sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - g)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor


Ao Redor da Sra. Swann


(g)

continuando...

Quando chegou o dia 1° de janeiro, a princípio fiz visitas de família com minha mãe, que, para não me cansar, classificara-as antecipadamente (com a ajuda de um itinerário elaborado por meu pai) por bairro, em vez de fazê-lo por graus de parentesco. Porém, mal entramos no salão de uma prima bem afastada, aonde íamos primeiro porque sua casa ficava bem próxima da nossa, ao contrário do seu parentesco, minha mãe ficou assombrada ao ver, trazendo seus marrons-glacês ou deguisês, o melhor amigo do mais suscetível de meus tios, ao qual contaria que não tínhamos iniciado nosso giro por ele. Esse tio ficaria seriamente ofendido; acharia natural que começássemos indo da Madeleine ao Jardim das Plantas, onde morava, antes de parar em Saint-Augustin, para ter de voltar logo à rua da Faculdade de Medicina. 

Acabadas as visitas (minha avó nos dispensava que lá fôssemos, pois naquele dia jantaríamos com ela), corri aos Champs-Élysées a fim de levar à nossa vendedora, que por sua vez a entregaria à pessoa que vinha várias vezes na semana, da casa dos Swann, comprar pão de mel, a carta que, desde o dia em que minha amiga me causara tanta mágoa, decidira lhe enviar no dia de Ano-Novo, e na qual dizia que nossa amizade antiga desaparecia com o ano findo, que esquecia minhas censuras e decepções e que, a partir de 1° de janeiro, era uma nova amizade iríamos construir, tão sólida que nada a arruinaria, tão maravilhosa que esperava que Gilberte tivesse alguma faceirice em conservar toda a sua beleza se de vez em quando, como eu prometia fazer também, logo que ocorre um perigo capaz de destruí-la.

Voltando para casa, Françoise me fez parar na rua Royale, diante de uma venda de mercadorias ao ar livre, onde escolheu de presente, fotos de Pio IX e de Raspail e onde, de minha parte, com Berma. As numerosas admirações que a artista suscitava conferiam certa beleza àquele rosto único que ela possuía para lhes retribuir, imutável e precário as roupas dessas pessoas que não têm outra para trocar, rosto em que tinha deixado sempre a mesma ruga pequena sobre o lábio superior, o soerguimento das sobrancelhas, outras peculiaridades físicas, sempre as mesmas que, em suma, mercê de queimadura ou de um choque. Além disso, esse rosto não parecido belo em si mesmo, porém dava-me a ideia e, por conseguinte, desejo de beijá-lo por causa de todos os beijos que já recebera e que, do fundo do álbum, parecia solicitar ainda com aquele olhar de terna faceirice e o sorriso mansamente ingênuo. Pois a Berma devia efetivamente sentir para como muitos, os desejos que confessava, sob a capa da personagem Fedra, e que lhe é fácil satisfazer por tudo, até pelo prestígio de seu nome que se acrescentava beleza e prorrogava-lhe a juventude. A noite caía, e parei diante de uma teatro onde estava afixado o cartaz sobre a representação que a Berma faria dia 1° de janeiro. Soprava um vento úmido e suave. Era um tempo bem conhecido, que eu tinha a sensação e o pressentimento de que o dia de Ano-Novo não era diferente dos outros, que não era o primeiro de um mundo novo em que teria podido a oportunidade ainda intacta, refazer minhas relações com Gilberte como a da Criação, como se ainda não existisse passado, como se tivessem sido criadas, juntamente com os indícios que delas se pudessem tirar para o decepções que ela me causara às vezes; um novo mundo onde não sairia nada do antigo... a não ser uma coisa: meu desejo de que Gilberte me quisesse. Compreendi que meu coração desejava tal renovação, a seu redor, de um, que não o satisfizera, porque ele, meu coração, não havia mudado, e disse mesmo que não havia motivo algum para que o de Gilberte tampouco houvesse mudado; senti que aquela nova amizade era a mesma, como não são 38 dos outros por um fosso, os anos novos que o nosso desejo, sem poder modificá-los, reveste, sem que o saibam, de um nome diferente.

