segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte V (b) - A Afilhada

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto


A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 


TERCEIRA PARTE


V - A Afilhada

continuando...

Lembrou-se, porém, de Albernaz, e correu a procurá-lo. Não era longe, mas o general ainda não tinha chegado. Ao fim de uma hora o general chegou e, dando com Ricardo, perguntou:

- Que há?

O trovador, bastante emocionado, explicou-lhe com voz dorida todo o fato. Albernaz concertou o pince-nez, ajeitou bem o trancelim de ouro na orelha e disse com doçura: 

- Meu filho, eu não posso... Você sabe; sou governista e parece, se eu for pedir por um preso, que já não o sou bastante... Sinto muito, mas... que se há de fazer? Paciência. 

E entrou para o seu gabinete prazenteiro, muito seguro de si, dentro do seu plácido uniforme de general. 
Os oficiais continuavam a entrar e a sair; as campainhas soavam; os contínuos iam e vinham; e Ricardo procurava entre todas aquelas fisionomias uma que lhe pudesse valer. Não havia e ele desesperava. Mas quem havia de ser? Quem? Lembrou-se: o comandante; e foi ter com o Coronel Bustamante, na velha estalagem que servia de quartel ao garboso “Cruzeiro do Sul”.
O batalhão ainda continuava em pé de guerra. Embora terminada a revolta no porto do Rio de Janeiro era preciso mandar forças para o Sul; de forma que os batalhões não tinham sido dissolvidos e um dos apontados para partir era o “Cruzeiro”.
O alferes coxo, no ensaboado pátio da antiga estalagem, continuava na sua faina de instrutor dos novos recrutas. Om - brôôô... armas! Mei - ãã volta!
Ricardo entrou, subiu rapidamente a oscilante escada do velho cortiço e logo que chegou ao cubículo do comandante, gritou: “Com licença, comandante!” 
Bustamante andava de mau humor. Aquele negócio de partir para o Paraná não lhe agradava. Como é que havia de superintender a escrita do batalhão, no fervor de batalhas, nas desordens de marchas e contramarchas? Isso era uma tolice do comandante marchar; o chefe devia ficar a resguardo, para providenciar e dirigir a escrituração. 
Ele pensava nessas cousas, quando Ricardo pediu licença.

- Entre, disse ele.

O bravo coronel coçava a grande barba mosaica, tinha o dólmã desabotoado e acabava de calçar um dos pés de botina, para com mais decência receber o inferior. 
Ricardo expôs o seu pedido e esperou com paciência a resposta, que custou a vir. Por fim, Inocêncio disse, sacudindo a cabeça e olhando o inferior cheio de severidade: 

- Vai-te embora, senão mando-te prender! Já! 

E apontou com o dedo a porta da saída num gesto marcial e enérgico. O cabo não se demorou mais. 
No pátio o instrutor coxo, veterano do Paraguai, continuava com solenidade a encher a arruinada estalagem com as suas vozes de comando: Om-brôôô... armas! Meia-ãã... volta... volver!
Ricardo veio andando triste e desalentado. O mundo lhe parecia vazio de afeto e de amor. Ele que sempre decantara nas suas modinhas a dedicação, o amor, as simpatias, via agora que tais sentimentos não existiam. Tinha marchado atrás de cousas fora da realidade, de quimeras. Olhou o céu alto. Estava tranquilo e calmo. Olhou as árvores. As palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente pretendiam atingir o céu. Olhou as casas, as igrejas, os palácios e lembrou-se das guerras, do sangue, das dores que tudo aquilo custara. E era assim que se fazia a vida, a história e o heroísmo: com violência sobre os outros, com opressões e sofrimentos. 
Logo, porém, recordou que era preciso salvar o amigo e que era necessário dar mais uns passos. Quem poderia? Consultou sua memória. Viu um, viu outro e por fim lembrou-se da afilhada de Quaresma, e foi procurá-la na Real Grandeza.
Chegou, narrou-lhe o fato e as suas sinistras apreensões. Ela estava só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os despojos da vitória; não perdia um minuto, andando atrás de um e de outro. 
Olga lembrou-se bem do padrinho, do seu eterno sonhar, da sua ternura, da tenacidade que punha em seguir as suas ideias, da sua candura de donzela romântica... 
Durante um instante uma grande pena tomou-a toda inteira e tirou-lhe a vontade de agir. Pareceu-lhe que era bastante a sua piedade e ela ia de algum modo dar lenitivo ao sofrimento do padrinho; mas bem cedo o viu ensanguentado - ele, tão generoso, ele, tão bom, e pensou em salvá-lo.

- Mas que fazer, meu caro Senhor Ricardo, que fazer? Eu não conheço ninguém... Eu não tenho relações... Minhas amigas... A Alice, a mulher do Doutor Brandão, está fora... A Cassilda, a filha do Castrioto, não pode... Não sei, meu Deus!

E acentuou estas últimas palavras com grande e lancinante desespero. Os dous ficaram calados. A moça, que estava sentada, tomou a cabeça entre as mãos e as suas unhas longas e aperoladas engastaram-se nos seus cabelos negros. Ricardo estava de pé e aparvalhado.

- Que hei de fazer, meu Deus? repetiu ela. 

Pela primeira vez, ela sentiu que a vida tinha cousas desesperadoras. Possuía a mais forte disposição de salvar seu padrinho; faria sacrifício de tudo, mas era impossível, impossível! Não havia um meio; não havia um caminho. Ele tinha que ir para o posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de ressurreição. 

