quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Um sarau na biblioteca

Becos sem saída - Penumbras e Descartes


I
baitasar
Aquela mão manchada e enrugada vindo em minha direção é a única coisa em movimento na biblioteca, não é apenas um deslocamento anatomista, carrega o silêncio que dissimula as vontades. Falsa. Fingida. Ciúmes. Por estas paredes repletas de livros, quase nada se move. Até mesmo o ar, alvorotado em sua teimosia, circula com sobriedade.
Os livros não são rebeldes, queremos apenas fazer as fantasias de mentirinhas ou as alucinações reais sobrevirem no pensamento do belo, meigo e inexperiente leitor. Estamos preocupados com a vida das mentes ingênuas, sem consciência da própria importância: seu papel de guerrilheiras.  Nossa razão de existir é acordar do pesadelo de existir. Mas, por enquanto, estou posto à mesa em atitude de espera. Gosto de me imaginar um operário da consciência. Um livro impresso para ser tocado, observado, até que o meu cheiro de tinta corrompa as entranhas do leitor. É quando somos únicos, vasculhados pelas esquinas e vírgulas, esvaziados dos mistérios analíticos, apenas os dois, frente a frente, sem lutas, uma entrega dialética serena ao pensamento do outro, você e eu. Longe dos críticos e plantões alfandegários.
Hoje, aconteceu a reunião dos descartes e eu fui alvo da discórdia entre as guardadoras de livros. Marosca queria me descartar, Marvadaluz sentia pena de me perder e a Memoriosa não conseguia se decidir. Por agora, não vou para o desmanche da reciclagem, ganho tempo. Mas haverão de me pegar e me dar um fim, mais dia menos dia. A morte é o destino da vida. Por enquanto, no mundo reconhecido do braço-de-ferro, coisa alguma se atreve a azedar a autoridade suprema que decreta a privação de imaginar sonhos impossíveis, não sei o que é pior, se um livro velho e ingênuo desinformado ou velho canalha, mal-intencionado, ou mal-humorado arrependido.
Eu sigo contando a minha própria história que é a biografia de tantos personagens. Gente sem o brilho refletor dos heróis com olhos azuis. Ninguém se inspira nos miseráveis, homens e mulheres desprotegidos, arrepiados de frio e enrugados de fome, desdentados e com os pés nus, meninos e meninas de rua abandonados a sorte dos semáforos. Heróis do quê? Submersão do menos de tudo. Os trabalhadores assalariados e as domésticas não têm espaço na galeria dos protagonistas extraordinários. O cotidiano não produz heróis. O branco do olho se desvia de contemplar de frente a olhada dos pedintes. Os semideuses de hoje usam o microfone e as câmeras para defenderem o direito de consumir tudo e todos. Querem vassalagem. Tudo bem, to me sentindo panfletário.
Fui erguido do móvel de madeira pelas mãos da Marosca, ela me observava. Seus olhos revelavam dúvida, talvez mude de ideia sobre o meu descarte. Abriu minha cobertura e leu — Doado pelo...
Estive em suas mãos até que desistiu e colocou meu corpo na prateleira de aço. Deitado. Destino do acaso. Se eu pudesse eu mudaria meu destino. Viajando de mão em mão sem posse de dono. Emprestado pelo mundo. Servindo de leitura até a exaustão do meu corpo, quando minhas folhas enfeixadas ficariam esparramadas em lugar nenhum. Apenas sonho. Cinzas espalhadas, ideias esparramadas. Uma a uma elas vão saindo. Hora de fechar a biblioteca.
Após a reunião sem decisório terminante, restara apenas aquela biblioclasta que me queria no grande baralho do acervo, sem saber bem por que. As luzes se apagam sempre nos mesmos minutos. Nosso horário de recolher. A fechadura se move e a Marvadaluz pensa que nos tranca. Não tenho vontades de pedir ajuda. Os passos são arrastados de sonolência. Espero o sossego. Vai ficando friozinho. Acomodo-me e tento dormir. Não consigo. Nesta hora em que o dia vai nos deixando aos pouquinhos, existo na ansiedade. A escuridade vem para iluminar as fantasias. O silêncio e a escuridão não são ameaçadores, são oportunidades. Busco assunto com algum acabrunhado pela falta de descanso de sono — Olá, alguém já acordado?
