segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A insubstancialidade das assombrações

Ensaio

baitasar


As etapas de descanso para salgar a conversa, não tinham hora demarcada por vontade da casa, primeiro atender as necessidades da freguesia: ela paga e escolhe. Depois cuidar do faz de conta que conta o que todas fazem de conta que não contam. O que não pode esperar por esperar é cuidar do embelezamento, banho, aparar ou sair puxando os pelos, conforme as conveniências, não esquecer a pintura das partes que mais distraem, perfume por lá e acolá, nem tudo é perfumado por perfume, mas enfim, não se pode ter tudo, o que conta é a soldada em prontidão no quartel. O apetite começa pelos cheiros e com os olhos, o sabor não é secundário, dá mais consistência nos movimentos das intimidades — Meu filho, não me faça olhar corretivo, aqui nunca se vendeu livros, algumas meninas nem sabiam ler.
A Olalla sempre deu jeito de prosa em tempo fora de costume, fazia regramento para si, a menina sofria da doença do desconforto no silêncio e o paciente descarnava pela voz da garganta devaneios que pareciam sem propósito. Uns se precipitavam sobre a foguista, depois que o corpo ficava curado de esfregar e enfiar o peito da foguista não se aquietava, precisava escapar pelo abismo da garganta, como se fosse preciso pular e cair nas profundezas das palavras. Outros se punham a contar e recontar histórias antes de fazer uso dos cantos e frestas de Olalla. Não era confessionário, mas teve vez que lhe foi pedido que se vestisse de freira. A menina não aceitou, reclamou que já tinha inimigos em demasia para se permitir arrumar desavença com gente tão poderosa.
Ficou mais assustada e arredia quando um jovem de riso nervoso, que lhe obrigava girar a queixada e olhar para trás, queria lhe ver os olhos brilhando, a melhor atriz que a casa já teve, ele apenas repetia e repetia que fugia do manicômio, ela fazia os olhos brilharem, ele então gemia como se não estivesse por ali
— Não sei por que não me esquecem... é um manicômio... — nunca perguntou onde era lá, regras da casa: escutar sem ouvir. Não puxava conversa, não queria saber — Um manicômio de covardias, casarão com jeito de austeridade escondendo violações e ossos quebrados que nunca mais se juntam, quebra-cabeças esfarelados, fantasmas que viram pó, vidas possíveis apagadas da existência que se tornou inviável, trapos que usamos para secar o chão e largamos úmidos num canto qualquer. Ninguém se recupera do susto de morte da vida, enlouquecendo de apanhar, esfrega, afia, esfrega, afia, até que afia nas carnes inchadas e corta, e fatia.
Estava ela ali, não estava lá, estava ele ali, mas estava lá, ela, as pernas abertas provocavam as praias, o futebol, o sol, fingia que entregava o que nunca devolveu, sem sentido algum se algum já teve, a foguista continuava torturada, mas não estava lá, não tinha ideia o que seria estar por lá — Não sei se você me entende, mas você é para mim o que foi aquela mulher.
A penumbra do quarto fez algum sentido, mas não pode esconder a tristeza dos olhos do Beijamim, ele babava — Meu filhinho, babando de novo! — as mães sempre no socorro dos filhos, a saliva gotejando grossa, espessa sobre seus joelhos, fingia que lhe devolvia o que nunca me pertenceu, o lobo faminto não enxergava nem ela, nem eu
—        A moça me deixaria ler? — tinha nas mãos um papel todo amassado e velho de uso — Claro, Beijamim... — o jovem de riso nervoso sentou sobre os lençóis manchados e enrugados, desdobrando o papel, Meu amado subversivo, venho por meio desta solicitar que me informe com precisão o número exato da importância em dinheiro que recebe uma doce subversiva, em seu movimento revolucionário. Sabendo de suas possibilidades e do seu poder, tenho certeza que sua memória será eficaz e sua ação rápida segundo meus conhecimentos. Aguardo ansiosamente lembrando-lhe que neste momento sou apenas uma simples clandestina que não tem uma identidade própria e planos, somos muitas, como qualquer subversiva. Por felicidade, desposei-lhe. Tenho muitas ideias para nossa causa. Te amo, Beijamim. Aguardo-te sempre.
