sábado, 29 de setembro de 2012

O faz-de-conta da fofoca


Becos sem saída - Penumbras e Descartes
II
baitasar
Vencemos outra noite na mais absoluta pertinência de sonhos. E é apenas isso quando o sonho nos pertence, uma delícia que não se desfaz e vira o que a gente gosta. Amanhece.  A vida como ela é recomeça, outras emoções e embolsamos o título de bem-comportados. O coração esfria. A imobilidade do abandono me alcança, enquanto as janelas fechadas conservam as cortinas sem movimentos, com os braços estendidos para os lados, foram deixadas abertas e são tingidas pelo sol com manchas amarelas. O desânimo só faz aumentar. Os véus com estampas de crianças azuladinhas que parecem brincar suam e escorrem ao longo das basculantes. Os panos permanecem em pé, seguros por pequenas roldanas, costuradas em suas malhas. Prisioneiros dos trilhos de alumínio, todos temos nossos caminhos de ferro. A luz passa sem vigor. O cheiro de mofo e o bolor do cotidiano enchem corredores e prateleiras. Isso aqui é muito chato quando as claridades afastam as quixotices. O estalar das manhãs é estilhaçado por passos metódicos, insistentes, miseráveis e desprezados. Parecem cansados. Desmontados. Chegam como árvores desbastadas, só em esqueletos. Paus sem vida. Penso que podem ser estes a pegar-me, haverão de dar-me um fim. Tenho insistência nisso, não consigo evitar, é a consciência do acabamento inevitável. Quando for reaproveitado não serei mais eu, mas outra coisa. Sem memória e sem história, exatamente isso: uma coisa  qualquer, útil e sem graça, terei me perdido a diferença que faço agora. Lixo reciclado.
O primeiro sinal da campainha estridente faz avançar o esquadrão de elite às zonas de combate. Saem das trincheiras com seus mosquetões nas mãos e as baionetas caladas. Avançam silenciosos, os mais cansados pelo tempo perdido já não rezam, nem perderam a fé em dias melhores, que sabem que não viram, os mais recentes – nem por isso, menos cansados – cochicham que daqui para frente essa tal impassibilidade só faz piorar, enquanto aguardam a bala perdida que irá arrancar algo de si, quem sabe a vida. É uma pena, esses jovens deixaram de correr riscos reais pelo tédio da conformidade, da gordura, das doenças, das varizes: envelheceram do coração antes dos músculos e das rugas.
O andamento fantoche cresce e se aproxima. Sei do que é feito: tem o caminhar da meiga senhora que nos detesta, mas precisa conviver com seus desafetos. Foge das crianças como o diabo da cruz, mas precisa manter aparências de carinho. Lê resenhas e faz de conta que leu o livro. Não me lembro de algum contato mais íntimo que o da rejeição desta senhora. Reconheço a voz e a andança, jamais senti um toque amoroso ou nervoso nos seus passos arrastados. Ela vem com as vontades de não vir, pretensões frias ou mortas. Espera aposentação honrosa do serviço oficial. Junte às outras duas organizadoras e temos duas – como se existir fosse não existir – lhe falta a amorosidade que foi perdendo em conta-gotas. Eu sei que meu julgamento é duro e injusto, me sinto mais penoso no início das manhãs. Penso às vezes com agrado nas possibilidades do futuro, mas são raras vezes. Vocês precisam entender o sabor amargoso de tudo que está dito, é difícil olhar o mundo daqui, esquecido nestas estantes. Não quero despedidas nem ficar choramingando, mas é como dormir com os pés para fora da cama e acordar com dor na garganta, irritada por não conseguir evitar de esticar as pernas para fora das cobertas
—        Silêncio! — está bem na horinha da visitante carrerista. Torno a pedir silêncio. Prendo a respiração. A chave entra no fecha portas e gira com esforço, reconheço aquele falar baixo e com mau humor — Merda... ainda descubro quem mudou esta fechadura.
