domingo, 25 de junho de 2023

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Estes temas que Robert desdenhava)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

Estes temas que Robert desdenhava assim, Gilberte, em troca, abordava-os de bom grado falando comigo quando ele partia. Claro que não em relação com seu marido, pois dele o ignorava ou fingia ignorá-lo tudo. Mas gostava de falar disto quando se tratava de outro, já porque visse nisso uma espécie de desculpa indireta para Robert, ou porque este, compartilhado como seu tio entre um silêncio severo sobre estes temas e uma necessidade de espionar e de falar mal de gente, caso tivesse-lhe contado coisas sobre muitos. Entre todos eles, não excluía ao Sr. de Charlus; e é certamente porque Robert, sem falar de Charlie a Gilberte, não pudera evitar repetir-lhe, sob uma ou outra forma, o que o violinista lhe dissera. E o violinista perseguia o antigo benfeitor com seu ódio; suas conversações, que Gilberte apreciava, permitiram-me indagar-lhe se, num paralelo, Albertine, cujo nome eu ouvia pela vez primeira através dela, quando eram colegas de curso, não tinham tais gostos. Gilberte não possuía informação. De resto, fazia muito tempo que aquilo deixara de oferecer interesse para mim. Mas eu continuava a me indagar maquinalmente, como um velho que, tendo perdido a memória, de vez em quando pede notícias de morto.

Curioso, é que essa coisa sobre tal assunto não posso me estender, será , até que ponto, por essa época, todas as pessoas que Albertine amava, todas que poderiam tê-la obrigado a fazer o que quisessem, pediram, imploraram, até dizer que mendigaram, na falta de minha amizade, algumas relações comigo. 

Não haveria mais necessidade de oferecer dinheiro à Sra. Bontemps para que mandasse Albertine de volta. Ocorrendo quando não mais servia para alguma, essa reviravolta da vida me entristecia profundamente, não por causa de Albertine, que eu teria recebido sem prazer se me fosse devolvida, não pelas faltas de além-túmulo; mas por pior causa é uma jovem a quem eu amava e podia chegar a ver. Dizia comigo que se ela morresse, ou se a deixasse todos os que poderiam me fazer aproximar dela decairiam a meus olhos. Não adiantava inutilmente agir sobre eles, visto não estar curado pela experiência que deveria me ensinar - se por acaso ensinasse alguma coisa - que amar é um destino de má sorte, como os que existem nos contos de fadas, e contra a qual nada pode fazer enquanto não for quebrado o encanto. 

- Justamente o livro que estou lendo fala dessas coisas - disse-me Gilberte - Falei desse mistério à Robert: "Nós nos entenderíamos perfeitamente." Ele jurou não se lembrar e que aquilo em todo caso, não tinha nenhum sentido. - É um velho romance de Balzac - prosseguiu Gilberte - que vou ler para pôr-me à altura de meus tios, A Menina dos Olhos de Ouro: inverossímil, absurdo, um tremendo pesadelo. Além disso, uma mulher tão falsa ser vigiada assim por outra mulher, nunca por um homem. - Você sabe conheci uma mulher a quem o homem que a amava virtualmente, jamais podia ver pessoa alguma, e só saía acompanhada de criados de confiança. Pois então, isto deve tê-lo horrorizado, você que é tão bom. Justamente, achávamos que deveria casar-se. Sua mulher haveria de curá-lo, e você a faria feliz. 

- Não, pois eu tenho muito mau gênio

- Que ideia!

- Juro-lhe! Aliás, já falei, mas não pude decidir a casar-me. A própria desistiu por causa do meu temperamento indeciso e maçante. 

Era de fato sob esta fórmula bem simplista, que julgava a minha aventura com Albertine, agora que via essa aventura de fora. 

Sentia-me triste ao subir sequer rever a igreja de Combray, que através de uma janela violácea. Dizia como se não fosse morrer até lá, não vendo outro lado da igreja, que se me afigurasse a morte, assim como havia existido. 