Nua não entregou sua camaradagem, não entraram em sua intimidade, precisaram do sangue escorrendo, transpirando do nariz, das virilhas, descendo dos olhos, afogando a garganta. Gotejando na bacia de alumínio manchada e enrugada. O abuso enfiado pelo perverso manco, como o bandido enfia a faca nas carnes do morto, não conseguia evitar, ninguém lhe saia vivo das mãos.
A menina foguista ficava sentada, as pernas recolhidas e abraçadas, os lençóis enrugados, esfriando, as perguntas esquecidas nunca foram ditas — Quem é essa moça? Vocês casaram? Ela vive? Onde está? — a mesma regra da casa, cuidar da própria proteção: nunca fazemos perguntas.
Ela desapareceu para distrair os perversos na sua existência de monotonia, somos distrações dos donos do mundo. Bonecos de pano ou louça, a distração da contemplação, aguardando as notícias, esperando as ordens — Você me entende, Olalla?
—        Algumas coisas, neném.
Homens que não falam na cama não sabem amimar seu amor. Sempre repeti às meninas que ouvir é respeitoso, mas calar é mais seguro. Deixem que falem nas suas vontades e só perguntem o que eles já disseram. Histórias e vontades se aquietam até quase desaparecerem, como se não pudessem se redimir das promessas das vidas não cumpridas que não renunciasse às suas ideias de insubstancialidade. Assombrações
—        Quem tem medo de assombrações?
Sinto saudades daquele tempo da casa cheia, eu sei filho, prometi não mentir em troca de um cigarro, que você não acendeu, eu confesso: não sinto saudades daquele tempo, sinto saudades de mim mesma naquele tempo, tive os homens que eu quis, alguns não quis, mas negócios eram negócios, todos temos que fazer escolhas na vida. Eu sempre soube quem eu fui ou fingi esse tempo todo que sabia. Não é assim que fingimos os desgostos de nós mesmos e as lágrimas de nós mesmas? Sabemos o que não queremos, mas não sabemos o que queremos. É como ter alguma coisa escapando que nunca tivemos, jamais vamos ter. Não ter como ter a vida de volta e mudar os desembaraços, ou as indecisões. Querer o sonho e perder a realidade para o tempo — Estou tão cansada, meu filho... meu peito não se aquieta... tenho medo de fechar os olhos, você promete que me acorda... de qualquer sono, qualquer sonho é melhor que dormir para sempre, a imortalidade da morte.
Fiz tanta coisa que nem sei que fiz, o mundo foi passando em reviravoltas pelo sol e eu fui junto, se me perguntam por onde andei enquanto girava, girava e girava com o mundo, nem sei. É o hábito de girar dançando, se me perguntam se lembro dos homens com quem gozei, nem sei se gozei, é ridículo pensar nisso às portas da imortalidade, mais cômico é imaginar que alguém pudesse perguntar. Ninguém pergunta, ninguém chora, todos rezam, mesmo quem nunca rezou faz o sinal em cruz e move os lábios bem baixinho, se é para alguém escutar mexe os lábios tão baixinho, temos medo do que vem depois, mas nem todas: Olalla nunca teve esse medo. Desconheço esse depois, não vai me importar muito ou quase nada, não sei e não me importa ouvir lágrimas — Meu filho, o cigarro...
Naqueles bons tempos, deitei com o coitado do manco, fui a viúva puta do general, ensinei muito guri o uso das mãos e das palavras doces, acho que fui boa provadora, não ia além da minha competência, fingir era outra regra da casa, elogiar, substituir a consciência pelo sossego, cada uma teve a sua luta.

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