sexta-feira, 2 de junho de 2023

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte IV (a) - O Boqueirão

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto


A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 


TERCEIRA PARTE


IV - O Boqueirão


O Sítio de Quaresma, em Curuzu, voltava aos poucos ao estado de abandono em que ele o encontrara. A erva daninha crescia e cobria tudo. As plantações que fizera tinham desaparecido na invasão do capim, do carrapicho, das urtigas e outros arbustos. Os arredores da casa ofereciam um aspecto desolador, apesar dos esforços de Anastácio, sempre vigoroso e trabalhador na sua forte velhice africana, mas baldo de iniciativa, de método, de continuidade no esforço. Um dia capinava aqui, noutro dia ali, outro pedaço, e assim ia saltando de trecho em trecho, sem fazer trabalho que se visse, permitindo que as terras e os arredores da casa adquirissem um aspecto de desleixo que não condizia com o seu trabalho efetivo.
As formigas voltaram também, mais terríveis e depredadoras, vencendo obstáculos, devastando tudo, restos de seara, brotos de fruteiras, até os araçazeiros depenavam, com uma energia e bravura que sorriam aos fracos expedientes da inteligência crestada do antigo escravo, incapaz de achar meios eficazes de batê-las ou afugentá-las.
Entretanto ele cultivava. Era a sua mania, o seu vício, uma teimosia de caduco. Tinha uma horta que disputava diariamente às saúvas; e, como os animais da vizinhança a tivessem um dia invadido, ele a protegeu pacientemente com uma cerca de materiais mais inconcebíveis: latas de querosene desdobradas, caibros bons, folhas de coqueiros, tábuas de caixão, não obstante ter à mão bambus à vontade.
Na sua inteligência havia uma necessidade do tortuoso, do aparentemente fácil; e, em tudo ele punha esse jeito de sua psique, tanto no falar, com grandes rodeios, como nos canteiros que traçava, irregulares, maiores aqui, menores ali, fugindo à regularidade, ao paralelismo, à simetria, com um horror artístico.
A revolta tinha tido sobre a política local efeito pacificador. Todos os partidos se fizeram dedicadamente governistas, de forma que, entre os dous poderosos contendores, o Doutor Campos e o Tenente Antonino, houve um traço-de-união que os reconciliou e os fez entenderem-se. Ao osso que ambos disputavam encarniçadamente, chegou um outro mais forte que pôs em perigo a segurança de ambos e eles se puseram em expectativa, um instante unidos.
O candidato foi imposto pelo governo central e as eleições chegaram. É um momento bem curioso esse das eleições na roça. Não se sabe bem donde saem tantos tipos exóticos. De tal forma são eles esquisitos que se pode mesmo esperar que apareçam calções e bofes de renda, espadins e gibão. Há sobrecasacas de cintura, há calças boca de sino, há chapéus de seda - todo um museu de indumentária que aqueles roceiros vestem e por um instante fazem viver por entre as ruas esburacadas e estradas poeirentas das vilas e lugarejos. Não faltam também os valentões, com calças bombachas e grandes bengalões de pequiá, à espera do que der e vier.
Para a monótona vida que levava Dona Adelaide, esse desfile de manequins de museu, por sua porteira, em direção à seção eleitoral que lhe ficava nas proximidades, foi um divertimento. Ela passava longos e tristes dias naquele isolamento. Fazia-lhe companhia desde muito a mulher de Felizardo, a Sinhá Chica, uma velha cafuza, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por sobre todo o município. Não havia quem como ela soubesse rezar dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das ervas medicinais: a língua-de-vaca, a silvina, o cipó-chumbo - toda aquela drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos de árvores.
Além desse saber que a fazia estimada e respeitável, tinha também a habilidade de assistir partos. Na redondeza, entre a gente pobre e mesmo remediada, todos os nascimentos se faziam aos cuidados de suas luzes.
Era de ver como pegava uma faca e agitava o pequeno instrumento doméstico em cruz, repetidas vezes, sobre a sede da dor ou da tarefa, rezando em voz baixa, balbuciando preces que afugentavam o espírito maligno que estava ali. Contavam-se dela milagres, vitórias extraordinárias, denunciadoras do seu estranho poder quase mágico, sobre as forças ocultas, que nos perseguem ou nos auxiliam.
