domingo, 25 de junho de 2023

Marcel Proust - A Prisioneira (O declínio do dia remergulhava-me)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira


continuando...


O declínio do dia remergulhava-me pela recordação numa atmosfera antiga e fresca, e eu a respirava com as mesmas delícias que Orfeu o ar sutil, desconhecido desta terra, dos Champs-Elysées. Mas o dia já terminava, e eu era invadido pela desolação do entardecer. Olhando maquinalmente no relógio de pêndulo quantas horas passariam antes que Albertine voltasse, eu via que ainda dispunha de tempo para me vestir e descer a fim de pedir à minha proprietária, Sra. de Guermantes, algumas indicações sobre certas coisas bonitas de toalete que pretendia dar à minha amiga. Às vezes eu encontrava a duquesa no pátio, saindo para excursões a pé, mesmo se fazia mau tempo, com um chapéu baixo e um casaco de pele. Eu bem sabia que, para grande número de pessoas inteligentes, ela não era outra coisa senão uma dama qualquer, visto que o nome de duquesa de Guermantes não significava nada agora que não há mais duques nem principados, mas eu adotara um outro ponto de vista em meu modo de usufruir dos seres e dos países. Todos os castelos das terras de que ela era duquesa, princesa, viscondessa, essa dama de casaco de pele, afrontando o mau tempo, parecia-me carregá-los consigo, como as personagens esculpidas no dintel de um portal sustentam na mão a catedral que construíram, ou a cidadela que defenderam. Porém esses castelos e essas florestas, somente os olhos do meu espírito podiam vê-los na mão enluvada da dama de casaco de pele, prima do rei. Os olhos de meu corpo ali não distinguiam, nos dias em que o tempo se fazia ameaçador, senão um guarda-chuva de que a duquesa não receara armar-se.

- Nunca se pode saber, é mais prudente, se me encontrar muito longe e um carro me pedir preços caros demais para mim.-

As expressões "caros demais" e "exceder os meus meios" retornavam o tempo todo na conversa da duquesa, bem como esta: "sou muito pobre", sem que se percebesse muito bem se ela falava assim por achar divertido dizer que era pobre, sendo tão rica, ou porque julgasse elegante, sendo tão aristocrática, isto é, afetando ser uma camponesa, fingisse não dar à riqueza a importância das pessoas que são apenas ricas e que desprezam os pobres. Talvez antes fosse um hábito contraído numa época de sua vida em que, já rica, porém insuficientemente, a julgar pelo custo da manutenção de tantas propriedades, ela experimentava certas dificuldades de dinheiro que não desejava parecer estar dissimulando. As coisas de que falamos na maioria das vezes em tom de gracejo são geralmente, pelo contrário, as que aborrecem, mas das quais não queremos dar a impressão de estarmos aborrecidos, talvez com a inconfessa esperança de uma vantagem suplementar: a de que justo a pessoa com quem conversamos, ao nos ouvir gracejar a respeito, creia que aquilo não é verdade. 

Mas, na maioria das vezes, àquela hora, eu sabia que encontrava a duquesa em casa, e isso me fazia contente, pois era mais cômodo para lhe pedir as demoradas informações desejadas por Albertine. E eu descia quase sem pensar o quanto era extraordinário que, à casa dessa misteriosa Sra. de Guermantes da minha infância, eu comparecesse exclusivamente a fim de me valer dela para uma simples comodidade prática, como fazemos com o telefone, instrumento sobrenatural, diante de cujos milagres a gente se maravilhava outrora, e do qual nos servimos hoje sem nem pensar nisso, para chamar o alfaiate ou encomendar um sorvete.

As ninharias do vestuário davam grande prazer a Albertine. Eu não sabia me recusar a dar-lhe, todos os dias, um presente desse tipo. E cada vez que ela me falava com encantamento numa écharpe, numa estola, numa sombrinha que, pela janela, ou passando pelo pátio, com seus olhos que percebiam tão depressa tudo o que se relacionasse à elegância, ela avistara no pescoço, nos ombros, na mão da Sra. de Guermantes, sabendo que o gosto naturalmente difícil da moça (ainda marcado pelas lições de elegância dadas pela conversação de Elstir) não se satisfaria de modo algum com um simples objeto de imitação mesmo que fosse bonito, que substitui o verdadeiro aos olhos do vulgo, mas dele difere inteiramente, eu ia em segredo perguntar à duquesa onde, como, a partir de que modelo fora confeccionado aquilo que agradara a Albertine, como deveria proceder para obter exatamente aquilo, em que consistia o segredo do fabricante, o encanto (que Albertine chamava "o chique", "o gênero") de seu feitio, o nome exato a beleza da matéria tendo a sua importância e a qualidade dos tecidos que eu devia pedir que fossem utilizados. 

Quando eu dissera a Albertine, na nossa chegada de Balbec, que a duquesa de Guermantes morava à nossa frente, no mesmo palacete, ela assumira, ao ouvir o grande título e o grande nome, esse ar mais que indiferente, hostil, desdenhoso, que é o sinal do desejo impotente nas naturezas orgulhosas e apaixonadas. Por magnífica que fosse a de Albertine, as qualidades que encerrava só podiam se desenvolver no meio desses entraves que são os nossos gostos, ou esse luto dos gostos a que fomos obrigados a renunciar-como, no caso de Albertine, o esnobismo-e a que chamamos ódios. O de Albertine pela alta sociedade, aliás, guardava muito pouco espaço em seu espírito e me agradava por um aspecto de "espírito de revolução"- quer dizer, amor infeliz pela nobreza-inscrito na face oposta do caráter francês em que está o gênero aristocrático da Sra. de Guermantes. Albertine, pela impossibilidade de alcançá-lo, talvez nem se preocupasse com ele, mas, lembrando-se que Elstir lhe falara da duquesa como sendo a mulher que melhor se vestia em Paris, o desdém republicano quanto a uma duquesa cedera em minha amiga a um vivo interesse por uma elegante. 

