado em uma máquina de moer carne, ou pelo menos, poderia parecer com
um instrumento desses. Esse foi o começo fundador da JTC – Jovem Torcida
Tricolor do Colégio.
Depois
de anos pesados de chuva chega um vento furioso, se põe a limpar lá por cima e
o azul começa se mostrando mais uma vez. E quando Sèzar começou a sentir que
era real, não estava mais existindo numa vida que parecia um acidente, ele a
levou muito a sério. Não era mais um garoto franzino, o tempo e a academia o
deixaram um homem crescido, gostava de escrever, mas escrever não era real,
então, sempre que o seu Grêmio – que o salvou das garras da discordância –
jogava em seu estádio, ele e a jovem torcida tricolor do colégio, mais velha e
pesada que nos tempos do colégio, enfiados dentro de suas camisas gremistas, esticadas
nos braços e peitoral, iam para a arquibancada e gritavam e xingavam e
cantavam, isso era real. Subiam e desciam correndo as arquibancadas, isso era
uma avalanche. Algumas vezes saiam sem saber o resultado do jogo.
Por
isso, ficou animado com a ideia do presente para Adelaide: uma camisa
futebolística tricolor para sua amiga colorada. Gremistas ou colorados, todos
são alguma coisa que não existe, mas quando usam suas cores de torcida
misturam-se a realidade, e Teseu, Minotauro, Jasão, Esfinge, Édipo, Hércules,
Velocino de Ouro, Midas, entram em campo e correm, e correm, de um lado a
outro, como exércitos, soldadinhos de chumbo — Sèzar, a única vida é agora, eu
e você... — as palavras da Adelaide sempre produzem um sentimento profundo
nele, As outras não são vidas, mas aparências do que aconteceu ou a suspeita no
que virá
— E o que é real na vida, Adelaide, antes
ou depois de agora?
— O meu irmão. — ele não tem irmãos, mas
tem a jovem torcida tricolor do colégio.
Esse
é o dia, o ingresso para o grenal está no bolso, mas a camiseta vermelha
permanece dobrada na gaveta, depois do banho e da barba feita, não pode mais
adiar, enfia a camisa por cima dele mesmo — Pronto, está feito! — falta o boné,
procura um neutro e maior possível.
A
campainha toca, ela está pronta — Está pronto, Sèzar? — ele a pega pelo braço e
saem para o Beira-Rio, estádio dos colorados. Lembra que precisa ter mais
cuidado com suas brincadeiras e provocações — Você esta linda. —isso não é brincadeira,
nem provocação, e deus criou a mulher para que a vista nos doa por horas de
contemplação
— Você também, mesmo com esse boné.
Descem
do ônibus e caminham para o estádio. O boné de Sèzar enterrado nas orelhas,
enfiado nos olhos, um véu de camuflagem. Nos arredores do estádio cruzam com a
jovem torcida tricolor do colégio – desfalcada dele: sócio fundador – recorda o
mesmo pavor do menino franzino e enfermiço, seus passos gaguejavam. Adelaide
segura firme em sua mão e lhe dá o seu beijo, enquanto os rapazes passam por
eles — Vi isso num filme. — ele se pergunta se aquele beijo foi real ou um
disfarce.
Os
amigos fortões eram todos os gremistas, ele não podia ser diferente - ou não quis - não havia
chances. Ficou torcedor que torce e distorce pelo seu time, apaixonado por medo
de não ser feliz, seja lá o que isso signifique. Não escolheu, foi empurrado em
uma avalanche. Não tem amigos, mas amigos gremistas, as aparências da cor lhe
trazem conforto — E eu? — pergunta Adelaide, ele abriu a boca e a alma se abriu
de imediato, foi escorrendo da garganta aos tropeços
— E você é a única que me faz isso... vestir
o vermelho em grenal — fingir que se torce é pior que torcer contra; mentir
para os amigos gremistas não foi satisfatório – mas com um pouquinho de sorte,
eles nem ficam sabendo – mentir para os colorados é coisa de nada – quase uma
obrigação – no fim e ao cabo de tudo, nada acontece, o futebol nem é tão
importante. A mentira em si é uma covardia do mentiroso, mas ali, naquela
multidão, foi apenas uma brincadeira. A paixão em demasia é um dos esconderijos da
razão, mas como apaixonar se não for para ser em excessos ingovernáveis da
vontade?
Olha na superfície das cores coloradas, naquela multidão silenciosa, Sèzar é apenas
outro colorado, mentira ou verdade – quem se importa? – sentado na arquibancada
de concreto, sofrendo em silêncio com o golo do rival. Estava enfiado dentro do
boné, sem risco de ser encontrado. Triste. Melancólico.
O
conforto era a mão de Adelaide na sua. Levanta e grita
— Burro!
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Leia também:
Ensaio 07 - O futebol nem é tão importante, mas os personagens...
Ensaio 09 - Golos e Cânticos com mirra e incenso
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