Um dos mais curiosos, e era contado em toda a parte e a toda a hora, consistia no afastamento das lagartas. Os vermes haviam dado num feijoal, aos milheiros, cobrindo as folhas e os colmos; o proprietário já desesperava e tinha tudo por perdido quando se lembrou dos maravilhosos poderes de Sinhá Chica. A velha lá foi. Pôs cruzes de gravetos pelas bordas da roça, assim como se fizesse uma cerca de invisível material que nelas se apoiasse; deixou uma extremidade aberta e colocou-se na oposta a rezar. Não tardou o milagre a verificar-se. Os vermes, num rebanho moroso e serpejante, como se fossem tocados pela vara de um pastor, foram saindo na sua frente, devagar, aos dous, aos quatro, aos cinco, aos dez, aos vinte, e um só não ficou.
O Doutor Campos não tinha absolutamente nenhuma espécie de ciúme dessa rival. Armou-se de um pequeno desdém pelo poder sobre-humano da mulher, mas não apelou nunca para o arsenal de leis, que vedava o exercício de sua transcendente medicina. Seria a impopularidade; ele era político...
No interior, e não é preciso afastar-se muito do Rio de Janeiro, as duas medicinas coexistem sem raiva e ambas atendem às necessidades mentais e econômicas da população.
A da Sinhá Chica, quase grátis, ia ao encontro da população pobre, daquela em cujos cérebros, por contágio ou herança, ainda vivem os manitus e manipansos, sujeitos a fugirem aos exorcismos, benzeduras e fumigações. A sua clientela, entretanto, não se resumia só na gente pobre da terra, ali nascida ou criada; havia mesmo recém-chegados de outros ares, italianos, portugueses e espanhóis, que se socorriam da sua força sobrenatural, não tanto pelo preço ou contágio das crenças ambientes, mas também por aquela estranha superstição europeia de que todo o negro ou gente colorida penetra e é sagaz para descobrir as coisas malignas e exercer a feitiçaria.
Enquanto a terapêutica fluídica ou herbácea de Sinhá Chica atendia aos miseráveis, aos pobretões, a do Doutor Campos era requerida pelos mais cultos e ricos, cuja evolução mental exigia a medicina regular e oficial.
Às vezes, um de um grupo passava para o outro; era nas moléstias graves, nas complicadas, nas incuráveis, quando as ervas e as rezas da milagrosa nada podiam ou os xaropes e pílulas do doutor eram impotentes.
Sinhá Chica não era lá uma companheira muito agradável. Vivia sempre mergulhada no seu sonho divino, abismada nos misteriosos poderes dos feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de múmia, tanto ela era encarquilhada e seca.
Não esquecia também os santos, a santa madre igreja, os mandamentos, as orações ortodoxas; embora não soubesse ler, era forte no catecismo e conhecia a história sagrada aos pedaços, aduzindo a eles interpretações suas e interpolações pitorescas.
Com o Apolinário, o famoso capelão das ladainhas, era ela o forte poder espiritual da terra. O vigário ficava relegado a um papel de funcionário, espécie de oficial de registro civil, encarregado dos batizados e casamentos, pois toda a comunicação com Deus e o invisível se fazia por intermédio de Sinhá Chica ou do Apolinário. É de dever falar em casamento, mas bem podiam ser esquecidos, porque a nossa gente pobre faz uso reduzido de tal sacramento e a simples mancebia, por toda a parte, substitui a solene instituição católica.
Felizardo, o marido dela, aparecia pouco em casa de Quaresma; e, se aparecia, era à noite, passando os dias pelos matos com medo do recrutamento e logo que chegava indagava da mulher se o barulho já tinha acabado.
Vivia num constante pavor; dormia vestido, galgando a janela e embrenhando-se na capoeira, à menor bulha ouvida.
Tinham dous filhos, mas que tristeza de gente! Ajuntavam à depressão moral dos pais uma pobreza de vigor físico e uma indolência repugnante. Eram dous rapazes: o mais velho, José, orçava pelos vinte anos; ambos inertes, moles, sem força e sem crenças, nem mesmo a da feitiçaria, das rezas e benzeduras, que fazia o encanto da mãe e merecia o respeito do pai.
Não houve quem os fizesse aprender qualquer cousa e os sujeitasse a um trabalho contínuo. De quando em quando, assim de quinze em quinze dias, faziam uma talha de lenha e vendiam ao primeiro taverneiro pela metade do valor; voltavam para casa alegres, satisfeitos, com um lenço de cores vivas, um vidro de água-de-colônia, um espelho, bugigangas que denunciavam ainda neles gostos bastantes selvagens.
Passavam então uma semana em casa, a dormir ou perambular pelas estradas e vendas; à noite, quase sempre nos dias de festa e domingos, saíam com a “harmônica” a tocar peças, no que eram exímios, sendo a presença deles muito requestada nos bailes da vizinhança.