Não é preciso ser um gênio para perceber sem detença que o humor dos resmungos da Marosca não mudou. Num esforço sobrenatural tento erguer-me, mas é tudo em vão. Permaneço deitado de costas, desencostado, fechado e inútil. Não entendo esses que gostam da utilidade ineficiente de ficarem estendidos sem uso de leitura, porcelanas decorativas entocadas em si mesmas, novinhos e intocados, fazendo de conta que resistem ao bolor, prefiro o manuseio que amarrota e me aquece. Não consigo enxergar o jardim sem ver as flores, mesmo que ainda não tenham sido plantadas pelo jardineiro – ele perdeu as mãos e os olhos, foram arrancados pela intolerância da gula descontrolada. Escuto do paisagista suas histórias de amor preparando a terra, os cuidados da semeadura, os carinhos que derramam as águas, a alegria de ver germinar as folhas e flores, sempre com palavras de carinho. O descolorido acabou invadindo bárbaras e donzelas velhas, arrependidas e amargas
—        Bom dia, meus queridos livros. — cinismo, tenho apetite de gritar, mas somente consigo olhar com olhos de enviesado. Pareço jogado as pressas, em qualquer lugar. Sem serventia, nem para uma investigação científica do passado. Estacionado pelo descaso, pronto para ser descartado. O tempo passa para todos, mas parece que alguns conseguem resistir um tempinho a mais. Na prateleira expositora resta à fatalidade de viver resistindo um dia a cada vez — A resistência de alguns consegue mantê-lo em pé... — nem bem chega e me procura sem nenhuma solidariedade, apenas ameaça que o fim se aproxima. Sinto o seu hálito da morte. Mal o dia recomeça e preciso resistir aos maus humores da solidão, preciso da coragem pela vida.
Quase sempre sinto falta de ar, essas cortinas ainda me acabam. Acho que tenho asma. A marosca sem diploma de curiosidade e alegria culpa a luz pelo nosso amarelecimento, vivemos assim, sem direito aos banhos diários de sol, envelhecendo do mesmo jeito. Eu a culpo pela falta de alegria e imaginação. Outras vezes, sinto cócegas na garganta, as poeiras me atacam. Peço a cadeiruda para abrir as janelas e ser tocado pelo macio das manhãs. Ela nem chega até as prateleiras. Não sou ouvido ou se faz de surda — A senhora poderia fazer a gentileza de permitir a ventania do mundo lá fora?
Nunca não me dá ouvidos, e nada acontece. Senta atrás da sua mesa. Tem o olhar perdido na porta, imagina quem lhe perturbará por primeiro, fica imobilizada naquela manhã ensolarada e quente. Mantêm as mãos sobre a mesa, algemadas pelos dedos entrelaçados. Move lentamente um dos pés com pequenas batidas no piso de pedra, acompanha o ritmo lento da batucada do próprio coração. Fica assim, em prontidão inútil, com as costas eretas, respirando abafado pela boca.
O segundo sinal autoriza a horda dos bárbaros entrar na cidadela. Os corredores se avolumam com o som confuso e prolongado de muitas vozes. A nossa guardiã matinal acelera o ritmo das suas batidas no chão. Gritos e assobios. Alegrias. Alaridos. O tempo viaja pelo mundo a fora, até que o silêncio retorna assombrado, os corredores estão esvaziados, outros passos sobem a escadaria. Solto um suspiro e aposto comigo mesmo que vamos ter inspeção bem cedinho — Bom dia, queridinha.
—        Bom dia, Marosca!
—        Passeando tão cedo?
—        Vim fazer uma visitinha. — ui, nunca foram de tantas gentilezas uma com a outra, tem coisa vindo por aqui
—        No troco do quê? — a Marosca até parece que ficou escutando meus resmungos, como criança manhosa que só dá ouvidos ao que lhe interessa
—        Mas menina, calma, não há outro interesse que o prazer da visita. — o cenismo da Focinhuda brota como em jorros de vômitos incontroláveis. Tenho suspeita que o cinismo é o momento supremo da diarréia humana, desmobiliza as inteligências humanas pelo enfraquecimento e a perda dos líquidos da ternura, tudo vira vivência sacana
—        O comenta e não diz às claras, o faz-de-conta da fofoca, é que você quer um lugar na biblioteca. — minha nossa, nunca ouvi a Marosca tão direta, acho que essa daí não vai conseguir acomodamento em alguma estante, sem uma boa guerrilha de vaidades e interesses pessoais, outro bibelô decorativo
—        Não mesmo, isso é fofoca, Marosca. Vim na procura de leitura. — faço essa transcrição para que vocês comprovem que a ficção nem se aproxima das realidades humanas
—        Precisas de ajuda?