Entretanto, um dia falei se gostava de mulheres.

- Oh, de jeito nenhum - como jeito dela era duvidoso. 

- Eu disse isso  

- Você o disse (mas você se engana), fala naquela idade que não iriam muito por ela mesma, segundo as propostas à Albertine? Ou então que imaginamos, sabendo quando os outros podem estar mais certos, porém exagerá-la e errar por que se errassem por ausência do que desejaria tapar-me os olhos pronta para os ciumentos duvidosos de antigamente. O inverso ao fazer afirmações das relações com Gilberte, havia dito Andrée, pois são antes de conhecê-los como ocorre muitas vezes variantes das realidades inventadas. E então refiz minhas suposições; suposições, quase ignoradas mais prováveis como verdadeiras. Teria preferido dizer tudo para me ofuscar em Balbec, pelo que falara de mulheres conhecer do que se assume um ar entendi mesmo ignorando o que a Sra. Vinteuil e de Andrée, parte da "confraria", e só um homem de letras pergunta, até o dia em que a recuar. A não ser que fosse por ter sabido, durante um namoro que ele teria conduzido na direção que lhe interessava, das inclinações de Gilberte pelas mulheres, é que Robert a desposara, esperando prazeres, que encontrara, pois buscava-os em outra parte. Nenhuma dessas hipóteses depois, em mulheres como a filha de Odette ou entre as jovens do pequeno lugar, existe uma tal diversidade, um tamanho acúmulo de gostos alternados, não simultâneos, que facilmente passam da ligação com uma mulher a um amor por um homem, de modo que se torna difícil definir-lhes o gosto verdade e dominante. 

Não quis pedir emprestado a Gilberte o seu exemplar de A Menina dos Olhos de Ouro, (Fille aux yeux d'or), pois que o estava lendo. Mas ela me emprestou, para ler ao dormir, nesta última noite que passei em sua casa, um livro que me causou uma impressão muito viva e singular. Era um volume do diário inédito dos Goncourt. E quando, antes de apagar a minha vela, li a passagem que tratarei mais adiante, minha falta de condições para as letras, outrora pressentida no sonho de Guermantes confirmada durante a estada cuja última noite chegara. Na noite de véspera de partida, em que, cessando o torpor dos hábitos que vão retornar, procuramos julgar-nos; pareceu-me algo menos lastimável, como se alguém não revelasse nenhuma verdade profunda; e, ao mesmo tempo, parecia-me, que a literatura não fosse aquilo que eu havia julgado. Por outro lado, menos amável me parecia o estado doentio que iria confinar-me a uma casa de saúde as belas coisas de que falam os livros não eram mais belas do que as que eu tinha visto. Mas, devido a uma estranha contradição, agora que esse livro as mencionava, sentia vontade de vê-las. Eis as páginas que li até que o cansaço me fechou os olhos: 

