quarta-feira, 25 de outubro de 2023

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Travessia do Cambaio: III - Primeiro encontro

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1


Travessia do Cambaio


Primeiro encontro

O recontro fez-se em vozeira em quem, através dos costumeiros vivas ao “Bom Jesus” e ao “nosso Conselheiro”, rompiam brados escandalosos de linguagem solta, apóstrofes insolentes, e entre outras uma frase desafiadora que no decorrer da campanha soaria invariável como um estribilho irônico:

Avança! fraqueza do governo!” 

Houve uma vacilação em toda a linha. A vanguarda estacou e pareceu recuar. Conteve-a, porém, uma voz imperiosa. O major Febrônio rompeu pelas fileiras alarmadas e centralizou a resistência — em réplica fulminante e admirável, atentas às desvantajosas condições em que se realizou. Conteirados rapi- damente os canhões, bombardearam os matutos a queima-roupa, e estes, vendo pela primeira vez aquelas armas poderosas, que decuplavam o efeito despedaçando pedras, debandaram, tontos, numa dispersão instantânea. Aproveitando este refluxo foi feita a investida, iniciada de pronto, pelas cento e tantas praças do 33º de Infantaria. Tropeçando, escorregando nas lajens, contornando-as, ou transpondo-as aos saltos, insinuando-se pelos talhados, atirando a esmo para a frente, as praças arremeteram com as rampas; e logo depois a linha do assalto se estirou, tortuosa e ondulante, extremada à direita pelo 9º e à esquerda pelo 16º e a polícia baiana. 
O combate generalizou-se em minutos, e, como era de prever, as linhas romperam-se de encontro aos obstáculos do terreno. Foi um avançar em desordem. Fracionados, galgando penhascos a pulso, carabinas presas aos dentes pelas bandoleiras, ou abordoando-se às armas, os combatentes arremeteram em tumulto — sem o mínimo simulacro de formatura, confundidos batalhões e companhias — vagas humanas raivando contra os morros, num marulho de corpos, arrebentando em descargas, espadanando brilhos de aço, e estrugindo em estampidos sobre que passavam, estrídulas, as notas dos clarins soando a carga. 
Embaixo, na ladeira em que ficara a artilharia, os animais de tração e os cargueiros, espavoridos pelas balas, partindo os tirantes, sacudindo fora canastras bruacas, desapareciam a galope ou tombavam pelos taludes íngremes. Acompanhou-os o resto dos tropeiros, fugindo, surdos às intimativas feitas com revólveres engatilhados, e agravando o tumulto. 
No alto, mais longe, pelo teso da serra, reapareciam os sertanejos. Pareciam dispostos em duas sortes de lutadores: os que se agitavam, velozes, surgindo e desaparecendo, às carreiras, e os que permaneciam firmes nas posições alterosas. A cavaleiro do assalto, estes iludiam de modo engenhoso a carência de espingardas e o lento processo de carregamento das que possuíam. Para isto se dispunham em grupos de três ou quatro rodeando a um atirador único, pelas mãos do qual passavam, sucessivamente, as armas carregadas pelos companheiros invisíveis, sentados no fundo da trincheira. De sorte que se alguma bala fazia baquear o clavinoteiro, substituía-o logo qualquer dos outros. Os soldados viam tombar, mas ressurgir imediatamente, indistinto pelo fumo, o mesmo busto, apontando-lhes a espingarda. Alvejavam-no de novo. Viam-no outra vez cair, de bruços, baleado. Mas viam outra vez erguer-se, invulnerável, assombroso, terrível, abatendo-se e aprumando-se, o atirador fantástico.  


