segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Os joelhos dobrados sobre a terra

Becos sem saída - O velho ressuscitado!
II
baitasar
Supimpa saiu do Quartel de Operações e Controle Contra e Extermínio dos Subversivos disposto a procurar o destino da mãe e do pai emprestado. Do bugre e da irmã sabia o paradeiro e o delegado não iria além do já feito. O estrago foi grande, mas tinha conserto. Depois daquela conversa com o delegado Calçacurta a vigilância nele foi relaxada. O garoto do delegado saiu do prédio sem guarda-costas. Ele sabia onde ir para vasculhar.
Tocou a campainha — Você...
—        Vamos continuar onde paramos?
—        Entra. — a mulher desvestida deu um passo atrás e o rapaz entrou. Andava descolorida de roupas, lhe dizia que adorava aquelas ausências do marido. A pele branca, as formas sem exageros, os pelos do monte encapelados — Ia depilar as entranhas.
—        Eu continuo... posso? — não respondeu, caminhava à sua frente lentamente. Não olhava, mas sentia o olhar do ajudante manco do marido cravado nas suas carnes. Sentia-se desvestida. Deitou na cama e entregou o pincel do Calçacurta. O aprendiz cobriu com espuma os pelos da sua gula. Movimentos de delicadeza deixavam o pincel escorregadio e a molhavam com os sabores da baba espumante. Alongava os pelos com o pente do torturador em uma das mãos e uma pequena tesoura cortava-os próximos a carne. Ficavam arrepiados. Raspou a virilha direita, depois esquerda, desviava a lâmina pelos desvios e atalhos, até ficar satisfeito com o alinhamento perfeito de curvas — Acabou?
—        Ainda não... — encaixou a cabeça entre as pernas de Clara, lambendo-a com vulgaridade, com força, como alguém que se apodera e não compartilha esperanças. Abriu as calças para libertar o outro prisioneiro. Tornou a enfiar a cabeça entre as pernas de Clara, até o fundo — Pergunta se quero ser a sua puta...
—        Quer ser a minha puta?
—        Eu quero ser a sua putinha, sem-vergonha! — a batida do martelo ficava forte e o prego rasgava as carnes do fundo
—        Come a sua puta! Meu Deus, que delícia!
O transgressor acordou do silêncio. A mulher estava morrida em sono. Dormia deitada de bruços ao seu lado. Ergueu-se e ficou espigado com suavidade. Recolheu-se para dentro de suas roupas, sussurrando alguma coisa sobre todos serem loucos. Desceu nas sombras até o buraco enterrado no chão. O porão dos arquivamentos pessoais do Calçacurta, com seu cartório de aço. É uma sala sem aberturas com dezenas de arquivos guardando suas histórias de terror, isolada do restante do subterrâneo. A sala vive vazia de curiosos. Não sabia por onde começar, muitos arquivos e muitas pastas. Mesmo que os arquivos da mãe e da irmã estejam ativos, passando nas mãos dos interrogadores, acreditava que poderia encontrar alguma coisa para barganhar. Começou pela letra M, mas nada encontrou em Maria ou Memória ou Manualdo. Foi até a letra C de Cariciosa. Nada. Diabo, não sabia o nome de casada da irmã. Lembrou que a mãe nunca desfez o casamento com o pai. Silva. Esse era o nome para procurar, chegou na gaveta onde se encontra a letra S e começou sua procura — Santana, Soares, Souza, Santos, Saraiva, Silveira, Sobrinho, Silva... achei.
Pegou a primeira pasta e leu em voz alta — Ana Rosa Silva... não conheço. — passou para a pasta seguinte e a voz ficou presa, como se escapada da garganta pudesse mudar a história, acabar com a saudade, explicar a dor, confundir a angústia e conversar com o seu pai, dizer adeus — Virgílio Silva, não pode ser... deve ser outro.
Abriu a pasta e lá estava o fantasma do seu pai. Passou a ler os autos de interrogatório e qualificação do processo por razões políticas. Arrastado dos meios ferroviários por envolvimentos sindicais. Leu alguns trechos do relatório — O tal Virgílio, mas também conhecido por Valter, Vini, Valtão e Venâncio, caiu chegando no ponto.
—        Quem mais caiu? — perguntava a autoridade do quartel
—        A amante... uma tal de Ana Rosa.
—        É soldado?
—        Pelo jeito, só deita com o negão.
—        Por que trouxeram a carga?
—        Usamos a carne dela pra fazer a língua do negão amolecer.
Pula alguns trechos do relatório, descrição de crucificação que bem conhece — O tal negão ferroviário apresenta desfiguramento total da cara.
—        Senhor Delegado, acho que o negão já era!
—        Respira mal e cospe mais sangue do que o doutor pode aparar.
—        Parece que não tem mais osso completo. — leu mais algumas linhas de observação do jovem agente Calçacurta, tenho afirmado que os nossos homens precisam de um curso com os gringos sobre essas modernas técnicas de tortura. Se quisermos ter sucesso nessa guerra, temos que deixar num segundo plano esse desperdício de informações que cada morto, por excesso de zelo da nossa gente, deixa de fornecer. Tenho visto que as torturas psicológicas intercaladas com choques elétricos desmontam a maioria das resistências. Sugiro um grupo de estudos para que métodos científicos sejam estudados e usados com urgência. Não podemos desperdiçar informações nesta guerra surda de interrogatórios. Vale lembrar que estamos intensificando nossas ações repressivas e um número crescente de subversivos tende a procurar ações armadas. O menino de ouro do delegado Calçacurta não conseguia desviar os olhos daquele dossiê com a sentença de morte para o seu pai — Pessoal, precisamos evitar desperdício... foram com muita força.
