sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Gupeva - I (Alberto guardou silêncio)

Maria Firmina dos Reis


Gupeva

I 


Alberto guardou silêncio por alguns minutos, e de novo disse:

— Louco! Louco! Gastão, meu amigo, traga até as fezes do teu cálice de amargura; mas faze o sacrifício do teu amor em atenção a ti mesmo, ao teu futuro...

— O meu futuro é ela... replicou Gastão, interrompendo seu jovem amigo.

— Primeiro-tenente de marinha hoje, meu querido Gastão, breve terás uma patente superior que...

— Que me importa a mim tudo isso, Alberto, acaso isso pode indenizar-me da dor de perdê-la? Alberto, tu não és francês, o teu clima cria almas intrépidas, corações fortes, ou rudes ardendo sempre, mas em fogo belicoso: o sangue que herdaste de teus avós gira em teu peito com ambição de glória, de renome; são nobres as tuas ambições, eu as respeito; porém as minhas são destruídas de toda a vaidade... As minhas ambições, o meu querer, meu desejo resume-se todo nela. Para que me falas das grandezas deste mundo? Alberto, eu as desprezo, se não forem para repartir com ela.

— Todos nós, – lhe disse Alberto, – temos a nossa hora de loucura; também o português, meu caro, a experimenta às vezes, não obstante como dizes, o nosso clima gera corações mais rudes; mas, Gastão teus pais! Queres acaso afrontar a maldição paterna?

— Sim, tornou o jovem francês, ainda quando ela houvesse de cair sobre minha cabeça, eu não poderia esquecer a mulher a quem dedico todo o meu coração.

— Decididamente perdeste o juízo, meu caro amigo, disse Alberto comovido. Que pretendes, Gastão, fazer dessa mulher?

— Amá-la, meu Alberto, como nunca se amou mulher alguma.

— O amor, Gastão, é como um meteoro luminoso, é uma aurora boreal dos trópicos, sua duração é de momento.

— Não, redarguiu-o triste, sinto que hei de amá-la enquanto me animar um átomo de vida, sinto que seu nome será o derradeiro que hei de pronunciar à hora da morte, sinto que...

— Cala-te, Gastão, cala-te! Lhe retorquiu o jovem português; teus desvarios me causam um pungente sofrer.

E que me importa isso? disse friamente o moço francês, sabes acaso a grandeza do meu sofrimento? Sabes, bem conheces e não te apiedas de mim.

— Ingrato! Exclamou comovido o jovem oficial português. Gastão, em nome do céu, recompõe o teu juízo, não penses mais nessa mulher. Eia, promete-me, e eu...

— É impossível, Alberto. Impossível, meu amigo. Oh! Se soubesses... Alberto, eu a tenho aqui no coração. É ela a mulher dos meus sonhos de adolescência, é a visão celeste, e arrebatadora da minha infância, é o anjo que presidiu o meu nascimento. Alberto, quem a poderá resistir? Louco o que a vendo possa deixar de amá-la; louco o que a conhecendo não lhe render eterna vassalagem. Anjo na beleza, e na inocência, anjo na voz, nas maneiras, é ela superior às filhas vaporosas da nossa velha Europa. Épica é seu nome. No seu rosto, Alberto, se revela toda a candura da sua alma, e toda a singeleza dos costumes inda tão virgens da inculta América. Onde está pois o meu crime em adorá-la? Seus grandes olhos negros de doçura inexprimível falam à alma com suavíssima poesia: são harpejos da lira harmoniosa, ou notas de anjos em torno do Senhor. E esse olhar seu exprime um quê de indizível pureza que obriga a adorá-la, como se adora a Deus. Alberto, de joelhos suplicarias a essa mulher angélica, se a visses, perdão de a não teres amado mesmo sem conhecê-la, desde o dia em que começou a tua existência.

Alberto suspirou com desalento: sentia-se fraco para lutar com o coração de seu amigo. Gastão compreendeu o pesar, que malgrado seu causava ao moço português, e disse:

— Perdoa-me, meu caro amigo, perdoa-me, se te hei magoado, sofro... tanto.

Alberto não achava uma palavra para exprimir sua angústia, tomou então as mãos a seu amigo, apertou-as com efusão, e depois, apertando-o contra o seu coração, a custo exclamou:

— Meu amigo, meu irmão, fizeste bem em confiar-me tuas mágoas, eu te ajudarei no caminho espinhoso, e direi do que tens a percorrer de ora em diante. Eia, coragem, serei o teu cireneu.

Mas, o moço francês não compreendeu uma só das palavras de Alberto, e julgando que este mais compadecido lhe aplainava a senda de seus amores, ergue para ele uns olhos, onde havia gratidão, e amizade, e disse-lhe:

— Então é verdade, Alberto, que tens um coração?

— E não adivinhavas tu nos transportes de nossa amizade?

— Obrigado! – exclamou com efusão o jovem francês. – Alberto, meu Alberto, faze-me hoje um favor, um único; prometo-te que será o último que te peço.

— Fala, mas não peças coisa que se assemelhe a uma loucura.

— Cruel! Chamas loucura ao sentimento mais santo, que Deus implantou no coração do homem!...

— Fala – vejamos o que exiges de mim.

— Bem sabes, Alberto, que devo entrar hoje de quarto...

— Queres que entre eu em teu lugar?

— Sim, quero que entres em meu lugar.

— Pois não, meu caro.

Gastão envolveu o amigo entre seus braços; era a expressão sincera da sua gratidão. Guardam um momento de silêncio, só interrompido pelo murmúrio das vagas que se chocavam, e pelo sibilar do vento nas enxárcias.

— Que pretendes fazer desta noite, Gastão? – interrogou o jovem português.

— Não o adivinhaste já, meu querido Alberto? Ah! Ela espera-me; eu lho prometi.

— Compreendo-te! Gastão, o teu delírio, meu caro amigo, te faz ingrato. És surdo a minha voz, sensível aos extremos da amizade... Vai, Gastão, vê essa mulher que te fascinou, como fascinam as cobras do seu país a míseros pássaros. Tu também és um pássaro, nascido em regiões estranhas, que alevantaste o teu voo, atravessaste os mares, e pousaste amoroso nas franças do pau d’arco americano; Gastão, não te deixes atrair da serpente venenosa: goza um momento disso, a que chamas a tua felicidade; mas desprende novamente o voo. Gastão, eu te aguardo só antes do romper da alva. Jura-me pela honra.

— Juro-o – exclamou o moço francês, com indefinível expressão.

O comandante estava em terra. Alberto acenou para Gastão de uma lancha.
Então os dois mancebos, como se naquela despedida se dissessem um adeus eterno, de novo em um fraterno amplexo uniram seus jovens corações, onde tão diversos sentimentos se cruzavam,
E a lancha, cortando vagarosamente as águas, deixava após si estreito, e espumoso rasteiro. Cinco minutos depois abicou em terra.
Alberto seguiu-a com o coração: depois um profundo suspiro lhe fugiu do peito, que malgrado seu gotejava sangue.

continua na página 157...
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Gupeva - I (Alberto guardou silêncio)
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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