Ensaio 06
baitasar
A amizade é difícil de prever entre as pessoas. No
começo - tempo do reconhecimento mútuo - é um jogo de cabras-cegas a beira do
abismo: dá-se um passo e se anima em não cair, não ser empurrado, precisamos
suportar dúvidas e impaciências. Até que construímos algumas pontes frágeis e
fica feita a intenção de passear de lá para cá, e até lá.
Adelaide, mulher bonita, inteligente e culta, e
solitária. Sèzar, homem bonito, inteligente e culto, e solitário. Uma amizade
pouco plausível para esses dias de impulsos violentos e sacolés - picolé
guardado em saquinho e engolido sem nenhuma sutileza com a pele plastificada.
Ela lê, ele escreve.
Ela é vermelha, ele é azul.
Amigos, amigos, e as cores à parte.
Os desacordos, as dissonâncias, as confusões não
coagulam a amistosidade dos dois, têm a encantação da conivência que não os
atormenta com culpas. Até o dia que Sèzar, não se sabe suas razões, ele muito
pouco diz o que pensa, prefere escrever, e as palavras escritas têm outros
compromissos que as ditas, deu um presente para Adelaide.
Chegou de supetão, bem, isso também é um exagero,
como tudo que foi escrito até aqui, a amizade e a cumplicidade entre Adelaide e
Sèzar não sofria com dias marcados para visitas, bastava um ter a vontade de
rever o outro. Então, ali está Sèzar, parado à porta com um pacote amassado de
sovado, embaixo do braço. As mãos nos bolsos da calça, os olhos sorrindo, a
boca abre com sua alma, se faz solene — Boa noite, Adelaide.
A mulher retribui o sorriso como uma criança
enfeitiçada por tudo e por nada. Caminha até o homem parado a sua porta, sobe
na ponta dos pés, lhe dá um beijo na queixada, volta às costas e retorna para
sua cadeira de balanço - recordação útil que guarda da avó - e Sèzar entra.
Senta na frente de Adelaide, o presente escondido
dentro do pacote descansa no colo. Vê um livro deitado no chão, ao lado da
balança — Interrompi a leitura da moça. — faz voz de chateação envergonhada,
quase arrependida de nada
— Não
seja bobo. — a moça lhe recapitula a monotonia daquele jogo de confundir a
solidão
— Peço
desculpas ao Abelaira, não pretendia roubar a moça de tão ilustre companhia, mas
quis entregar com urgência o presente.
Adelaide adora presentes, tanto gosta de comprar,
sair à procura, como uma caçadora de tesouros, tanto é gostoso ser apanhada
desprevenida, pela delicadeza da lembrança. Saboreia o balanço suave daquele
breve silêncio, espera pela iniciativa do entregador
— Abre...
— ela abre os olhos e segura o pacote — Abre, abre... — está mirando Sèzar,
aquele jeito é mais que curiosidade, ele brinca com a própria vontade de
adiantar-se e contar a surpresa. Rasga com delicadeza aquela epiderme de
celulose, o pacote se desfaz em pedaços — O que é isto?
— Pra
você usar!
— Mas é
azul...
— Às
vezes, é preciso ousar e mudar a perspectiva.
— Obrigada...
Amigos são assim mesmo. Procuram outros jeitos para
incomodar nossa acomodação confortável. Gostam de cutucar nossas certezas, com
as próprias certezas, desconstruir em outra perspectiva mais lógica, a deles:
são os únicos que nos amam de verdade, e partem para sempre como os dias e as
noites. Nem tanto, nem sempre...
Adelaide faz novamente, usa e espera o tempo de ir e
vir, pensando num presente para Sèzar. Precisa ser diferente, e inesperado, ele
está preparado na beirada do abismo para a brincadeira de cabras-cegas. Bastava
ter vontade. Estava ansiosa.
Ali está Adelaide parada à porta com um pequeno
embrulho nas mãos, uma bolsa a tiracolo, não existem mulheres sem bolsas, se
existem é porque elas não existem, a porta se abre nas mãos de Sèzar, os olhos
sorrindo junto com os lábios — Boa noite, Sèzar.
Ele se inclina, a beija com delicadeza nos lábios e
pede que entre. Fecha a porta enquanto a observa caminhando entre os esboços de
rascunhos jogados pelo chão, fragmentos do que não existe nele — Sente-se onde
lhe for melhor. — como se não fosse exatamente assim que sempre fez, entre
aqueles gritos e silêncios largados no chão, afirmações e negações dele mesmo.
Senta na poltrona carnuda do escritor — Um jeito confortável para espalhar
desassossego aos amigos e desconhecidos. — Não existe um mundo de amigos e
outro de desconhecidos, todos são desconhecidos.
Sèzar vai à cozinha e retorna com um banco sem
encosto, um mocho sem hastes
— Assim
é melhor? — senta no banco de madeira, sem apoio para suas costas
— É... —
ela lhe estende a pequena empada com recheio, não vai comer, essa não foi uma
pergunta, as perguntas deixam espaço para respostas, o que está feito, já está
dito. Ele morde a empada vazia, quase sem recheio, as aparências imaginadas não
se mostram de verdade, é preciso dar dentadas, fazer doer em outros — O que é
isto?
— Leia
você, mesmo... — ele pega os bilhetes na mão — Duas entradas para um jogo
vermelho, no meio dos vermelhos... mas eu sou azul...
— Às
vezes, é preciso ousar e mudar a perspectiva, colorir a realidade que não
existe.
— Não
tenho nada vermelho.
— Isso
não é problema... — retira da bolsa tiracolo uma camiseta vermelha, agora, já
tem!
As cabras-cegas, as aparências e a bolsa tiracolo.
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