—        Calçacurta, aqui na senzala não tem medida.
—        E a Anastácia?
—        Vocês sabem como fazer...
—        É só dizer!
—        Tirem a pele e acabem com a tristeza dos dois.
—        Com marcas de enforcamento...
—        Os detalhamentos... deixo na sua decisão.
No final, leu aos sussurros os autos médicos e o veredicto — Não resistiu e se provocou o suicídio. — parou de ler, os olhos e dedos estavam em outros papéis amarelados. Pegou um envelope endereçado a ele pelo irmão. Uma carta que nunca chegou. Leu aos goles, comia os artigos e adjetivos, somente interessavam os verbos e sujeitos — Meu Deus, o meu pai, não!
Queria sair correndo dali, mas antes de abrir aquelas portas procurava por outra informação — O corpo foi enterrado junto com a sua companheira Ana Rosa Silva, no cemitério municipal: indigentes. — foi um tempo romântico, ainda enterravam os mortos torturados.
Pegou a pasta daquela mulher de nome Ana Rosa e a do pai. Fechou todos os demais arquivos. Escondeu a papelada entre o seu corpo e a roupa de polícia. Aqueles panos de polícia que reverenciava e sentia colado ao corpo o deixavam com o sangue e as carnes desmanchadas, agora as outras vidas que se foram e jamais poderão recomeçar eram as suas. Estava nele o sangue de sofrimento do pai. Esse era o plano do Calçacurta, nada tinha de confuso, tudo feito para presentear o aprendiz com o cadáver do pai. Estava tenso. Cada movimento o prendia na rede de mortes tecida pelo delegado. Não havia escapatória. Até mesmo a cama do andar acima foi preparada por ele. Nada é ao acaso.
Não tinha mais nada além da escuridão e sabia que mereceu. Fez tudo que foi ordenado e deixou ele mesmo pra trás, sabe que merece. O guri que ele foi estava asfixiado pelas próprias mãos. Foi além do mandado e rasgou as carnes que lhe chegaram aos gritos, suplicando que não. Saberão que poderia ter gritado que não.
Precisava sair daquelas paredes. Abriu à porta da sala dos arquivamentos, ninguém espreitava. Sai e fecha a passagem. Caminhava pelo corredor estreito e longo, que o separava da escadaria para o térreo. Os seus passos precisavam ser enérgicos e rápidos. Subiu as escadas. Precisava sair... essa era a única chance da sua mãe e da irmã. A arrogância da impunidade do Calçacurta lhe deixava com vigilância frouxa, pareceu que o delegado lhe sabia cada passo antes de ser dado. Um jogo de mostrar e esconder.
Nas ruas, Supimpa tinha muito que fazer e conversar e procurar.
Foi para o cemitério municipal, um campo de covas rasas, e procurou os registros do sepultamento de um par de indigentes no início do ano de 1969. Lá estava. Anotou a localização e se preparou para visita aos dois mortos, a visita foi durante aquela madrugada. Enquanto os vivos dormiam e os mortos passeavam pelas alamedas de pedra, Supimpa voltou com a pá de escavar e os pesadelos que fizeram dele o que se permitiu ser. Seu pai morreu por nada e ele viveu por nada. O seu caminhar de alma manca assustou a lua cheia que puxou algumas nuvens para escondê-la, o negrume ficou completo. No lugar marcado com xis em seu mapa, começou escavação. As entranhas daquelas terras mortas se abriram para mostrar suas raízes de gordura e de acabamento. Exibiram-se sem pressa. O homem escavador se desesperava. No início de maneira tímida e desconfiada, mas na medida em que o tempo se passou e o suor lhe escorreu, semeando a sua expiação, ele se aproximava do fim. Sua tensão não o fez mais confiante e decidido. Depois de minutos de procura, parou sua colher de espalhar a terra. Ela tocou o madeiro do ataúde e o vozerio da canalha torturadora fez silêncio. Não conseguiam assustar com suas ameaças aquele filho. A lua cheia fugiu. O soldado da vidinha sacana via o seu passado penetrado na terra. Começou retirando o resto daquele chão com as mãos. As madeiras cederiam ao menor esforço de destruí-las. Com nenhum esforço retirou a tampa e viram os dois colocados um sobre o outro. A cabeça nos pés de um e os pés na cabeça do outro. Afastou os ossos do pé de uma ossada que estavam sobre a cabeça do defunto, e lá está o seu pai, com os dois dentes de ouro na frente e acima.
Sentou em silêncio. Não se moveu, apenas ficaria ali. Ouvindo os passos do pai, sentindo os seus abraços de vigor e cansaço, dias e noites de saudade e perguntas sem respostas. Enumerava pelas lágrimas da memória tudo que lhe foi roubado. Aprendeu o esquecimento daquele homem durante aqueles anos. Ele sempre soube que tudo podia acontecer, mas doeu não poder guardar na memória nenhum gesto de adeus. As lembranças não permitiam que o vazio da saudade se tornasse um coveiro da vida. Sentia o abandono da despedida.
Era o menino Supimpa chorando.
Fechou o ataúde e rezou com os seus joelhos dobrados sobre a terra.
Agora seu pai estava sepultado.
Escreveu na cruz de ferro sem número — Aqui dormem Virgílio Silva e Ana Rosa Silva, mortos pelos torturadores da ditadura militar. — é uma pena que os deuses não leiam pelo prazer de ler, para encontrar a tolerância em si mesma, para se deixarem amar pelos olhos, em voz alta: e escaparem do silêncio dos ignorantes, como forma de amarem a si e ao simples. São estúpidos demais.

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38 - Ordens são ordens 

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