sexta-feira, 23 de junho de 2023

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Como um dos lacaios da senhora Guermantes)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


Como um dos lacaios da senhora Guermantes falava muito com a Francisca, ouvi que nomeava alguns dos salões que freqüentava; mas não acertava em pronunciar os nomes pois não fazia parte de sua vida, que não via mais que através de um nome, que eram inconcebíveis.

- Esta noite haverá uma grande festa na casa da princesa de Parma. - dizia o lacaio; agora iremos, porque às cinco a senhora pega o trem de Chantilly para ir passar dois dias na casa do duque de Aumale. Eu fico aqui. Não lhe vai fazer nenhuma falta à princesa da Parma; mais de quatro vezes escreveu à senhora duquesa.

- Então não eram vocês que iam ao castelo de Guermantes este ano? 

- É a primeira vez que não passaremos ali; por causa dos resfriados do senhor duque, o médico proibiu que volte lá até que ponham um calorífero; mas antes disso, todos os anos estava ali até janeiro. Se o calorífero não estiver instalado, pode que a senhora vá alguns dias ao Cannes, a casa da duquesa de Guisa; mas ainda não é seguro. 

- E vocês vão ao teatro?

- Vamos algumas vezes à ópera, outras aos saraus da princesa de Parma, que são a cada oito dias; parece que é muito distinto o que apresentam: há comédias, ópera, de tudo. A senhora duquesa não quis custear; mas de toda maneira vamos uma vez a um camarote de uma amiga da senhora, outras vezes vamos à platéia da princesa do Guermantes, a mulher do primo do senhor duque. É irmã do duque da Baviera. Assim já volta para casa. - dizia o lacaio, que, bem que identificado com os Guermantes, tinha, entretanto uma noção política que lhe permitia tratar a Françoise com tanto respeito como se estivesse na casa de uma duquesa.- Tem saúde excelente, senhora.

- Ah, se não fosse por estas malditas pernas! Em plano, ainda seria menos mal. - (em plano queria dizer no pátio, nas ruas por onde gostava Françoise de passear, numa palavra, em terreno plano) - mas há estas diabólicas escadarias. Até logo, senhor, certamente ainda nos veremos hoje à tarde.

Desejava continuar a conversar com o lacaio por ter este lhe revelado que os filhos dos duques usam com freqüência um título de príncipe, que conservam até a morte do pai. Sem dúvida, o culto à nobreza, misturado e acomodado a um certo espírito de revolta contra ela, hereditariamente bebido nas glebas da França, deve ser bem intenso entre o seu povo. Pois Françoise, a quem se podia falar do gênio de Napoleão ou da telegrafia sem fio sem lhe atrair a atenção, e sem que ela diminuísse por um momento sequer os movimentos com que retirava as cinzas da lareira ou punha a mesa, exclamava, bastando-lhe saber dessas particularidades e que o filho caçula do duque de Guermantes era geralmente conhecido como príncipe de Oléron: 

- Como é lindo isto! - e ficava fascinada como diante de um vitral.

Françoise soube igualmente, pelo lacaio do príncipe de Agrigento, que travara relações com ela ao vir muitas vezes trazer cartas para a duquesa, que de fato ouvira muito falar, na sociedade, do casamento do marquês de Saint-Loup com a Srta. de Ambresac, e que estava quase decidido. 

Aquela vivenda, aquela frisa, para as quais a Sra. de Guermantes transbordava a sua vida, não se me afiguravam lugares menos feéricos que seus apartamentos. Os nomes de Guise, de Parma, de Guermantes-Baviera, se diferenciavam de todas as outras localidades de veraneio a que se dirigia a duquesa, e as festas diárias que o sulco de sua carruagem uma ao seu palácio. Se me informavam eles que nesses descansos e nessas festas consistiam sucessivamente a vida da Sra. de Guermantes, não me traziam qualquer esclarecimento sobre ela. Cada uma dava à vida da duquesa uma determinação diversa, mas somente a faziam mudar de mistério, sem que deixasse nada evaporar do seu, que apenas se deslocava, protegido por um tabique, encerrado em um vaso, no meio das ondas da vida de todos. A duquesa podia almoçar diante do Mediterrâneo à época do carnaval, mas na vivenda da Sra. de Guise, onde a rainha da sociedade parisiense, em seu vestido de piquê branco, no meio de numerosas princesas, não era mais que uma convidada igual às outras, e, por isso mesmo, mais emocionante ainda para mim, mais ela mesma, ao se renovar como uma estrela da dança que, na fantasia de um passo, vem tomar sucessivamente o lugar de cada uma das bailarinas suas irmãs; podia ela contemplar sombras chinesas, mas numa reunião da princesa de Parma; assistir à tragédia ou à ópera, mas na frisa da princesa de Guermantes.