Embora seus pais vivessem em casa de Quaresma, raramente lá apareciam; e, se o faziam, era porque de todo não tinham que comer. Levavam o descuido da vida, a imprevidência, a ponto de não terem medo do recrutamento. Eram, entretanto, capazes de dedicação, de lealdade e bondade, mas o trabalho continuado, todo o dia, repugnava-lhes à natureza, como uma pena ou castigo. Essa atonia da nossa população, essa espécie de desânimo doentio, de indiferença nirvanesca por tudo e todas as cousas cercam de uma caligem de tristreza desesperada a nossa raça e tira-lhe o encanto, a poesia e o viço sedutor de plena natureza.
Parece que nem um dos grandes países oprimidos, a Polônia, a Irlanda, a Índia apresentará o aspecto cataléptico do nosso interior. Tudo aí dorme, cochila, parece morto; naqueles há revolta, há fuga para o sonho; no nosso... Oh!... dorme-se...
A ausência de Quaresma trouxera para o seu sítio essa atmosfera geral da roça. O “Sossego” parecia dormir, dormir de encantamento, à espera que o príncipe o viesse despertar.
Máquinas agrícolas, que não haviam ainda servido, enferrujavam com a etiqueta da casa. Aqueles arados de ponta de aço, que tinham chegado com a relva reluzente, de um brilho azulado e doce, estavam hediondos e morriam de tédio no abandono em que jaziam, bracejando angustiosamente para o céu mudo. De manhã, não se ouvia mais o cacarejar das aves no galinheiro, o esvoaçar dos pombos - todo esse hino matinal de vida, de trabalho, de fartura não mais se casava com as auroras rosadas e com o chilreio álacre do passaredo; e ninguém sabia ver as paineiras em flor; com as suas lindas flores rosadas e brancas que, a espaços, caíam docemente como aves feridas.
Dona Adelaide não tinha nem gosto nem atividade para superintender aqueles serviços e fruir a poesia da roça. Sofria com a separação do irmão e vivia como se estivesse na cidade. Comprava os gêneros na venda e não se incomodava com as cousas do sítio.
Ansiava pela volta do irmão; escrevia-lhe cartas desesperadas, às quais ele respondia aconselhando calma, fazendo promessas. A última recebida, porém, tinha de sopetão outro acento; não era mais confiante, entusiástica, traía desânimo, desalento, mesmo desespero.
“Querida Adelaide. Só agora posso responder-te a carta que recebi há quase duas semanas. Justamente quando ela me chegou às mãos, acabava de ser ferido, ferimento ligeiro é verdade, mas que me levou à cama e tratar-me-á uma convalescença longa. Que combate, milha filha! Que horror! Quando me lembro dele, passo as mãos pelos olhos como para afastar uma visão má. Fiquei com um horror à guerra que ninguém pode avaliar... Uma confusão, um infernal zunir de balas, chorões sinistros, imprecações - e tudo isto no seio da treva profunda da noite... Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo: batíamo-nos à baioneta, a coronhadas, a machado, a facão. Filha: um combate de trogloditas, uma cousa pré-histórica... Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a terra a elas... Eu não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, do Neanderthal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... Este teu irmão que estás vendo também fez das suas, também foi descobrir dentro de si muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei, minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo arquejava a meus pés... Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguém enfim... Não imaginas como isto faz-me sofrer... Quando caí embaixo de uma carreta, o que doía não era a ferida, era a alma, era a consciência; e Ricardo, que foi ferido e caiu ao meu lado, a gemer e pedir - “capitão, meu gorro; meu gorro!” - parecia que era o meu próprio pensamento que ironizava o meu destino...
Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol...
O melhor é não agir, Adelaide; e desde que o meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta possível, para que do fundo de mim mesmo ou do mistério das cousas não provoque a minha ação o aparecimento de energias estranhas à minha vontade, que mais me façam sofrer e tirem o doce sabor de viver...
Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido; e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer...
Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.”


continua na página 94...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.

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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro
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