As luzes se acendem como um estalar da língua no céu da boca e o aplauso de triunfo das palmas batidas com as mãos umas nas outras — Aqui!
—        Onde?
—        Olha para o lado...
A porta entreaberta da imaginação se abre de par em par. As cortinas esvoaçam e ameaçam sair voando livres. Sinto a perdição de cobiçar tanta liberdade. Estreito meu olhar para as janelas, elas seguem fechadas. Vem a tentação de andar nas estrelas. Nas noites é mais fácil caminhar e espiar as cenas, as canções de olhar o mundo. Sair da solidão, cantando o que se viu por aí.
Surgem Baltasar Sete-Sóis e Blimunda, saídos das estantes de aço. Ausentam-se do memorial e caminham entre espreguiço e suspiros. O homem, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala, foi mandado embora do exército, já não tinha serventia de soldado, e a mulher, de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra
—        Se as vontades são nuvens fechadas, quem sabe se não ficaram presas nestas, tão escuras e grossas que nem o próprio sol se vê por trás delas, e Blimunda respondeu, Pudesses tu ver a nuvem fechada que dentro de ti está, Ou de ti, Ou de mim, pudesses tu vê-la, e saberias que é bem pouco uma nuvem do céu comparada com a nuvem que está dentro do homem
—        Hein, vocês dois aí, voltem para as suas páginas desviradas e farelos de pão. Por certo, essa determinação em que estão metidos de construir máquina para o homem voar, haveria de ter alguma lógica se o homem carregasse penas em seus membros. Como não as carrega, não foi feito para voar.
Blimunda e Baltasar o desconhecem. Apenas me lançam um olhar da mais absoluta impertinência, entram nas linhas presas e enfeixadas da obra literária, vão prosseguir com seu itinerário já escrito. Volto meus olhos para o homem que se parece com o mau humor, se fosse o mau humor ter apenas uma cara
—        E depois rezinga da fama de casmurro. — retruco e continuo minha atenção na estante dos brasileiros, está por lá, esse homem metido consigo e com ares em aparato de fidalgo que se transfigura em carne e osso
—        Hein, o senhor não tem problemas caseiros para resolver, contraponho na intenção de fazer o outro se calar
—        Tenho-me feito esquecer — responde esse casmurro quase recitando para si mesmo
—        Não se aborreça, senhor, com essas pequenas coisas, todos passam, em algum dia de suas vidas, pelas mãos de uma Capitu, e elas não escapam das assombrações de um desamor ensimesmado.
Sinto pena do homem. No instante seguinte já estou a acomodar tudo
—        Engraçado como todo corno nos comove, mesmo que seja apenas uma possibilidade. O dito do povo segue sendo realístico, quem tem cu tem medo, repito sempre na minha voz de confidências. Sussurrada. Afinal, nos ouvidos doem mais que nos olhos. Deixo transparecer minha vontade de pacificar. Sou um pacificador com as funções próprias do cargo de devoto da venerável Rita.
Essas noites de biblioteca encantada duram o tempo da irritação ou da feitiçaria, as personagens se desfilam em sequência, vêm e vão, o embarcar e sair é aloucado, às vezes parecem cansados como os viajantes que chegam depois de uma longa caminhada. Pedem por um banquinho e ficam a falar e contar seus causos. Outros tendem para a loucura dos comportamentos desmiolados e exagerados. Não existem regras nem paradas, apenas a redenção porque não há mal que resista ao bem
—        Deixaram os senhores entrarem feito quem entra numa goela de bicho e fecharam a queixada, não foi mesmo?
—        Bem assim, senhor Manuel, respondo ao senhor que versava com o padre Nando, que não é mais padre, sobre fugas e revoluções por dentro e fora da gente. Assustados com minha intervenção saem juntos, pulam o muro, embrenham-se pelo coqueiral do Quarup
—        Vocês falam, falam e falam, mas queria-os sobrevivendo nos cus de Judas! Com balas por todo lado...
