segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Ulisses - Parte 1 (3b): Ele parou

Ulisses

James Joyce

Parte 1

3

continuando...


Ele parou. Deixei pra trás o caminho para a casa de tia Sara. Será que eu não vou lá? Parece que não. Ninguém à volta. Ele se voltou para o nordeste e atravessou a areia mais firme em direção ao Pigeonhouse.

Qui vous a mis dans cette fichue position?

C’est le pigeon, Joseph.

Patrice, de licença em casa, bebeu leite morno comigo no bar MacMahon. Filho do ganso selvagem, Kevin Egan de Paris. Meu pai é um passarinho, ele lambeu o lait chaud doce com sua língua cor-de-rosa de jovem e rosto rechonchudo de coelhinho. Lambida, lapin. Ele tem esperança de ganhar no gros lots. Ele leu a respeito da natureza das mulheres em Michelet. Mas ele precisa me mandar La Vie de Jésus de M. Léo Taxil. Ele emprestou a um amigo.

C’est tordant, vous savez. Moi, je suis socialiste. Je ne crois pas en l’existence de Dieu. Faut pas le dire à mon père.

Il croit?

Mon père, oui.

Schluss. Ele lambe.
Meu chapéu do Quartier Latin. Meu Deus, nós simplesmente precisamos vestir direito o personagem. Eu quero luvas de pelica. Você era um estudante, não era? De quê, em nome do outro diabo? Peceene. P.C.N., você sabe: physiques, chimiques et naturelles. Ah! Ah! Comendo o equivalente a um bocado de mou en civet, panelas de carne do Egito, tendo ao lado cocheiros a arrotar. Diga apenas no tom mais natural possível: quando eu estava em Paris, boul’ Mich’, eu costumava. É, eu costumava trazer comigo bilhetes picotados para servirem de álibi se me prendessem por assassinato em algum lugar. Justiça. Na noite de 17 de fevereiro de 1904 o prisioneiro foi visto por duas testemunhas. Um outro camarada fez isso: um outro eu. Chapéu, gravata, sobretudo, nariz. Lui, c’est moi. Você parece ter se divertido.
Andando ufanamente. De quem você estava tentando imitar o andar? Esqueça: um despojado. Com a ordem de pagamento da mãe, oito shillings, fechada com violência a porta do correio que o porteiro bateu em sua cara. Fome, dor de dente. Encore deux minutes. Olhe para o relógio. Preciso receber. Fermé. Funcionário miserável! Atire nele com um tiro barulhento até ficar em pedacinhos, pedacinhos do homem botões de metal tudo salpicado nas paredes. Os pedaços todos criquecraque estalando de volta ao seu lugar. Não está machucado? Ó, tudo bem. Aperte aqui a mão. Percebe o que eu quero dizer, percebe? Ó, está tudo bem. Aperto de mão daqui e dali. Ó, está tudo simplesmente muito bem.

Você ia fazer maravilhas, se lembra? Missionário na Europa como o ardente Columbano. Fiacre e Scotus empoleirados no céu em seus tamboretes cospem sua cerveja ao rirem alto em latim: Euge! Euge! Fingindo falar um inglês estropiado ao arrastar a sua valise, carregador três pence, através do píer pegajoso de Newhaven. Comment? Que rico despojo você trouxe de volta. Le Tutu, cinco números esfarrapados de Pantalon Blanc et Culotte Rouge, um telegrama francês azul, uma curiosidade a mostrar:

– Mãe morrendo venha para casa pai.

A tia acha que você matou sua mãe. É por isso que ela não quer.

E aqui vai um brinde à tia de Mulligan
Pela simples razão que ela sempre manteve
As coisas todas certinhas e muito decentes
Na inteira família Hanniganneve.

