Becos sem saída - Penumbras e Descartes
II
baitasar
Vencemos
outra noite na mais absoluta pertinência de sonhos. E é apenas isso quando o
sonho nos pertence, uma delícia que não se desfaz e vira o que a gente gosta.
Amanhece. A vida como ela é recomeça, outras
emoções e embolsamos o título de bem-comportados. O coração esfria. A
imobilidade do abandono me alcança, enquanto as janelas fechadas conservam as
cortinas sem movimentos, com os braços estendidos para os lados, foram deixadas
abertas e são tingidas pelo sol com manchas amarelas. O desânimo só faz
aumentar. Os véus com estampas de crianças azuladinhas que parecem brincar suam
e escorrem ao longo das basculantes. Os panos permanecem em pé, seguros por
pequenas roldanas, costuradas em suas malhas. Prisioneiros dos trilhos de
alumínio, todos temos nossos caminhos de ferro. A luz passa sem vigor. O cheiro
de mofo e o bolor do cotidiano enchem corredores e prateleiras. Isso aqui é
muito chato quando as claridades afastam as quixotices. O estalar das manhãs é estilhaçado
por passos metódicos, insistentes, miseráveis e desprezados. Parecem cansados.
Desmontados. Chegam como árvores desbastadas, só em esqueletos. Paus
sem vida. Penso que podem ser estes a pegar-me, haverão de dar-me um fim. Tenho
insistência nisso, não consigo evitar, é a consciência do acabamento
inevitável. Quando for reaproveitado não serei mais eu, mas outra coisa. Sem
memória e sem história, exatamente isso: uma coisa qualquer, útil e sem
graça, terei me perdido a diferença que faço agora. Lixo reciclado.
O primeiro sinal da campainha estridente faz
avançar o esquadrão de elite às zonas de combate. Saem das trincheiras com seus
mosquetões nas mãos e as baionetas caladas. Avançam silenciosos, os mais
cansados pelo tempo perdido já não rezam, nem perderam a fé em dias melhores, que
sabem que não viram, os mais recentes – nem por isso, menos cansados – cochicham
que daqui para frente essa tal impassibilidade só faz piorar, enquanto aguardam
a bala perdida que irá arrancar algo de si, quem sabe a vida. É uma pena, esses
jovens deixaram de correr riscos reais pelo tédio da conformidade, da gordura,
das doenças, das varizes: envelheceram do coração antes dos músculos e das
rugas.
O andamento fantoche cresce e se aproxima. Sei do
que é feito: tem o caminhar da meiga senhora que nos detesta, mas
precisa conviver com seus desafetos. Foge das crianças como o diabo da cruz,
mas precisa manter aparências de carinho. Lê resenhas e faz de conta que leu o
livro. Não me lembro de algum contato mais íntimo que o da rejeição desta
senhora. Reconheço a voz e a andança, jamais senti um toque amoroso ou nervoso nos
seus passos arrastados. Ela vem com as vontades de não vir, pretensões frias ou
mortas. Espera aposentação honrosa do serviço oficial. Junte às outras duas organizadoras
e temos duas – como se existir fosse não existir – lhe falta a amorosidade que foi
perdendo em conta-gotas. Eu sei que meu julgamento é duro e injusto, me sinto
mais penoso no início das manhãs. Penso às vezes com agrado nas possibilidades
do futuro, mas são raras vezes. Vocês precisam entender o sabor amargoso de
tudo que está dito, é difícil olhar o mundo daqui, esquecido nestas estantes. Não
quero despedidas nem ficar choramingando, mas é como dormir com os pés para
fora da cama e acordar com dor na garganta, irritada por não conseguir evitar
de esticar as pernas para fora das cobertas
— Silêncio! — está bem na horinha
da visitante carrerista. Torno a pedir silêncio. Prendo a respiração. A chave
entra no fecha portas e gira com esforço, reconheço aquele falar baixo e com
mau humor — Merda... ainda descubro quem mudou esta fechadura.