—        Não te incomoda, nem levanta desta cadeira confortável, vou seguir ao acaso dos dedos e olhos. — penso que esta pode ser a minha chance. Tento erguer-me das costas e ficar em pé, quem não é visto nunca é lembrado. A danada entra pelo corredor dos portugueses e se põe a bisbilhotar Camões, Fernando Pessoa, Saramago, Abelaira, Lobo Antunes. Essa zinha leva jeito de boa nas leituras. Abandona os lusos e invade com seu aroma os corredores latinos das Américas espanholas, Borges, Garcia Márquez, Vargas Llosa, Benedetti, Onetti, Arturo Uslar, Neruda, Lezema Lima, não parece muito feliz. Sai e volta para os didáticos, tenho calafrios. Desiste. Dou um profundo suspiro. A inspetora das brochuras dirige seus passos para o mundo imaginativo dos brasileiros
—        Estou aqui, estou aqui. — tenho a fantasia de gritar, mas ela está lá, entre Jorge Amado, Bilac, os índios de Iracema e os olhares de Capitu para Bentinho. Os passos são indecisos, mas vêm. Ela vê e me pega. Sinto seus dedos carnudos e seu hálito de álcool. Folheia minhas páginas e me examina, sou o seu alvo. Olho em seus olhos, mas me larga em pé e se põe a elogiar o Clube do Beijo. Não se contém até achá-lo — Vou levar este para minha filha.
—        Boa escolha, as meninas fazem fila para levá-lo.
Bem, não foi desta vez, mas o dia apenas começa. E não engrena, poucas visitas. Já vamos lá pelo meio da manhã quando a chefe jumbeba recebe visita de fofoca da Arlete — Amiga, a Focinhuda tem oferecido muitas palavras sobre a biblioteca.
—        O que essazinha ta falando?
—        Não sei se devo falar...
—        Começou e para pelo meio? Tenha dó, né Arlete?
—        Tem dito que isso aqui é um lugar de livros velhos, jornais do passado, leitores desinteressados e de guarda-livros diminuídas no seu desempenho. Um canto vazio de gente e depósito de velharias. — espicho o olho para Marosca, vejo um pequeno treme-treme ali onde ficam os pés-de-galinha. A tal zinha chegou ao alvo, sabe... e deixa pra tirar os proveitos em outra ocasião, é hora da retirada
—        Mais nada? — insiste a Marosca
—        Bem...
—        Bem o quê? Desembucha logo...
—        Queridinha, deixa pra lá, só pra não sair de mãos abanando, vou levar um livro. — a trombuda faz em leve sorriso de vitória, vai direto para os lados adolescentes. Passa os dedos displicentemente pelos seus corpos, parece entediada. Caminha entre as letras dos adultos e quando me passa sinto um calafrio, essa é alma do outro mundo. Vai em frente até os transnacionais, pega um depois do outro até se decidir
—        Marosca, você já leu?
—        Não, mas já ouvi coisas de bem e outras de mal. — queridinha, essa daí só lê as revistas semanais das fofocas
—        Vou levar este aqui. — vai para fazer o registro, passa bem pertinho, sinto seu perfume congênito de podre. Esta manhã não está rendendo.
Depois do desabrochar do dia, a Marosca dá de mão em mim e sai, nem vê, me coloca embaixo do braço para fechadurar a porta. Deixa um bilhete, Já volto. Minha curiosidade não é maior que o sufoco que estou passando. Penso que vai ao banheiro e vou ajudar o tempo a passar. Caminha em um dos pés, na sua ponta, o outro vai por compromisso, mas é o braço que me leva. Agora estou em uma das mãos. Nunca sei onde fica a direita ou esquerda. Mas de qualquer jeito fico agradecido que me tenha livrado das umidades do sovaco. Vez que outra faz jeito de gemido, o muxoxo não sai, fica na intenção. Lá estão os aposentos com os vasos sanitários. Mas que nada, passa direto no desvio dos banheiros e segue para o prédio dos administrativos. Sigo firme entre suas mãos, um enfeite. Bate levemente em uma das portas e entra
—        Com licença, bom dia!