- Talvez seu marido, disse Ricardo. 

Pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caráter do esposo; mas, em breve, viu bem que o seu egoísmo, a sua ambição e sua ferocidade interesseira não permitiriam que ele desse o mínimo passo. 

- Qual, esse... 

Ricardo não sabia o que aconselhá-la e olhava sem pensamentos os móveis e a montanha negra e alta que se avistava da sala onde estavam. Queria encontrar um alvitre, um conselho; mas nada! A moça continuava a cravar os dedos nos seus cabelos negros e a olhar a mesa em que repousavam os seus cotovelos. O silêncio era augusto. 
Num dado momento, Ricardo teve uma grande alegria no olhar e disse: 

- Se a senhora fosse lá... 

Ela levantou a cabeça; os seus olhos se dilataram de espanto e o rosto lhe ficou rígido. Pensou um pouco, um nada, e falou com firmeza: 

- Vou. 

Ricardo ficou só e sentou-se. Olga foi vestir-se. 
Ele então pensou com admiração naquela moça que por simples amizade se dava a tão arriscado sacrifício, que tinha a alma tão ao alcance dela mesma e a sentiu bem longe desse nosso mundo, deste nosso egoísmo, dessa nossa baixeza e cobriu a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento.   
Não tardou que ela ficasse pronta e ainda abotoava as luvas, na sala de jantar, quando o marido entrou. Vinha radiante, com os seus grandes bigodes e o seu rosto redondo cheio de satisfação de si mesmo. Nem fez menção de ter visto Ricardo e foi logo direto à mulher:

- Vais sair?

Ela, afogueada pela ânsia desesperada de salvar Quaresma, disse com certa vivacidade: 

- Vou. 

Armando ficou admirado de vê-la falar daquele modo. Voltou-se um instante para Ricardo, quis interrogá-lo, mas logo, dirigindo-se à mulher, perguntou com autoridade: 

- Onde vais? 

A mulher não lhe respondeu logo e, por sua vez, o doutor interrogou o trovador: 

- Que faz o senhor aqui? 

Coração dos Outros não teve ânimo de responder; adivinhava uma cena violenta que ele teria querido evitar, mas Olga adiantou-se:

- Vai acompanhar-me ao Itamarati, para salvar da morte meu padrinho. Já sabe?

O marido pareceu acalmar-se. Acreditou que, com meios suasórios, poderia evitar que a mulher desse passo tão perigoso para os seus interesses e ambições. Falou docemente: 

- Fazes mal. 

- Por quê? perguntou ela com calor. 

- Vais comprometer-se. Sabes que... 

Ela não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grande olhos cheios de escárnio; mirou-o um, dous minutos; depois, riu-se um pouco e disse: 

- É isto! “Eu”, porque “eu”, porque “eu”, é só “eu”, para aqui, “eu” para ali... Não pensas noutra cousa... A vida é feita para ti, todos só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora digo “eu” também) não tenho direito de me sacrificar, de provar a minha amizade, de ter na minha vida um traço superior? É interessante! Não sou nada, nada! Sou alguma cousa como um móvel, um adorno, não tenho relações, não tenho amizades, não tenho caráter? Ora!...

Ela falava, ora vagarosa e irônica, ora rapidamente e apaixonada; e o marido tinha diante de suas palavras um grande espanto. Ele vivera sempre tão longe dela que não a julgara nunca capaz de tais assomos. Então aquela menina? Então aquele bibelot? Quem lhe teria ensinado tais cousas? Quis desarmá-la com uma ironia e disse risonho:

- Está no teatro? 

Ela lhe respondeu logo: 

- Se é só no teatro que há grandes cousas, estou.

E acrescentava com força:

- É o que te digo: vou e vou, porque devo, porque quero, porque é do meu direito. 

Apanhou a sombrinha, concertou o véu e saiu solene, firme, alta e nobre. O marido não sabia o que fazer. Ficou assombrado e assombrado e silencioso viu-a sair pela porta fora. 
Em breve, estava no palácio da Rua Larga. Ricardo não entrou: deixou que a moça o fizesse e foi esperá-la no Campo de Sant’Anna. 
Ela subiu. Havia um imenso burburinho, uma agitação de entradas e saídas. Toda a gente queria mostrar-se a Floriano, queria cumprimentá-lo, queria dar mostras de sua dedicação, provar os seus serviços, mostrando-se coparticipante na sua vitória. Lançavam mão de todos os meios, de todos os planos, de todos os processos. O ditador tão acessível antes, agora se esquivava. Havia quem lhe quisesse beijar as mãos, como ao papa ou a um imperador; e ele já tinha nojo de tanta subserviência. O califa não se supunha sagrado e aborrecia-se. 
Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi inútil. A muito custo conseguiu falar a um secretário ou ajudante-de-ordens. Quando ela lhe disse a que vinha, a fisionomia terrosa do homem tornou-se de oca e sob as suas pálpebras correu um firme e rápido lampejo de espada:

- Quem, Quaresma? disse ele. Um traidor! Um bandido!

Depois, arrependeu-se da veemência, fez com certa delicadeza:

- Não é possível, minha senhora. O marechal não a atenderá. 

Ela nem lhe esperou o fim da frase. Ergueu-se orgulhosamente, deu-lhe as costas e teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido do seu orgulho e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus algozes que eles tinham direito de matá-lo.
Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo... Tinha havido grande e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros. 

Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro - março de 1911.

fim...?
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro
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