terça-feira, 24 de outubro de 2023

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (53)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas


SEGUNDA PARTE

LIII – A CONDESSA DE L’ESTORADE À SRA. GASTÃO

Querida Luísa, li e reli tua carta e quanto mais a aprofundei mais vi em ti uma criança do que uma mulher; não mudaste, esqueces o que te disse mil vezes: o Amor é um roubo feito pelo estado social ao estado natural; ele é tão passageiro na natureza que os recursos da sociedade não lhe podem mudar as condições primitivas: por isso, todas as almas nobres tentam fazer um homem dessa criança; mas então o amor, segundo tu mesma, torna-se uma monstruosidade. A sociedade, querida, quis ser fecunda. Ao substituir a fugitiva loucura da natureza por sentimentos duradouros, ela criou a maior instituição humana: a Família, base eterna das Sociedades. Sacrificou tanto o homem quanto a mulher à sua bela obra; pois, não nos iludamos, o pai de família dá a sua atividade, as suas forças, todas as suas fortunas à esposa. Não é a mulher quem goza de todos os sacrifícios? O luxo, a riqueza, não lhe toca quase tudo a ela? Para ela a glória e a elegância, a doçura e a flor da casa. Ó, meu anjo, mais uma vez encaras mal a vida. Ser adorada é um tema para moças, bom para algumas primaveras, mas que não poderia ser o de uma mulher, esposa e mãe. Bastará, talvez, para a vaidade da mulher saber que se pode fazer adorar. Se queres ser esposa e mãe, volta a Paris. Deixa-me repetir-te que te perderás pela felicidade como outros se perdem pela desventura. As coisas que não nos cansam, o silêncio, o pão, o ar são irrepreensíveis por não terem sabor; ao passo que as coisas que o têm e irritam os nossos desejos acabam por saciá-los. Ouve-me, filha! Agora, mesmo que eu pudesse ser amada por um homem pelo qual eu sentisse nascer em mim o amor que tributas a Gastão, eu saberia manter-me fiel aos meus caros deveres e à minha querida família. A maternidade, meu anjo, é para o coração da mulher uma dessas coisas simples, naturais, férteis e inesgotáveis, como as que são os elementos da vida. Lembro-me de ter um dia, breve fará catorze anos, adotado o devotamento como um náufrago se agarra ao mastro de seu navio, por desespero; hoje, entretanto, quando evoco pela imaginação toda a minha vida, eu escolheria ainda esse sentimento como o princípio de minha existência, por ser ele o mais seguro e mais fecundo de todos. O exemplo da tua vida, baseada num egoísmo feroz, conquanto mascarado pela poesia do coração, fortificou a minha resolução. Nunca mais te direi essas coisas, mas precisava dizê-las uma última vez ainda, ao saber que tua felicidade resiste à mais terrível das provas.
Tua vida no campo, objeto de minhas meditações, sugeriu-me esta outra observação que devia comunicar-te. Nossa vida, tanto para o corpo, como para o coração, é composta de certos movimentos regulares. Todo excesso, trazido a esse mecanismo, é uma causa de prazer ou de dor; ora, o prazer ou a dor são uma febre da alma, essencialmente passageira, porque não pode ser suportada muito tempo. Fazer do excesso a própria vida, não é isso viver doente? Vives doente, por manteres no estado de paixão um sentimento que, no matrimônio, deve tornar-se uma força uniforme e pura. Sim, meu anjo, reconheço hoje: a dignidade do lar está justamente nessa calma, nesse profundo conhecimento mútuo, nessa troca de bens e de males, que os gracejos vulgares lhe censuram. Oh! Como é grande aquele dito da duquesa de Sully, a mulher do grande Sully,[1] a quem diziam que o marido, por mais grave que parecesse, não tinha escrúpulos em ter uma amante: “É muito simples”, respondeu ela, “eu sou a honra da casa, e ficaria muito triste de representar nela o papel de uma cortesã”. Mais voluptuosa do que terna, queres ser a esposa e a amante. Com a alma de Heloísa e os sentidos de Santa Teresa,[2] entregas-te a desvios sancionados pelas leis; numa palavra, depravas a instituição do casamento. Sim, tu que me julgavas tão severamente, quando eu parecia imoral aceitando, desde a véspera do meu casamento, os meios da felicidade, dobrando tudo ao teu ponto de vista, hoje mereces as censuras que me dirigias. Como! Queres submeter natureza e sociedade ao teu capricho? Permaneces tu mesma, não te transformas no que uma mulher deve ser; conservas as vontades, as exigências de donzela, e empregas na tua paixão os cálculos mais exatos e mais mercantis! Não estás vendendo por preço exorbitante os teus adornos? Acho-te muito desconfiada, com todas essas precauções. Oh! Querida Luísa, se pudesses conhecer as doçuras do trabalho que as mães têm consigo mesmas, para serem boas e ternas com toda a família! A independência e a altivez de meu caráter fundiram-se numa doce melancolia, que os prazeres maternais dissiparam recompensando-a. Se a manhã foi difícil, a tarde será pura e serena. Tenho receios de que em tua vida se dê exatamente o contrário.
Ao terminar tua carta, supliquei a Deus que te fizesse passar um dia entre nós para te converter à família, a essas alegrias indizíveis, constantes, eternas, porque são verdadeiras, simples e naturais. Mas ai de mim! Que pode a minha razão contra uma falta que te faz feliz? Ao te escrever estas palavras, tenho lágrimas nos olhos. Acreditei francamente que vários meses concedidos a esse amor conjugal te devolveriam à razão pela saciedade; mas vejo-te insaciável e, depois de teres matado um amante, chegarás a matar o amor. Adeus, querida transviada, desespero, porque a carta pela qual eu esperava restituir-te à vida social pela descrição da minha felicidade não serviu senão para a glorificação do teu egoísmo. Sim, só tu existes no teu amor, e amas Gastão muito mais por ti do que por ele mesmo.

continua pág 371...
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[1] O grande Sully: Maximilien de Béthune, duque de Sully, estadista, amigo de Henrique iv; famoso por sua boa atuação nas pastas da Fazenda e da Agricultura.
[2] A alma de Heloísa e os sentidos de Santa Teresa: estes dois nomes são aqui sinônimos, respectivamente, de “uma amante apaixonada” e de “uma mística”.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)
Primeira Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)
Segunda Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (42a)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (48)
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