—        Bom dia, Marosca.
—        O Diretor tem intenção de mudanças lá pela biblioteca? — essa se vai direto ao assunto com propósito de amedrontar. Tem no olhar o sinal de ataque e nas mãos a arma. Rezo para ser largado. A conversa de guerra começa. Minhas preces são atendidas, sou desprezado sobre a mesa da comandância. Respiro em alívio. O sujeito diretor está cheio de coragem, mesmo sendo bem pequenino, acho que são os seus olhos bem grandes e a voz fininha e inaudível que amedrontam. Não há harmonia, tudo nele é desconfortável. A Marosca não se ia nem se vinha, permanecia em pé, em atitude de guerra
—        Sim.
—        Sim, o quê?
—        Sim, vai haver mudança. — fecho os olhos e paro de respirar. Ela não diz nada, sai manca de dor, e nos seus atacamentos atormentados... me esquece. Não bate na porta por detalhe. Fico no desamparo, ao alcance do anão de olhos gigantes. Faço-me de morto. Não sei quanto do meu tempo se passou, até ouvir a voz do desarmônico
—        Focinhuda, entra um instante.
—        Sim?
—        Por que tanta vontade de cuidar de livros?
—        Sonhos de criança.
—        O que tem por lá, além de folhas amarelas e silêncio?
—        Nada demais.
—        Eu não entendo.
—        Temos uma manca de dor, a Marosca; outra cega de visão, a Marvadaluz; e a última, que perde as memórias que esquece, a Memoriosa. Fazem que atendem e todos mentem que acreditam. — e daí, tenho vontade de lhe perguntar
—        E daí... nada. Eu quero ir para a biblioteca!
—        Mas...
—        Esse foi o acordo, Augusto.
—        Um outro cantinho...
—        Não. A biblioteca pelo meu voto, não tem negociação. — e eu com isto, não tenho nada a dizer e nem quero ouvir as confidências. Quero me fazer de surdo, cego e mudo. Continuo imóvel. Esse tal nem se faz de tolo. Jogo de apoios e réplicas. A rapariga gulosa e de focinho grande vai sair quando se põe de olhos e mãos em mim
—        Augusto, este livro é da biblioteca?
—        A Marosca deve tê-lo esquecido.
—        Deixa comigo, vou devolver.
—        Tudo bem, mas sem mais confusão. — quando sinto o aperto da minha carcereira, não posso evitar a lembrança do lobo mau e seu focinho de cheirar e devorar. Apenas, que nessa história não tem nenhuma garotinha de chapéu, muito menos vermelho, mas peçonhas mortais. Coitado do guará será devorado pela avozinha, uma jararaca-verde. Nenhuma chance o coitadinho tem. Morre engolido por inteiro. É bebido e soluçado sem qualquer lágrima. O sol quente penetra, iluminando esse espetáculo de nervos de aço. A lei do bosque desencantado e das bruxas que moram no casarão mal-assombrado prevalece. Sinto calafrios.
Sou agarrado por garras vigorosas, sem chance de reclamar. Lá vou para o sovaco desta outra, sina de livro sem passaporte de serventia imediata, sem textos de autoajuda, sem figuras. Desta vez, antes de voltar sou carregado para o banheiro. Sou largado no apoio do papeleiro. Quero olhar para os lados, mas não posso, a jararaca ergue as duas tampas, sobe as saias, desce a calça e se fica com os pés sobre a louça e urina e geme de aliviada. Bom, pelo menos dos males o menor. Sobe a calça e desce as saias depois das secaduras. Lava as mãos e sai esquecida de mim. Não acredito, fico neste caos de cheiros e umidades. Nem a descarga foi capaz de apertar. Descuidada. Insana. Fofoqueira. Cadeiruda. Focinhuda.

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42 - Um sarau na biblioteca 

44 - Um sarau no ônibus

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