Seus pés marcharam com um ritmo subitamente orgulhoso sobre os sulcos de areia ao longo dos penedos da amurada sul. Ele as fixou altivamente, pedras empilhadas crânios de mamutes. Luz dourada sobre o mar, sobre a areia, sobre blocos de pedra. O sol está ali, as árvores esbeltas, as casas limão.
Paris despertando cruamente, luz solar tosca sobre as ruas limão. Bolinhos de miolo úmido de pão, absinto, seu incenso matinal, cortejam a atmosfera. Belluomo se levanta da cama da mulher do amante de sua mulher, a dona de casa de lenço na cabeça se movimenta, com um pires com ácido acético em sua mão. Na pastelaria Rodot Yvonne e Madeleine recompõem suas belezas enrugadas, despedaçando pastéis com seus dentes de ouro, suas bocas amareladas com o pus do flan breton. Rostos de parisienses passam, com suas suíças satisfeitonas, conquistadores de cabelos anelados.
Sonolência do meio-dia. Kevin Egan enrola cigarros à maneira de estopim de pólvora através de dedos manchados de tinta de impressora, bebericando sua fada verde assim como Patrice sua fada branca. À nossa volta comilões engarfam feijão condimentado goela abaixo. Un demi setier! Um jato de vapor de café sai da cafeteira polida. A um sinal dele ela me serve. Il est irlandais. Hollandais? Non fromage. Deux irlandais, nous, Irlande, vous savez? Ah, oui! Ela pensou que você queria um queijo hollandais. Seu pós-prandial, você conhece essa palavra? Pós-prandial. Havia um camarada que eu conheci em Barcelona, um camarada esquisito, que costumava chamar isso de seu pós-prandial. Ora: slainte. Em volta das mesas de lajes de mármore o emaranhado de hálitos recendendo a vinho e de gargantas sussurrantes. Seu bafo paira acima dos nossos pratos manchados de molho, a fada verde enfiando suas presas entre os lábios dele. Sobre a Irlanda, os Dalcassians, sobre esperanças, conspirações, sobre Arthur Griffith agora, AE, poimandres, bom pastor de homens. Juntar-me a ele como seu parceiro, nossos crimes nossa causa comum. Você é bem o filho de seu pai. Eu reconheço a voz. Sua camisa de fustão com flores vermelhas agita seus pompons espanhóis quando ele confia seus segredos. M. Drumont, famoso jornalista, Drumont, você sabe como ele chamava a rainha Vitória? Velha megera de dentes amarelos. Vieille ogresse de dents jaunes. Maud Gonne, mulher bonita, la Patrie, M. Millevoye, Félix Faure, sabe como ele morreu? Homens libertinos. A froeken, bonne à tout faire, que esfrega a nudez masculina no banho em Upsala. Moi faire, disse ela, tous les messieurs. Não este monsieur, disse eu. Um costume muito libidinoso. O banho é uma coisa muito particular. Eu não deixaria meu irmão, nem mesmo o meu irmão, uma coisa muito libidinosa. Olhos verdes, eu vejo você. Presas, eu sinto. Raça libidinosa.
A mecha azul queima agonizante por entre as mãos e queima claro. Fragmentos de tabaco soltos pegam fogo: uma chama e uma fumaça acre iluminam o nosso canto. Maçãs do rosto ossudas debaixo de seu chapéu de conspirador. Como o cabeça do grupo escapou, versão autêntica. Vestiu-se como uma jovem noiva, homem, véu, flores de laranja, de carro pela estrada para Malahide. Fez isso, por certo. Sobre líderes desaparecidos, os traídos, fugas fantásticas. Disfarces, agarrados, sumidos, não mais aqui.
Amante rejeitado. Eu era um rapaz jovem e forte naquele tempo, eu lhe digo. Algum dia eu vou lhe mostrar qual era a minha aparência. Eu era assim, garanto. Apaixonado, por amor a ela ele rodou com o coronel Richard Burke, sucessor do chefe de seu clã, agachados fora dos muros de Clerkenwell, eles viram uma chama de vingança os lançar para o alto no nevoeiro. Vidro estilhaçado e alvenaria ruída. Na alegre Paris ele se esconde, Egan de Paris, não procurado por ninguém a não ser por mim. Fazendo de suas bases diurnas a tipografia suja, suas três tavernas, ele dorme uma noite curta na toca de Montmartre, rue de la Goutte-d’Or, adamascada com os rostos deteriorados dos que já se foram. Desamado, desterrado, descasado. Ela está bem satisfeita e tranquila sem o seu homem proscrito, a senhora na rue Gît-le-Coeur, com seu canário e dois inquilinos janotas. Faces aveludadas, uma saia listrada, brincalhona como é uma coisinha jovem. Rejeitado e não desesperançado. Diga a Pat que você me viu, está bem? Certa vez eu quis arranjar um emprego para o pobre Pat. Mon fils, soldado da França. Eu o ensinei a cantar Os rapazes de Kilkenny são espadachins corajosos e exuberantes. Conhece essa velha canção? Eu ensinei isso a Patrice. Velho Kilkenny: São Canice, o castelo de Strongbow em Nore. É assim. O, O. Ele me leva, Napper Tandy, pela mão.

O, O os rapazes de
Kilkenny...