Não
é preciso ser um gênio para perceber sem detença que o humor dos resmungos da
Marosca não mudou. Num esforço sobrenatural tento erguer-me, mas é tudo em vão. Permaneço
deitado de costas, desencostado, fechado e inútil. Não entendo esses que gostam
da utilidade ineficiente de ficarem estendidos sem uso de leitura, porcelanas
decorativas entocadas em si mesmas, novinhos e intocados, fazendo de conta que
resistem ao bolor, prefiro o manuseio que amarrota e me aquece. Não consigo
enxergar o jardim sem ver as flores, mesmo que ainda não tenham sido plantadas pelo
jardineiro – ele perdeu as mãos e os olhos, foram arrancados pela intolerância
da gula descontrolada. Escuto do paisagista suas histórias de amor preparando a
terra, os cuidados da semeadura, os carinhos que derramam as águas, a alegria
de ver germinar as folhas e flores, sempre com palavras de carinho. O descolorido
acabou invadindo bárbaras e donzelas velhas, arrependidas e amargas
— Bom dia, meus queridos livros. — cinismo, tenho apetite de gritar, mas somente consigo olhar com olhos de enviesado. Pareço
jogado as pressas, em qualquer lugar. Sem serventia, nem para uma investigação
científica do passado. Estacionado pelo descaso, pronto para ser descartado. O
tempo passa para todos, mas parece que alguns conseguem resistir um tempinho a
mais. Na prateleira expositora resta à fatalidade de viver resistindo um dia a
cada vez — A resistência de alguns consegue mantê-lo em pé... — nem bem chega e
me procura sem nenhuma solidariedade, apenas ameaça que o fim se aproxima. Sinto
o seu hálito da morte. Mal o dia recomeça e preciso resistir aos maus humores
da solidão, preciso da coragem pela vida.
Quase
sempre sinto falta de ar, essas cortinas ainda me acabam. Acho que tenho asma.
A marosca sem diploma de curiosidade e alegria culpa a luz pelo nosso
amarelecimento, vivemos assim, sem direito aos banhos diários de sol,
envelhecendo do mesmo jeito. Eu a culpo pela falta de alegria e imaginação. Outras
vezes, sinto cócegas na garganta, as poeiras me atacam. Peço a cadeiruda para
abrir as janelas e ser tocado pelo macio das manhãs. Ela nem chega até as
prateleiras. Não sou ouvido ou se faz de surda — A senhora poderia fazer a
gentileza de permitir a ventania do mundo lá fora?
Nunca
não me dá ouvidos, e nada acontece. Senta atrás da sua mesa. Tem o olhar
perdido na porta, imagina quem lhe perturbará por primeiro, fica imobilizada
naquela manhã ensolarada e quente. Mantêm as mãos sobre a mesa, algemadas pelos
dedos entrelaçados. Move lentamente um dos pés com pequenas batidas no piso de
pedra, acompanha o ritmo lento da batucada do próprio coração. Fica assim, em
prontidão inútil, com as costas eretas, respirando abafado pela boca.
O
segundo sinal autoriza a horda dos bárbaros entrar na cidadela. Os corredores
se avolumam com o som confuso e prolongado de muitas vozes. A nossa guardiã
matinal acelera o ritmo das suas batidas no chão. Gritos e assobios. Alegrias. Alaridos.
O tempo viaja pelo mundo a fora, até que o silêncio retorna assombrado, os
corredores estão esvaziados, outros passos sobem a escadaria. Solto um suspiro
e aposto comigo mesmo que vamos ter inspeção bem cedinho — Bom dia, queridinha.
— Bom dia, Marosca!
— Passeando tão cedo?
— Vim fazer uma visitinha. — ui, nunca
foram de tantas gentilezas uma com a outra, tem coisa vindo por aqui
— No troco do quê? — a Marosca até parece
que ficou escutando meus resmungos, como criança manhosa que só dá ouvidos ao que
lhe interessa
— Mas menina, calma, não há outro interesse
que o prazer da visita. — o cenismo da Focinhuda brota como em jorros de
vômitos incontroláveis. Tenho suspeita que o cinismo é o momento supremo da
diarréia humana, desmobiliza as inteligências humanas pelo enfraquecimento e a
perda dos líquidos da ternura, tudo vira vivência sacana
— O comenta e não diz às claras, o faz-de-conta
da fofoca, é que você quer um lugar na biblioteca. — minha nossa, nunca ouvi a
Marosca tão direta, acho que essa daí não vai conseguir acomodamento em alguma
estante, sem uma boa guerrilha de vaidades e interesses pessoais, outro bibelô
decorativo
— Não mesmo, isso é fofoca, Marosca. Vim
na procura de leitura. — faço essa transcrição para que vocês comprovem que a
ficção nem se aproxima das realidades humanas
— Precisas de ajuda?
