quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Tédio (XXIX)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXIX

O TÉDIO


Sacrificar-se por suas paixões, isso passa; mas por paixões que não se tem! 
Ó triste século XIX!

GIRODET


DEPOIS DE TER LIDO SEM PRAZER, a princípio, as longas cartas de Julien, a sra. de Fervaques começava a interessar-se por elas; mas uma coisa a desolava: Que pena que o sr. Sorel não seja decididamente padre! Ela poderia admiti-lo a uma espécie de intimidade; mas, com aquela medalha e o traje quase burguês, havia o risco de expor-se a perguntas cruéis, e que responder? Ela não concluía o pensamento: alguma amiga maligna pode supor e mesmo espalhar que ele é um primo subalterno, parente de meu pai, algum comerciante condecorado pela guarda nacional.
Até o momento de conhecer Julien, o maior prazer da sra. de Fervaques fora escrever a palavra marechala ao lado de seu nome. Depois, uma vaidade doentia de quem subiu na vida e ofende-se com tudo, combateu um começo de interesse.
Seria tão fácil para mim, dizia-se a marechala, fazer dele um grande vigário em alguma diocese vizinha de Paris! Mas o sr. Sorel, desse jeito, e ainda por cima secretário do sr. de La Mole, é desolador! 
Pela primeira vez, essa alma que temia tudo era agitada por um interesse alheio a suas pretensões de classe e de superioridade social. Seu velho porteiro notou que, quando trazia uma carta daquele belo jovem de aspecto tão triste, era certo ver desaparecer o ar distraído e descontente que a marechala sempre tinha o cuidado de exibir à chegada de um dos criados.
O tédio de um modo de vida muito preocupado com o efeito sobre o público, sem que houvesse no fundo do coração prazer real por esse tipo de sucesso, tornara-se tão intolerável depois que pensava em Julien que, para que as camareiras não fossem maltratadas durante o dia, era suficiente que, na noite da véspera, ela tivesse passado uma hora com esse jovem singular. Seu crédito nascente resistiu a cartas anônimas, muito bem produzidas. Em vão o pequeno Tanbeau forneceu aos srs. de Luz, de Croisenois, de Caylus, duas ou três calúnias muito hábeis e que esses senhores comprazeram-se em divulgar sem verificar a veracidade das acusações. A marechala, cujo espírito não era feito para resistir a esses meios vulgares, contava suas dúvidas a Mathilde, e sempre era consolada. 
Um dia, após ter perguntado três vezes se havia cartas, a sra. de Fervaques decidiu subitamente responder a Julien. Foi uma vitória sobre o tédio. Na segunda carta, a marechala foi quase detida pela inconveniência de escrever, de próprio punho, um endereço tão vulgar: Ao sr. Sorel, na casa do sr. marquês de La Mole.

– É preciso, disse ela à noite a Julien, de um modo muito seco, que o senhor me traga envelopes nos quais constará seu endereço.

Eis-me transformado em amante-criado, pensou Julien, e ele inclinou-se com prazer imitando Arsène, o velho mordomo do marquês.
Nessa mesma noite entregou envelopes e, no dia seguinte bem cedo, recebeu uma terceira carta: leu cinco ou seis linhas no começo e duas ou três no final. Eram quatro páginas escritas em letra miúda. 
Aos poucos ela adquiriu o doce hábito de escrever quase diariamente. Julien respondia com cópias fiéis das cartas russas e – tal é a vantagem do estilo enfático – a sra. de Fervaques de modo nenhum se surpreendia com a pouca relação das respostas com suas cartas.
Qual não teria sido a irritação de seu orgulho se o pequeno Tanbeau, que se constituíra espião voluntário dos passos de Julien, tivesse podido informar-lhe que todas essas cartas eram jogadas ao acaso, ainda fechadas, na gaveta de Julien. 
Certa manhã, o porteiro levava-lhe à biblioteca uma carta da marechala; Mathilde encontrou esse homem, viu a carta e o endereço com a letra de Julien. Ela entrou na biblioteca quando o porteiro saía; a carta ainda estava na borda da mesa; Julien, muito ocupado em escrever, não a pusera na gaveta. 
 
– Isso eu não posso tolerar, exclamou Mathilde, apoderando-se da carta; você me esquece completamente, a mim que sou sua esposa. Sua conduta é detestável, senhor.

A essas palavras, seu orgulho, espantado com a terrível inconveniência de sua atitude, a sufocou; ela desatou a chorar e logo pareceu a Julien perder o fôlego.
Surpreso, confundido, Julien não distinguia claramente tudo o que essa cena tinha de admirável e de feliz para ele. Ajudou Mathilde a sentar-se; ela quase abandonava-se em seus braços.
O primeiro instante em que percebeu esse movimento foi de extrema alegria. O segundo foi um pensamento para Korasoff: posso perder tudo com uma única palavra.
Seus braços enrijeceram, tamanha era a dificuldade do esforço imposto pela política. Não devo sequer permitir-me pressionar contra o coração esse corpo macio e encantador, ou ela me despreza e me maltrata. Que caráter medonho!
E, ao maldizer o caráter de Mathilde, ele a amava cem vezes mais; parecia-lhe ter nos braços uma rainha.
A impassível frieza de Julien redobrou o orgulho ferido que dilacerava a alma da srta. de La Mole. Ela estava longe ter o sangue-frio necessário para buscar adivinhar em seus olhos o que ele sentia por ela nesse instante. Não pôde decidir-se a olhá-lo: temia deparar com a expressão do desprezo.
Sentada no divã da biblioteca, imóvel e com a cabeça virada para o lado oposto de Julien, ela estava exposta aos mais vivos sofrimentos que o orgulho e o amor podem causar a uma alma humana. Em que situação cruel fora cair!
Estava-me reservado, infeliz que sou, ver repelidas as iniciativas mais indecentes! E repelidas por quem? acrescentava seu orgulho enlouquecido de dor. Repelidas por um criado de meu pai.

– É o que não vou mais tolerar, disse ela em voz alta.

E, levantando-se com furor, abriu a gaveta da mesa de Julien, a dois passos diante dela. Ficou como transida de horror ao ver ali oito ou dez cartas ainda não abertas, semelhantes àquela que o porteiro acabara de trazer. Em todos os endereços, reconhecia a letra de Julien, mais ou menos dissimulada.

– Então não apenas está com ela, exclamou fora de si, como também a despreza. Você, um homem insignificante, desprezar a marechala de Fervaques! 

Ah!, perdão, meu amigo, ela acrescentou jogando-se a seus joelhos, despreza-me se queres, mas me ama, não posso mais viver privada de teu amor. E caiu completamente desfalecida.
Eis aí, enfim, essa orgulhosa a meus pés!, pensou Julien.  

continua página 291...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: O Tédio (XXIX)

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