Ensaio
baitasar
baitasar
As etapas de descanso para salgar a conversa, não
tinham hora demarcada por vontade da casa, primeiro atender as necessidades da
freguesia: ela paga e escolhe. Depois cuidar do faz de conta que conta o que
todas fazem de conta que não contam. O que não pode esperar por esperar é
cuidar do embelezamento, banho, aparar ou sair puxando os pelos, conforme as
conveniências, não esquecer a pintura das partes que mais distraem, perfume por
lá e acolá, nem tudo é perfumado por perfume, mas enfim, não se pode ter tudo,
o que conta é a soldada em prontidão no quartel. O apetite começa pelos cheiros
e com os olhos, o sabor não é secundário, dá mais consistência nos movimentos
das intimidades — Meu filho, não me faça olhar corretivo, aqui nunca se vendeu
livros, algumas meninas nem sabiam ler.
A Olalla sempre deu jeito de prosa em tempo fora de
costume, fazia regramento para si, a menina sofria da doença do desconforto no
silêncio e o paciente descarnava pela voz da garganta devaneios que pareciam
sem propósito. Uns se precipitavam sobre a foguista, depois que o corpo ficava
curado de esfregar e enfiar o peito da foguista não se aquietava, precisava
escapar pelo abismo da garganta, como se fosse preciso pular e cair nas profundezas
das palavras. Outros se punham a contar e recontar histórias antes de fazer uso
dos cantos e frestas de Olalla. Não era confessionário, mas teve vez que lhe
foi pedido que se vestisse de freira. A menina não aceitou, reclamou que já
tinha inimigos em demasia para se permitir arrumar desavença com gente tão
poderosa.
Ficou mais assustada e arredia quando um jovem de
riso nervoso, que lhe obrigava girar a queixada e olhar para trás, queria lhe
ver os olhos brilhando, a melhor atriz que a casa já teve, ele apenas repetia e
repetia que fugia do manicômio, ela fazia os olhos brilharem, ele então gemia
como se não estivesse por ali
— Não sei por que não me esquecem... é um
manicômio... — nunca perguntou onde era lá, regras da casa: escutar sem ouvir.
Não puxava conversa, não queria saber — Um manicômio de covardias, casarão com
jeito de austeridade escondendo violações e ossos quebrados que nunca mais se
juntam, quebra-cabeças esfarelados, fantasmas que viram pó, vidas possíveis
apagadas da existência que se tornou inviável, trapos que usamos para secar o
chão e largamos úmidos num canto qualquer. Ninguém se recupera do susto de
morte da vida, enlouquecendo de apanhar, esfrega, afia, esfrega, afia, até que
afia nas carnes inchadas e corta, e fatia.
Estava ela ali, não estava lá, estava ele ali, mas
estava lá, ela, as pernas abertas provocavam as praias, o futebol, o sol,
fingia que entregava o que nunca devolveu, sem sentido algum se algum já teve,
a foguista continuava torturada, mas não estava lá, não tinha ideia o que seria
estar por lá — Não sei se você me entende, mas você é para mim o que foi aquela
mulher.
A penumbra do quarto fez algum sentido, mas não pode
esconder a tristeza dos olhos do Beijamim, ele babava — Meu filhinho, babando
de novo! — as mães sempre no socorro dos filhos, a saliva gotejando grossa,
espessa sobre seus joelhos, fingia que lhe devolvia o que nunca me pertenceu, o
lobo faminto não enxergava nem ela, nem eu
— A moça
me deixaria ler? — tinha nas mãos um papel todo amassado e velho de uso —
Claro, Beijamim... — o jovem de riso nervoso sentou sobre os lençóis manchados
e enrugados, desdobrando o papel, Meu amado subversivo, venho por meio desta
solicitar que me informe com precisão o número exato da importância em dinheiro
que recebe uma doce subversiva, em seu movimento revolucionário. Sabendo de
suas possibilidades e do seu poder, tenho certeza que sua memória será eficaz e
sua ação rápida segundo meus conhecimentos. Aguardo ansiosamente lembrando-lhe
que neste momento sou apenas uma simples clandestina que não tem uma identidade
própria e planos, somos muitas, como qualquer subversiva. Por felicidade,
desposei-lhe. Tenho muitas ideias para nossa causa. Te amo, Beijamim.