A noite noturna está apenas em seu começo e a sala já está abarrotada com os personagens saídos da cachola dos inventores. Voamos invisíveis no aparelho voador de Baltasar Sete-Sóis, enquanto os escultores dos personagens pensam que decifram nossos segredos mais íntimos, em obstinação de entenderem a si próprios. Coitados, a nossa ficção não acompanha o seu mundo de insensatez e delírios, as histórias contadas pela fantasia não acompanham aquilo que existe, não conseguem imaginar no tempo da realidade.
Capitu e Bentinho passam bem pertinhos, ela se recusa dizer mais que os seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. O ex-seminarista continua por esses anos atrás de uma única resposta
—        Afinal, ela o traiu ou não? — eu, da minha parte, Dom Casmurro, há tempos desisti de usar das minhas certezas lógicas quando navego em fluidos fêmeos. Não se perde tão pouco tempo com desconfianças de atormentado. Ninguém me faz dono, nem deveria quer se fazer de dono. Largo o ciumento atormentado, vejo Anton Makarenko e os colonistas gorkianos dobrando uma das esquinas de aço. Corro para chegar no tempo de uma rápida conversa
—        Makarenko! — ele parece não me ouvir, mas não desisto — Makarenko!— para e se volta, eis o homem, esse não se deixa influir por caras feias, vozes aterradoras anunciando o fim da história e que tudo já está decidido. É um professor fisicamente esbelto, com o cabelo cortado rente, os óculos fixados sobre o seu nariz um tanto grande e embora de estatura média, impondo-se aos mais fortes através de gestos exatos.  Sua voz perfeitamente modulada, como a de um bom ator, fala com a maior cordialidade, sem nenhuma vaidade, mantendo um sorriso bondoso nos lábios
—        Professor...
—        Sim, o que o senhor deseja?
—        Tudo em ordem, camarada comandante?
—        Nos nossos campos, as colheitas há muito que já foram recolhidas, a debulha terminada, enterrado para armazenamento o que era necessário, já enchemos as oficinas de matéria-prima, recebemos os novatos. O que mais haveria de querer? de repente, por entre um silêncio momentâneo, que todos juram proposital, Maiakovski faz a sua entrada triunfal
—        E de que outro modo seria, perguntam os que não se escondem, mas não se deixam ver
         Ó delicados!
         Vós que pousais o amor sobre ternos violinos
         ou, grosseiros que o pousais sobre os metais!
         Vós outros não podeis fazer como eu,
         virar-vos pelo avesso
         e ser todo lábios.
Aqui está ele, gigantesco, incompreensível, insolente, com sua blusa amarelo-limão, que lhe caí no meio dos quadris e usa sem cinto com uma grande gravata preta. Hoje, todos estão em alvoroço, quase não se param para um pouco de prosa. Está um entra e sai danado, peço que me perdoem, mas não posso acalmar a efervescência de tantas personalidades e cultura
—        E você?
Chego à frente de um cavaleiro com a armadura toda branca; só uma tirinha negra faz volta pelas bordas; no mais é alva, bem conservada, sem um risco
—        Eu sou Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro Selimpia Citeriore e Fez!
—        Aaah...
—        Eu não existo!
—        Cada um que se vê! E como é que está no exército de Carlos Magno, se não existe?
—        Com força de vontade, responde o cavaleiro inexistente, e fé em nossa santa causa!
—        Vou acompanhar-te, respondo ao nobre cavaleiro, num ímpeto de velho guerreiro. Tenho minha santa de devoção e, justamente agora, por certo, minha causa não será descansar esse pouco que me resta. Quero esgotar minhas possibilidades. Virar-me do avesso. Espalho meus pensamentos e me deixo envolver pela amizade da cegueira na falta de luz, quero silenciar as meias-palavras. Sentir o perfume das gardênias. Caminho lado a lado, por aí, abraçado ao escuro. Quero narrar a demência de existir, lutar por poder e morrer por nada. Adoro ver estrelas na escuridão. O provisório realístico da imaginação.
O entra e sai se mantém por toda a vida noturna. Um sarau de pessoalidades sonhadoras e amorosas.

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