Como localizamos no corpo de uma pessoa todas as possibilidades de sua vida, a lembrança das criaturas que ela conhece e que acaba de deixar ou com quem vai se encontrar, quando eu sabia, por Françoise, que a Sra. de Guermantes iria a pé almoçar na casa da princesa de Parma, via-a descer de casa ao meio-dia, com seu vestido de cetim cor-de-carne, sobre o qual o seu rosto era do mesmo matiz, como uma nuvem ao sol poente, eram todos os prazeres do faubourg Saint-Germain que eu via à minha frente, nesse pequeno volume como em uma concha, entre essas valvas lustrosas de rosado nácar.

Meu pai, no ministério, tinha um amigo, um certo A. J. Moreau, o qual, para se distinguir dos outros Moreau, tivera o cuidado de preceder sempre seu nome dessas duas iniciais, de modo que o chamavam, para abreviar, de A. J.. Ora, não sei como esse A. J. se encontrou de posse de uma poltrona para uma noite de gala na ópera; enviou-a a meu pai e, como a Berma, que eu não vira mais desde a minha primeira decepção, devia representar um ato da Fedra, minha avó conseguiu que meu pai me cedesse o ingresso. 

Para dizer a verdade, eu não ligava nenhuma importância a essa oportunidade de ouvir a Berma, que, alguns anos antes, me causara tanta agitação. E não foi sem melancolia que constatei a minha indiferença relativamente ao que outrora preferira à saúde e ao repouso. Não que fosse menos apaixonado que antes o meu desejo de poder ver de perto as parcelas preciosas de realidade que a minha imaginação entrevia. Mas esta já não as situava agora na dicção de uma grande atriz; desde minhas visitas à casa de Elstir, era a certas tapeçarias, certos quadros modernos, que eu havia transferido a fé interior que sentira outrora por aquele desempenho, por aquela arte trágica da Berma; já que minha fé e o meu desejo não vinham mais prestar um culto incessante à dicção e às atitudes da Berma, o "duplo" que possuía deles em meu coração definhara aos poucos, como aqueles outros "duplos" dos mortos do antigo Egito que era necessário alimentar constantemente para lhes manter a vida. Tal arte se tornara medíocre e mesquinha. Já nenhuma alma profunda a habitava. 

No momento em que, aproveitando o ingresso recebido de meu pai, eu subia a grande escadaria da ópera, percebi diante de mim um homem que a princípio julguei fosse o Sr. de Charlus, de quem possuía o aspecto e o porte; quando virou a cabeça para pedir uma informação a um empregado, vi que me enganara; entretanto, não hesitei em situar o desconhecido na mesma classe social, não só devido à maneira como se vestia, mas também pela forma como falava ao fiscal e às empregadas que o faziam esperar. Pois, apesar das particularidades individuais, ainda havia àquela época, entre todo homem chique e rico daquela parte da aristocracia e todo homem chique e rico do mundo das finanças ou da alta indústria, uma diferença bem marcante. Onde um desses últimos julgaria afirmar sua distinção com um tom categórico e altivo na presença de um inferior, o grão senhor, suave e sorridente, dava a impressão de considerar e de exercer a afetação da humildade e da paciência, a simulação de ser qualquer um dos espectadores, como um privilégio de sua boa educação. É provável que, ao vê-lo dissimulando desse modo, sob um sorriso cheio de bonomia, a soleira intransponível do pequeno universo especial que carregava dentro de si, mais de um filho de rico banqueiro, entrando nesse instante no teatro, teria tomado esse grão-senhor por um homem de pouca importância, se não lhe achasse uma espantosa semelhança com o retrato, recentemente reproduzido pelos jornais ilustrados, de um sobrinho do imperador da Áustria, o príncipe de Saxe, que se encontrava precisamente em Paris naquele momento. Sabia-o eu um grande amigo dos Guermantes. Chegando perto do fiscal, ouvi o príncipe de Saxe, ou o seu suposto, dizer sorrindo: - Não sei o número do camarote; foi sua prima que me disse que bastava eu perguntar pelo camarote dela.