Pedia-me freqüentemente informações sobre a Sra. de Guermantes e gostava que eu fosse buscar com a duquesa conselhos de toalete para ela própria. Sem dúvida eu poderia pedi-las à Sra. Swann e até lhe escrevi uma vez com essa finalidade. Mas a Sra. de Guermantes me parecia levar ainda mais longe a arte de se vestir. Se, descendo por um momento à casa dela, depois de me haver assegurado de que ela não saíra e tendo pedido que me avisassem logo que Albertine voltasse, eu encontrasse a duquesa envolvida na bruma de um vestido de crepe da China cinzento, aceitava esse aspecto que sentia dever-se à causas complexas e que não poderia ter mudado, deixava-me invadir pela atmosfera que dele se desprendia, como o fim de certas tardes envoltas num cinza-pérola por uma névoa vaporosa; se, pelo contrário, esse vestido caseiro era chinês, com flamas rubras e amarelas, eu a olhava como a um poente que se esbraseia; essas toaletes não eram um cenário qualquer, substituível à vontade, mas uma dada realidade poética, como o é a do tempo que faz, como o é a luz especial a uma determinada hora.

De todos os vestidos ou chambres que a Sra. de Guermantes usava, aqueles que pareciam mais corresponder a uma determinada intenção, ser dotados de um sentido especial, eram os vestidos que Fortuny havia feito de acordo com desenhos antigos de Veneza. Será o seu caráter histórico, será antes o fato de cada um deles ser único o que lhes dá um caráter tão particular, que a pose da mulher que os veste enquanto nos espera, enquanto conversa conosco, adquire uma importância excepcional, como se essa roupa tivesse sido o fruto de uma longa deliberação, e como se essa conversa se desprendesse da vida cotidiana como uma cena de romance? 

Nos romances de Balzac veem-se heroínas pôr intencionalmente este ou aquele vestido, no dia em que devem receber determinado visitante. Os vestidos de hoje não têm cunho tão pronunciado, com exceção das roupas de Fortuny. Nenhuma imprecisão pode subsistir na descrição do romancista, já que esse vestido existe de fato, e os seus menores desenhos são tão naturalmente determinados como os de uma obra de arte. Antes de vestir este ou aquele, a mulher teve de escolher entre dois vestidos, não mais ou menos parecidos, mas cada um profundamente individual, a que se poderia dar um nome. 

Mas o vestido não me impedia de pensar na mulher. A própria Sra. de Guermantes me pareceu, nessa época, mais agradável que no tempo em que eu ainda a amava. Esperando menos dela (pois não ia mais vê-la por ela mesma) era quase com a tranqüila sem-cerimônia com que pomos, quando sozinhos, os pés na grade da lareira, que eu a escutava como teria lido um livro escrito em linguagem de outrora. Eu tinha bastante liberdade de espírito para apreciar, no que ela dizia, aquela graça francesa tão pura que já não se encontra nem na maneira de falar, nem nos escritos de hoje. Escutava a sua conversação como a uma canção popular deliciosamente francesa; compreendia que a tivesse ouvido troçar de Maeterlinck (que aliás, agora, ela admirava por fraqueza de espírito de mulher, sensível a essas modas literárias cujos raios chegam tardiamente), como compreendia que Mérimée troçasse de Baudelaire, Stendhal de Balzac, Paul-Louis Courier de Victor Hugo, Meilhac de Mallarmé. Entendia perfeitamente que o trocista tivesse compreensão bem restrita em face daquele de quem troçava, mas também um vocabulário mais puro. O da Sra. de Guermantes, quase tanto como o da mãe de Saint-Loup, era-o a tal ponto que encantava. Não é nos frios pastichos dos escritores de hoje, que dizem au fait (por en realité), singulierement (por en particulier), étonné (por frappé destupeur) etc., etc. [Au fait, "de fato", en realité, "na realidade"; singulierement, "singularmente"; en parficulier, "em particular"; étonné, "espantado", "assombrado"; frappé de stupeur, "pasmo", "atônito". (N. do T)] Que se reencontra a antiga linguagem e a verdadeira pronúncia das palavras, e sim conversando com uma Sra. de Guermantes ou uma Françoise. Com esta, eu aprendera, desde os cinco anos, que não se diz o Tarn, mas o Tar, nem Béarn, mas o Béar. O que fez com que aos vinte anos, ao frequentar a sociedade, não precisei aprender que não era necessário dizer, como o fazia a Sra. Bontemps, "Madame de Béarn".

Mentiria se dissesse que a duquesa não tinha consciência desse lado rural e quase camponês que permanecia nela, e não pusesse uma certa afetação em exibi-lo. Mas de sua parte, era menos falsa simplicidade de grande dama que se faz de camponesa, e orgulho de duquesa que zomba das senhoras ricas desdenhosas dos camponeses a quem não conhecem, do que o gosto quase artístico de uma mulher que conhece o encanto do que possui e não vai estragá-lo com uma pincelada moderna. Do mesmo gênero era um restaurador normando que todo mundo conheceu em Dives, proprietário do "Guilherme-o-Conquistador", que tinha evitado-coisa bem rara-dar à sua hospedaria o luxo moderno de um hotel e que, sendo milionário, conservava a linguagem e a blusa de um camponês normando e permitia que o vissem, ele próprio, a preparar na cozinha, como no campo, um jantar que nem por isso deixava de ser infinitamente melhor e até mais caro do que nos maiores hotéis de luxo. 


continua na página 14...
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Leia também:

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Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
A Prisioneira (O declínio do dia remergulhava-me)

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