João Grande 

Este ardil foi logo descoberto pelas diminutas frações atacantes que se avantajaram até às canhoneiras mais altas. Chegaram ali esparsas. A fugacidade do inimigo e o terreno davam por si mesmos à tropa a distribuição tática mais própria, circunstância que, aliada ao pequeno alcance das armas daquele, tornara a expedição quase indene. Os únicos tropreços à escalada eram as asperezas do solo. As cargas amorteciam-se nas escarpas. Não as esperavam os jagunços. Certos da inferioridade de seu armamento bruto, pareciam desejar apenas que ali ficassem, como ficaram, a maior parte das balas destinadas a Canudos. E falseavam a peleja franca. Via-se entre eles, sopesando o clavinote curto, um negro corpulento e ágil. Era o chefe, João Grande. Desencadeava as manobras, estadeando ardilezas de facínora provecto nas correrias do sertão. Imitavam-lhe os movimentos, as carreiras, os saltos, as figurações selvagens, os sertanejos amotinados — num vaivém de avançadas e recuos, ora dispersos, ora agrupados, ou desfilando em fileiras sucessivas, ou repartindo-se extremamente rarefeitos; e a rojões, rolantes pelos pendores, subindo, descendo, atacando, fugindo, baqueando trespassados de balas, muitos; malferidos, outros, em plena descida, e rolando até ao meio das praças, que os acabavam a couce de armas.
Desapareciam inteiramente, às vezes.
Os projetis das Mannlichers estralavam à toa na ossamenta rígida da serra. As seções avançadas ascendiam, porém, mais rápidas, pelas barrancas, conquistando o terreno, até que outra irrupção repentina do adversário lhes tomasse a frente, ou as aferrasse de soslaio. Algumas, então, paravam. Algumas recuavam mesmo, tolhidas de espanto, sem que as animassem oficiais acobardados, cujos nomes pouparam as partes oficiais, mas não os comentários acerbos dos companheiros. A maior parte reagia. Rompia o espingardeamento a queima-roupa sobre os fanáticos dizimando-os, espalhando-os, em grandes correrias pelos cerros.
Por fim o rude cabecilha predispô-los, ao que se figura, a recontro decisivo, braço a braço. O seu perfil de gorila destacou-se, temerariamente, à frente de um bando de súbito congregado. Num belo movimento heróico avançou sobre a artilharia. Cortou-lhe, porém, o passo a explosão de uma lanterneta estraçoando-o e aos caudatários mais próximos, enquanto os demais fugiam para as posições primitivas de envolta, agora, com as avançadas da tropa. Contingentes misturados de todos os corpos saltavam afinal dentro das últimas trincheiras à direita, perdendo o oficial que até lá os levara, Venceslau Leal. 
Estava conquistada a montanha após três horas de conflito. A vitória, porém, resultava da coragem cega junta à mais completa indisciplina de fogo — e compreende-se que mais tarde a ordem do dia relativa ao feito desse preeminente lugar às praças graduadas. Os seus cabos-de-guerra foram os cabos-de-esquadra. Sobre os jagunços em fuga confluíram cargas em desordem: soldados em grupos, turbas sem comando disparando à toa as carabinas, num fanfarrear irritante e numa alacridade feroz de monteiros no último lance de uma batida a javardos. 
Os jagunços escapavam-se-lhes adiante. Perseguiram-nos. 
A artilharia, embaixo, começou a rodar, puxada a pulso, pelas ladeiras acima. 
Realizara-se a travessia; e, tirante o dispêndio de munições, eram poucas as perdas — quatro mortos e vinte e tantos feridos. Em troca os sertanejos deixavam cento e quinze cadáveres, contados rigorosamente. 


Episódio trágico

Fora uma hecatombe. Cumulou-a um episódio trágico.
A algara tumultuária teve um desfecho teatral. 
Foi no volver das últimas bicadas da serra... 
Ali sobre barranca agreste, avergoada de algares, se alteava, oblíqua e mal tocando por um dos extremos o solo, imensa lajem presa entre duas outras que a sustinham pelo atrito, semelhando um dólmen abatido. Este abrigo coberto tinha, na frente, a barbacã de um muro de rocha viva. Nele se acoutaram muitos sertanejos — cerca de quarenta, segundo um espectador do quadro1 — provavelmente os que possuíam as derradeiras cargas dos trabucos. 
A terra protetora dava aos vencidos o último reduto. 
Aproveitaram-no. Abriram sobre os perseguidores um tiroteio escasso, e fizeram-nos estacar um momento, fazendo parar, mais longe, a artilharia que se aprestou a bombardear o pequeno grupo de temerários.
O bombardeio reduziu-se a um tiro. A granada partiu levemente desviada do alvo, e foi arrebentar numa das junturas em que se engastava a pedra. Dilatou-a. Abriu-a, de alto a baixo. 
E o bloco despregado desceu pesadamente, em baque surdo, sobre os infelizes, sepultando-os... 
Reatou-se a marcha. Adiante, numa exaustão crescente, percebida no rarear dos tiros, os últimos defensores do Cambaio tocavam para Canudos. Desapareceram, por fim.  
 
continua 114...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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