Talvez fosse o príncipe de Saxe; e era talvez a duquesa de Guermantes (que, nesse caso, eu poderia avistar vivendo um dos momentos de sua vida inimaginável, no camarote de sua prima) que seus olhos viam em pensamento quando dizia: sua prima foi quem me disse que bastava perguntar pelo camarote -, de modo que aquele olhar risonho e especial, e aquelas palavras tão simples, me acariciavam o coração (bem mais do que o faria uma fantasia abstrata), com as antenas alternativas de uma possível felicidade e de um prestígio incerto. Pelo menos, dizendo essa frase ao fiscal, entroncava numa noitada vulgar da minha vida cotidiana uma passagem eventual em direção a um mundo novo; o corredor, que lhe indicaram depois que pronunciou a palavra camarote e pelo qual se enfiou, era úmido e gretado, parecendo levar a grutas marinhas, ao reino mitológico das ninfas das águas. Eu tinha diante de mim apenas um senhor de casaca que se afastava; porém manejava a seu redor, como a um refletor defeituoso, e sem conseguir focalizá-lo exatamente sobre ele, a idéia de que ele era o príncipe de Saxe e ia ver a duquesa de Guermantes. E, conquanto ele estivesse sozinho, essa idéia exterior a ele, impalpável, imensa e sacudida como uma projeção, parecia precedê-lo e conduzi-lo como essa Divindade, invisível para o restante dos homens, que se mantém junto do guerreiro grego.

Atingi meu lugar, sempre buscando recuperar um verso da Fedra de que não me recordava com exatidão. Tal como o recitava para mim mesmo, ele não tinha o número de sílabas requerido, mas, como não tentava contá-Ias, parecia-me não haver nenhuma medida comum entre seu desequilíbrio e um verso clássico. Não ficaria espantado se fosse preciso tirar mais de seis sílabas a esse verso monstruoso para compor um de doze pés. Mas lembrei-me dele de repente, e as irredutíveis asperezas de um mundo inumano se desfizeram como por mágica; as sílabas do verso logo preencheram a medida de um alexandrino, o que ele possuía em excesso se desprendeu com tanta facilidade de leveza como uma bolha de ar que vem rebentar à superfície da água. E, de fato, essa enormidade com que eu vinha lutando não passava de um único pé.

Um determinado número de cadeiras de primeira fila tinham sido postas à venda no escritório e foram compradas por esnobes ou curiosos que desejavam contemplar pessoas a que não teriam outra oportunidade de ver de perto. E, com efeito, era bem um pouco de sua verdadeira vida mundana, habitualmente escondida, que se poderia considerar em público, pois, tendo a princesa de Parma repartido entre seus amigos os camarotes, os balcões e as frisas, a sala era como um salão onde cada um mudava de lugar, ia sentar-se aqui ou ali, junto de uma amiga. 

A meu lado estavam pessoas vulgares que, não conhecendo os assinantes, queriam mostrar serem capazes de reconhecê-los e os nomeavam em voz alta. Acrescentavam que esses assinantes compareciam aqui como se fossem para o seu salão, com isto querendo dizer que não prestavam atenção às peças representadas. Mas era o contrário o que ocorria. Um estudante talentoso que obteve uma poltrona para ouvir a Berma só pensa em não sujar as luvas, em não aborrecer, em se acomodar com o vizinho que o acaso lhe deu, em perseguir com um sorriso intermitente o olhar fugidio, em fugir com um olhar descortês ao olhar de uma conhecida sua que descobriu na sala e que, depois de mil perplexidades, decidiu ir cumprimentar no momento em que as três pancadas, ressoando antes que tenha chegado junto dela, forçam-no a fugir como os hebreus no Mar Vermelho, por entre as ondas encapeladas dos espectadores e espectadoras que fez levantar e a quem rasga os vestidos ou pisa as botinas. Ao contrário, era porque as pessoas da sociedade estavam em seus camarotes (por detrás dos balcões, em terraço), como em pequenos salões suspensos de que fora retirada uma divisória, ou em pequenos cafés onde se vai tomar um xarope, sem se ficar intimidado pelos espelhos com moldura de ouro e os assentos vermelhos do estabelecimento de tipo napolitano; era porque pousavam uma mão indiferente sobre os fustes dourados das colunas que sustentavam esse templo de arte lírica, era porque não se achavam emocionados com as honras excessivas que pareciam lhes prestar duas figuras esculpidas que estendiam palmas e louros para os camarotes, que somente eles poderiam ter o espírito livre para escutar a peça, desde que tivessem espírito.


continua na página 16...
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