— Não te incomoda, nem levanta desta
cadeira confortável, vou seguir ao acaso dos dedos e olhos. — penso que esta
pode ser a minha chance. Tento erguer-me das costas e ficar em pé, quem não é
visto nunca é lembrado. A danada entra pelo corredor dos portugueses e se põe a
bisbilhotar Camões, Fernando Pessoa, Saramago, Abelaira, Lobo Antunes. Essa
zinha leva jeito de boa nas leituras. Abandona os lusos e invade com seu aroma os
corredores latinos das Américas espanholas, Borges, Garcia Márquez, Vargas
Llosa, Benedetti, Onetti, Arturo Uslar, Neruda, Lezema Lima, não parece muito
feliz. Sai e volta para os didáticos, tenho calafrios. Desiste. Dou um profundo
suspiro. A inspetora das brochuras dirige seus passos para o mundo imaginativo
dos brasileiros
— Estou aqui, estou aqui. — tenho a
fantasia de gritar, mas ela está lá, entre Jorge Amado, Bilac, os índios de
Iracema e os olhares de Capitu para Bentinho. Os passos são indecisos, mas vêm.
Ela vê e me pega. Sinto seus dedos carnudos e seu hálito de álcool. Folheia
minhas páginas e me examina, sou o seu alvo. Olho em seus olhos, mas me larga
em pé e se põe a elogiar o Clube do Beijo. Não se contém até achá-lo — Vou
levar este para minha filha.
— Boa escolha, as meninas fazem fila para
levá-lo.
Bem,
não foi desta vez, mas o dia apenas começa. E não engrena, poucas visitas. Já
vamos lá pelo meio da manhã quando a chefe jumbeba recebe visita de fofoca da Arlete
— Amiga, a Focinhuda tem oferecido muitas palavras sobre a biblioteca.
— O que essazinha ta falando?
— Não sei se devo falar...
— Começou e para pelo meio? Tenha dó, né Arlete?
— Tem dito que isso aqui é um lugar de
livros velhos, jornais do passado, leitores desinteressados e de guarda-livros diminuídas
no seu desempenho. Um canto vazio de gente e depósito de velharias. — espicho o
olho para Marosca, vejo um pequeno treme-treme ali onde ficam os
pés-de-galinha. A tal zinha chegou ao alvo, sabe... e deixa pra tirar os
proveitos em outra ocasião, é hora da retirada
— Mais nada? — insiste a Marosca
— Bem...
— Bem o quê? Desembucha logo...
— Queridinha, deixa pra lá, só pra não
sair de mãos abanando, vou levar um livro. — a trombuda faz em leve sorriso de
vitória, vai direto para os lados adolescentes. Passa os dedos displicentemente
pelos seus corpos, parece entediada. Caminha entre as letras dos adultos e
quando me passa sinto um calafrio, essa é alma do outro mundo. Vai em frente
até os transnacionais, pega um depois do outro até se decidir
— Marosca, você já leu?
— Não, mas já ouvi coisas de bem e outras
de mal. — queridinha, essa daí só lê as revistas semanais das fofocas
— Vou levar este aqui. — vai para fazer o
registro, passa bem pertinho, sinto seu perfume congênito de podre. Esta manhã
não está rendendo.
Depois
do desabrochar do dia, a Marosca dá de mão em mim e sai, nem vê, me coloca
embaixo do braço para fechadurar a porta. Deixa um bilhete, Já volto. Minha
curiosidade não é maior que o sufoco que estou passando. Penso que vai ao
banheiro e vou ajudar o tempo a passar. Caminha em um dos pés, na sua ponta, o
outro vai por compromisso, mas é o braço que me leva. Agora estou em uma das
mãos. Nunca sei onde fica a direita ou esquerda. Mas de qualquer jeito fico
agradecido que me tenha livrado das umidades do sovaco. Vez que outra faz jeito
de gemido, o muxoxo não sai, fica na intenção. Lá estão os aposentos com os
vasos sanitários. Mas que nada, passa direto no desvio dos banheiros e segue
para o prédio dos administrativos. Sigo firme entre suas mãos, um enfeite. Bate
levemente em uma das portas e entra
— Com licença, bom dia!