Mão frágil desgastada na minha. Eles se esqueceram de Kevin Egan, não ele deles. Lembrando de ti, O Sion.
Ele se aproximara da beira do mar e a areia molhada bateu em suas botas. O novo ar o saudou, tocando os nervos desenfreados, vento do ar turbulento das sementes de claridade. Espere, eu não estou caminhando para o navio farol de Kish Bank, estou? Ele se deteve subitamente, seus pés começando a afundar lentamente no solo oscilante. Volte para trás.
Voltando, ele examinou o lado sul da praia, com seus pés afundando novamente lentamente em novos encaixes. O quarto abobadado e frio da torre me aguarda. Através das barbacãs os raios de luz estão sempre se movendo, sempre lentamente enquanto meus pés afundam, se arrastando em direção à sombra da noite sobre o solo quadrante solar. Crepúsculo azul, o cair da noite, noite de um azul profundo. Na escuridão da cúpula eles esperam, com as cadeiras empurradas para trás, minha valise obeliscal em volta de uma mesa com travessas abandonadas. Quem vai limpar isso? Ele tem a chave. Eu não vou dormir lá quando a noite chegar. Uma porta fechada de uma torre silenciosa, sepultando seus corpos insensíveis, o panterasahib e seu pointer. Chamada: nenhuma resposta. Ele ergueu os pés da sucção arenosa e voltou para trás pelo quebra-mar. Pegue tudo, fique com tudo. Minha alma caminha comigo, forma das formas. Assim sob as meias-vigílias da lua eu ando a passos largos pelo caminho acima das rochas, de areia prateada, ouvindo a torrente tentadora de Elsinore.
A torrente está me seguindo. Eu posso observá-la passando por aqui fluindo. Volte então pela Poolbeg Road para a praia ali. Ele galgou a junça e algas litorâneas escorregadias e se sentou num banco de pedra, repousando sua bengala numa fenda.
Uma carcaça intumecida de um cachorro estava refestelada num destroço inflado. Diante dele a amurada de um barco, fincada na areia. Un coche ensablé era como Louis Veuillot chamava a prosa de Gautier. Estas areias pesadas são a linguagem usada pela maré e o vento para obstruir aqui com aluvião. E estes montes de pedras dos construtores mortos, um viveiro de fuinhas. Esconda ouro aqui. Experimente. Você tem algum. Bancos de areia e pedras. Com o peso do passado. Os brinquedos de sir Lout. Cuidado para não levar um estrondo no ouvido. Eu sou o maldito gigante que faz rolar miseravelmente bem pedras grandes, ossadas miseravelmente boas para me servirem de degraus. Fiifófam. Eu zsinto o zcheiro do zsangue de zum zirlandês.
Um ponto, um cão vivo, surgiu à vista correndo ao longo da praia. Meu Deus, será que ele vai me atacar? Respeite a liberdade dele. Você não será o patrão dos outros ou o escravo deles. Eu tenho a minha vareta. Sente-se firme. De bem longe, caminhando em direção à praia do outro lado das ondas encrespadas, figuras, duas. As duas marias. Elas cobriram aquilo bem escondido por entre os juncos. Piquebês. Eu vejo vocês. Não, o cachorro. Ele está correndo de volta para elas. Quem?
Galeras de Lochlanns afluíram aqui na praia em busca de presas, com suas proas de bicosvermelhos rasantes sobre a arrebentação de metal derretido. Vikings dinamarqueses, com colares de metal como os dos tomahawks cintilantes no peito quando Malachi usou o colar de ouro. Um cardume de baleias turlehides no calor do meio-dia, esguichando, cambaleando, encalhou nos bancos de areia. Então da fortificação engaiolante da cidade faminta uma horda de anões vestindo jaquetas, meu povo, com facas esfoladoras, correram, escamaram, retalharam aos prantos carne-de-baleia. Fome, peste e carnificinas. O sangue deles está em mim, seus desejos são minhas avalanches. Eu, criança trocada ao nascer, me movimentei entre eles sobre o Liffey congelado, entre as fogueiras que expeliam resina. Eu não falei com ninguém e ninguém comigo.
O latido do cachorro correu em direção a ele, parou, correu de volta. Cão do meu inimigo. Eu simplesmente parei pálido, silencioso, acuado. Terribilia meditans. Um gibão amarelo pálido, destino de um velhaco, sorriu do meu medo. É por isso que você está penando, pelo latido do aplauso deles? Pretendentes: vivem as vidas deles. O irmão de Bruce, Thomas Fitzgerald, cavalheiro sedoso, Perkin Warbeck, falso herdeiro de York, de calças de seda cor de marfim rosado, maravilha de um dia, e Lambert Simnel, com uma comitiva de empregadas domésticas e vivandeiros, um ajudante de cozinha coroado. Todos filhos de reis. Paraíso de pretendentes outrora e agora. Ele salvou homens de se afogarem e você estremece com o ganido de um vira-lata. Mas os cortesãos que zombaram de Guido em Or san Michele estavam em suas próprias casas. Casa de... Nós não queremos nenhuma de suas obscuridades medievais. Você faria o que ele fez? Um barco estaria perto, uma boia de salvamento. Natürlich, posta ali para você. Faria ou não faria? O homem que se afogou nove dias atrás perto do rochedo de Maiden. Eles estão esperando por ele agora. A verdade, cuspa ela fora. Eu gostaria de. Eu tentaria. Eu não sou um bom nadador. Água macia e fria. Quando eu pus minha cara nela na bacia em Clongowes. Não consigo ver! Quem está atrás de mim? Fora rápido, rápido! Você está vendo a corrente fluindo rapidamente de todos os lados, cobrindo rapidamente com seus lençóis os bancos de areia cordeconchachocolate? Se eu tivesse terra sob os meus pés. Eu quero que a vida dele seja ainda dele, a minha seja minha. Um homem se afogando. Seus olhos humanos clamam para mim do horror de sua morte. Eu... Junto com ele embaixo... Eu não pude salvá-la. Águas: morte amarga: perdida.

continua na página 52...
_______________

Ulisses - Parte 1 (3b): Ele parou
_______________________
Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

Nenhum comentário:

Postar um comentário