"Anteontem, caiu-me aqui, para me levar a jantar em sua casa, Verdurin, o antigo crítico de La Revue, autor daquele livro sobre Whistler, onde na verdade a maneira, o colorido artístico do original americano, é muitas vezes traduzida uma grande delicadeza pelo amoroso de todos os requintes, de todas as lindas pinturas que é Verdurin. Enquanto me visto para sair com ele, ouço de sua partida um discurso, onde às vezes há como que o soletrar assustado depois de uma renúncia a escrever, tão logo se realize seu casamento com a Madeleine de Fromentin; renúncia que seria devida ao hábito de tomar morfina, e que, do Verdurin, levaria a maior parte dos convivas do salão de sua mulher desconfiando que o marido jamais houvesse escrito, falar-lhe de Charles Blanc, Saint-Victor, de Saint-Beuve, de Burty, como de uns indivíduos aos quais o imaginamos inferiores. 'Ora, você, Goncourt, sabe muito bem e Gautier também, que meus salões eram coisa bem superior do que esses lamentáveis Maîtres d'autrefois da obra-prima na família de minha mulher. Depois de um crepúsculo que perto das torres do Trocadero emitem como à centelhas iguais às torres cobertas de geleia de groselha dos antigos pasteleiros. A conversa continua no carro que leva-nos ao Quai Conti onde está seu hotel que seu possuidor pretender ser o antigo hotel dos embaixadores de Veneza, onde parece haver um fumior de que fala Verdurin; uma sala decorada tal como estava à maneira das Mil e Uma Noites, de um célebre palazzo de nome que não me lembro, palazzo portando um poço cujo bocal representa uma coroação da Virgem que, segundo Verdurin é sem dúvida alguma do mais belo Sansovino e que serviria para que seus convidados jogassem a cinza dos charutos. E a verdade é que quando chegamos, à luz glauca e difusa de uma claridade da lua, verdadeiramente parecido aos que iluminam Veneza na pintura clássica, e no qual a silhueta da cúpula do Instituto faz pensar em Salute nos quadros de Guardi. Tenho um pouco a ilusão de estar a beira do Grande Canal. E a ilusão favorecida pela construção do hotel no qual no primeiro piso, não se vê o mole e pelas frases do dono da casa afirmando que o nome da Rua du Bac – nunca me ocorrera pensar tal coisa – vinha das barcas nas quais as monjas de outros tempos; as religiosas de outrora, na infância quando vivia nele minha tia Courmont, e que agora ponho a relembrar ao encontrar, quase contígua ao hotel dos Verdurin, a insígnia de Petit Dunkerque”, uma das estranhas lojas superviventes fora dos viñetados nos desenhos de Gabriel de Saint -Aubin, ali onde o século XVIII curioso devia sentar em seus momentos de ócio para o regateio das francesas e estrangeiras e “todo o mais novo que produz nas artes. Como diz uma fatura desse Petit Dunkerque, fatura da qual, conforme acredito, só Verdurin e eu possuímos uma prova e que é sem dúvida uma das volantes obras mestras de papel ornamentado no reinado de Luis XV que fazia suas contas; com seu cabeçalho representando um mar tempestuoso, cheio de navios, um mar com umas ondas como de uma ilustração da edição dos Coletores de Impostos de L'huî tre et plaideurs. A proprietária da casa, que vai sentar a seu lado, diz-me amavelmente que adornou a mesa só com crisântemos japoneses, mas uns crisântemos colocados em vasos que seriam obras de arte muito estranhos, um deles de bronze sobre os quais umas pétalas de cobre avermelhado pareciam as autênticas folhas desprendidas da flor. Estão os Cottard -o doutor e sua mulher-, o escultor polonês Viradobetski, o colecionador Swann, uma alta senhora russa, uma princesa cujo nome em of esta diz-me ao ouvido que foi ela quem atirou à queima-roupa no arquiduque a acreditar nela, eu teria na Galícia e em todo o norte da Polônia uma absolutamente excepcional, moça nenhuma prometendo a sua mão sem que o noivo é um admirador de La Faustin.'Vocês, ocidentais, não podem com isso', lança, à maneira de conclusão, a princesa, que me dá, por minha fé; ai são de uma inteligência realmente superior, 'essa penetração, por um escritor da intimidade de uma mulher'. Um homem de queixo e lábios raspados, e de mordomo, proferindo, em tom de condescendência, gracejos de ginásio que confraterniza com os primeiros da turma para os festejos Magno, é Brichot, o universitário. Ante o meu nome, pronunciado por Verdurin tem uma só palavra para mostrar que conhece nossos livros, e sinto desânimo despertado por essa conspiração que a Sorbonne organiza levando até a casa amável onde sou festejado a contradição e a hostilidade do silêncio intencional.

continua na página 021...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
Volume 7
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