— Bom dia, Marosca.
— O Diretor tem intenção de mudanças lá
pela biblioteca? — essa se vai direto ao assunto com propósito de amedrontar. Tem
no olhar o sinal de ataque e nas mãos a arma. Rezo para ser largado. A conversa
de guerra começa. Minhas preces são atendidas, sou desprezado sobre a mesa da
comandância. Respiro em
alívio. O sujeito diretor está cheio de coragem, mesmo sendo
bem pequenino, acho que são os seus olhos bem grandes e a voz fininha e
inaudível que amedrontam. Não há harmonia, tudo nele é desconfortável. A
Marosca não se ia nem se vinha, permanecia em pé, em atitude de guerra
— Sim.
— Sim, o quê?
— Sim, vai haver mudança. — fecho os olhos
e paro de respirar. Ela não diz nada, sai manca de dor, e nos seus atacamentos
atormentados... me esquece. Não bate na porta por detalhe. Fico no desamparo,
ao alcance do anão de olhos gigantes. Faço-me de morto. Não sei quanto do meu
tempo se passou, até ouvir a voz do desarmônico
— Focinhuda, entra um instante.
— Sim?
— Por que tanta vontade de cuidar de
livros?
— Sonhos de criança.
— O que tem por lá, além de folhas
amarelas e silêncio?
— Nada demais.
— Eu não entendo.
— Temos uma manca de dor, a Marosca; outra
cega de visão, a Marvadaluz; e a última, que perde as memórias que esquece, a
Memoriosa. Fazem que atendem e todos mentem que acreditam. — e daí, tenho vontade
de lhe perguntar
— E daí... nada. Eu quero ir para a
biblioteca!
— Mas...
— Esse foi o acordo, Augusto.
— Um outro cantinho...
— Não. A biblioteca pelo meu voto, não tem
negociação. — e eu com isto, não tenho nada a dizer e nem quero ouvir as
confidências. Quero me fazer de surdo, cego e mudo. Continuo imóvel. Esse tal
nem se faz de tolo. Jogo de apoios e réplicas. A rapariga gulosa e de focinho
grande vai sair quando se põe de olhos e mãos em mim
— Augusto, este livro é da biblioteca?
— A Marosca deve tê-lo esquecido.
— Deixa comigo, vou devolver.
— Tudo bem, mas sem mais confusão. — quando
sinto o aperto da minha carcereira, não posso evitar a lembrança do lobo mau e
seu focinho de cheirar e devorar. Apenas, que nessa história não tem nenhuma
garotinha de chapéu, muito menos vermelho, mas peçonhas mortais. Coitado do
guará será devorado pela avozinha, uma jararaca-verde. Nenhuma chance o
coitadinho tem. Morre engolido por inteiro. É bebido e soluçado sem qualquer
lágrima. O sol quente penetra, iluminando esse espetáculo de nervos de aço. A
lei do bosque desencantado e das bruxas que moram no casarão mal-assombrado
prevalece. Sinto calafrios.
Sou
agarrado por garras vigorosas, sem chance de reclamar. Lá vou para o sovaco
desta outra, sina de livro sem passaporte de serventia imediata, sem textos de autoajuda,
sem figuras. Desta vez, antes de voltar sou carregado para o banheiro. Sou largado no apoio
do papeleiro. Quero olhar para os lados, mas não posso, a jararaca ergue as
duas tampas, sobe as saias, desce a calça e se fica com os pés sobre a louça e
urina e geme de aliviada. Bom, pelo menos dos males o menor. Sobe a calça e
desce as saias depois das secaduras. Lava as mãos e sai esquecida de mim. Não
acredito, fico neste caos de cheiros e umidades. Nem a descarga foi capaz de
apertar. Descuidada. Insana. Fofoqueira. Cadeiruda. Focinhuda.
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44 - Um sarau no ônibus
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