sábado, 15 de setembro de 2012

As cabras-cegas, as aparências e a bolsa tiracolo

Ensaio 06

baitasar

A amizade é difícil de prever entre as pessoas. No começo - tempo do reconhecimento mútuo - é um jogo de cabras-cegas a beira do abismo: dá-se um passo e se anima em não cair, não ser empurrado, precisamos suportar dúvidas e impaciências. Até que construímos algumas pontes frágeis e fica feita a intenção de passear de lá para cá, e até lá.
Adelaide, mulher bonita, inteligente e culta, e solitária. Sèzar, homem bonito, inteligente e culto, e solitário. Uma amizade pouco plausível para esses dias de impulsos violentos e sacolés - picolé guardado em saquinho e engolido sem nenhuma sutileza com a pele plastificada.
Ela lê, ele escreve.
Ela é vermelha, ele é azul.
Amigos, amigos, e as cores à parte.
Os desacordos, as dissonâncias, as confusões não coagulam a amistosidade dos dois, têm a encantação da conivência que não os atormenta com culpas. Até o dia que Sèzar, não se sabe suas razões, ele muito pouco diz o que pensa, prefere escrever, e as palavras escritas têm outros compromissos que as ditas, deu um presente para Adelaide.
Chegou de supetão, bem, isso também é um exagero, como tudo que foi escrito até aqui, a amizade e a cumplicidade entre Adelaide e Sèzar não sofria com dias marcados para visitas, bastava um ter a vontade de rever o outro. Então, ali está Sèzar, parado à porta com um pacote amassado de sovado, embaixo do braço. As mãos nos bolsos da calça, os olhos sorrindo, a boca abre com sua alma, se faz solene — Boa noite, Adelaide.
A mulher retribui o sorriso como uma criança enfeitiçada por tudo e por nada. Caminha até o homem parado a sua porta, sobe na ponta dos pés, lhe dá um beijo na queixada, volta às costas e retorna para sua cadeira de balanço - recordação útil que guarda da avó - e Sèzar entra.
Senta na frente de Adelaide, o presente escondido dentro do pacote descansa no colo. Vê um livro deitado no chão, ao lado da balança — Interrompi a leitura da moça. — faz voz de chateação envergonhada, quase arrependida de nada
—        Não seja bobo. — a moça lhe recapitula a monotonia daquele jogo de confundir a solidão
—        Peço desculpas ao Abelaira, não pretendia roubar a moça de tão ilustre companhia, mas quis entregar com urgência o presente.
Adelaide adora presentes, tanto gosta de comprar, sair à procura, como uma caçadora de tesouros, tanto é gostoso ser apanhada desprevenida, pela delicadeza da lembrança. Saboreia o balanço suave daquele breve silêncio, espera pela iniciativa do entregador
—        Abre... — ela abre os olhos e segura o pacote — Abre, abre... — está mirando Sèzar, aquele jeito é mais que curiosidade, ele brinca com a própria vontade de adiantar-se e contar a surpresa. Rasga com delicadeza aquela epiderme de celulose, o pacote se desfaz em pedaços — O que é isto?
—        Pra você usar!
—        Mas é azul...
—        Às vezes, é preciso ousar e mudar a perspectiva.
—        Obrigada...
Amigos são assim mesmo. Procuram outros jeitos para incomodar nossa acomodação confortável. Gostam de cutucar nossas certezas, com as próprias certezas, desconstruir em outra perspectiva mais lógica, a deles: são os únicos que nos amam de verdade, e partem para sempre como os dias e as noites. Nem tanto, nem sempre...
Adelaide faz novamente, usa e espera o tempo de ir e vir, pensando num presente para Sèzar. Precisa ser diferente, e inesperado, ele está preparado na beirada do abismo para a brincadeira de cabras-cegas. Bastava ter vontade. Estava ansiosa.
Ali está Adelaide parada à porta com um pequeno embrulho nas mãos, uma bolsa a tiracolo, não existem mulheres sem bolsas, se existem é porque elas não existem, a porta se abre nas mãos de Sèzar, os olhos sorrindo junto com os lábios — Boa noite, Sèzar.
Ele se inclina, a beija com delicadeza nos lábios e pede que entre. Fecha a porta enquanto a observa caminhando entre os esboços de rascunhos jogados pelo chão, fragmentos do que não existe nele — Sente-se onde lhe for melhor. — como se não fosse exatamente assim que sempre fez, entre aqueles gritos e silêncios largados no chão, afirmações e negações dele mesmo. Senta na poltrona carnuda do escritor — Um jeito confortável para espalhar desassossego aos amigos e desconhecidos. — Não existe um mundo de amigos e outro de desconhecidos, todos são desconhecidos.
Sèzar vai à cozinha e retorna com um banco sem encosto, um mocho sem hastes
—        Assim é melhor? — senta no banco de madeira, sem apoio para suas costas
—        É... — ela lhe estende a pequena empada com recheio, não vai comer, essa não foi uma pergunta, as perguntas deixam espaço para respostas, o que está feito, já está dito. Ele morde a empada vazia, quase sem recheio, as aparências imaginadas não se mostram de verdade, é preciso dar dentadas, fazer doer em outros — O que é isto?
—        Leia você, mesmo... — ele pega os bilhetes na mão — Duas entradas para um jogo vermelho, no meio dos vermelhos... mas eu sou azul...
—        Às vezes, é preciso ousar e mudar a perspectiva, colorir a realidade que não existe.
—        Não tenho nada vermelho.
—        Isso não é problema... — retira da bolsa tiracolo uma camiseta vermelha, agora, já tem!
As cabras-cegas, as aparências e a bolsa tiracolo.

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