Aguardo-te sempre.
Nua não entregou sua camaradagem, não entraram em
sua intimidade, precisaram do sangue escorrendo, transpirando do nariz, das
virilhas, descendo dos olhos, afogando a garganta. Gotejando na bacia de
alumínio manchada e enrugada. O abuso enfiado pelo perverso manco, como o
bandido enfia a faca nas carnes do morto, não conseguia evitar, ninguém lhe
saia vivo das mãos.
A menina foguista ficava sentada, as pernas
recolhidas e abraçadas, os lençóis enrugados, esfriando, as perguntas
esquecidas nunca foram ditas — Quem é essa moça? Vocês casaram? Ela vive? Onde
está? — a mesma regra da casa, cuidar da própria proteção: nunca fazemos
perguntas.
Ela desapareceu para distrair os perversos na sua
existência de monotonia, somos distrações dos donos do mundo. Bonecos de pano
ou louça, a distração da contemplação, aguardando as notícias, esperando as
ordens — Você me entende, Olalla?
— Algumas
coisas, neném.
Homens que não falam na cama não sabem amimar seu
amor. Sempre repeti às meninas que ouvir é respeitoso, mas calar é mais seguro.
Deixem que falem nas suas vontades e só perguntem o que eles já disseram.
Histórias e vontades se aquietam até quase desaparecerem, como se não pudessem
se redimir das promessas das vidas não cumpridas que não renunciasse às suas
ideias de insubstancialidade. Assombrações
— Quem
tem medo de assombrações?
Sinto saudades daquele tempo da casa cheia, eu sei
filho, prometi não mentir em troca de um cigarro, que você não acendeu, eu
confesso: não sinto saudades daquele tempo, sinto saudades de mim mesma naquele
tempo, tive os homens que eu quis, alguns não quis, mas negócios eram negócios,
todos temos que fazer escolhas na vida. Eu sempre soube quem eu fui ou fingi
esse tempo todo que sabia. Não é assim que fingimos os desgostos de nós mesmos
e as lágrimas de nós mesmas? Sabemos o que não queremos, mas não sabemos o que
queremos. É como ter alguma coisa escapando que nunca tivemos, jamais vamos
ter. Não ter como ter a vida de volta e mudar os desembaraços, ou as indecisões.
Querer o sonho e perder a realidade para o tempo — Estou tão cansada, meu
filho... meu peito não se aquieta... tenho medo de fechar os olhos, você promete
que me acorda... de qualquer sono, qualquer sonho é melhor que dormir para
sempre, a imortalidade da morte.
Fiz tanta coisa que nem sei que fiz, o mundo foi
passando em reviravoltas pelo sol e eu fui junto, se me perguntam por onde
andei enquanto girava, girava e girava com o mundo, nem sei. É o hábito de
girar dançando, se me perguntam se lembro dos homens com quem gozei, nem sei se
gozei, é ridículo pensar nisso às portas da imortalidade, mais cômico é imaginar
que alguém pudesse perguntar. Ninguém pergunta, ninguém chora, todos rezam,
mesmo quem nunca rezou faz o sinal em cruz e move os lábios bem baixinho,
se é para alguém escutar mexe os lábios tão baixinho, temos medo do que vem depois, mas nem todas: Olalla nunca teve esse medo. Desconheço esse depois, não vai me importar muito ou quase nada, não sei e não
me importa ouvir lágrimas — Meu filho, o cigarro...
Naqueles bons tempos, deitei com o coitado do manco,
fui a viúva puta do general, ensinei muito guri o uso das mãos e das palavras
doces, acho que fui boa provadora, não ia além da minha competência, fingir era
outra regra da casa, elogiar, substituir a consciência pelo sossego, cada uma teve
a sua luta.
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