Por mais que dedicasse a Gilberte aquele ano, e da mesma forma como se superpõe uma religião às leis cegas da natureza, e tentasse imprimir ao dia do Ano-Novo a ideia que fazia dele, era tudo em vão; sentia que ele não sabia que o chamava de Ano-Novo, que terminava no crepúsculo de um modo que para mim não era novo; e vento suave que soprava ao redor da coluna de cartazes, eu reconheceria ao reaparecer a matéria eterna e comum, a umidade familiar, a ignorante dias antigos.

Voltei para casa. Acabava de viver o 1° de janeiro dos homens velhos que diferem este dia dos jovens, não porque não lhes deem presentes, mas porque não acreditam mais no Ano-Novo. Ganhara presentes, mas não o único que teria me alegrado, um bilhete de Gilberte. No entanto, eu ainda era jovem, pois que lhe escrevera uma carta com a qual esperava, falando-lhe dos sonhos solitários, da minha ternura, a fim de despertar-lhe sonhos idênticos. A tristeza dos homens que envelheceram é a de nem sequer pensar em escrever tais cartas, de que já conhecem a inutilidade.

Quando me deitei, os rumores da rua, que se prolongaram até mais tarde naquele dia de festa, mantiveram-me acordado e eu pensava em todas as pessoas que acabariam a noite no meio dos prazeres, pensava no amante; no grupo de devassos, talvez, que tinham ido procurar a Berma ao fim daquela representação que eu vira anunciada para a noite. Nem sequer podia, para acalmar a agitação que essa ideia fazia nascer em mim naquela noite de insônia, dizer comigo que a Berma não pensava talvez no amor, visto que os versos que recitava, que longamente estudara, lembravam-lhe o ato do instante como era delicioso o amor, o que aliás ela bem sabia, tanto que mostrava muito em suas falas, conhecidas emoções; porém, dotadas de uma violência nova e de uma doçura insuspeitada à espectadores maravilhados, os quais, entretanto, já as haviam conhecido por si mesmos. Acendi a vela apagada para olhar ainda uma vez o seu rosto. À ideia de que ele era, naquele instante, sem dúvida, acariciado por esses homens a quem não podia impedir de dar à Berma, e dela receber, alegrias sobre-humanas e vagas, experimentei uma perturbação mais cruel, por não ser voluptuosa, uma nostalgia a que veio agravar o som da trompa, como o que se ouve na noite da Mi-Carême, e muitas vezes em outras festas e que, como então é destituído de poesia, é mais triste, saindo de uma taberna, do que "a noite no fundo das florestas". Nesse momento, talvez, um bilhete de Gilberte não seria o que mais me faltasse. Nossas aspirações vão se entrecruzando na confusão da existência, e raro que uma felicidade venha se colocar exatamente sobre o desejo que a reclamava.

Continuei a ir aos Champs-Élysées nos dias em que fazia bom tempo. Nas ruas cujas mansões elegantes e róseas se banhavam, já que era a época da moda em voga de exposições de aquarelistas, em um céu móvel e tênue. Mentiria se dissesse que nesse tempo os palácios de Gabriel me pareceriam de maior beleza do que os palácios vizinhos; ou até mesmo de outra época. Eu julgava que com mais estilo a teria achado mais antigo, senão o palácio da Indústria, ao menos o do Trocadéro. Numa agulhada em sono agitado, minha adolescência envolvia num mesmo sonho todo o bairro por onde o levava, e eu jamais sonhara que pudesse haver um edifício do século XVIII na rua Royale; assim como teria ficado espantado se soubesse que a porta de Saint-Martin e a Porta Saint-Denis, obras-primas do tempo de Luís XIV, não eram contemporâneas dos imóveis mais recentes daqueles distritos sórdidos. Uma única vez um dos palácios de Gabriel me fez parar longamente; é que havia caído a noite e suas colunas desmaterializadas pelo luar, pareciam recortadas e lembrando-me um cenário da opereta Orfeu nos Infernos, davam-me pelo menos uma vez a impressão de beleza.

Entretanto, Gilberte não voltava aos Champs-Élysées. E, contudo tinha necessidade de vêla, pois nem sequer me lembrava de seu rosto. A maneira indagadora, ansiosa, exigente com que encaramos a pessoa amada, nossa expectativa da palavra que nos dará, ou matará a esperança de um encontro no dia seguinte, até que tal palavra seja dita, nossa imaginação alternativa, senão simultânea de alegria e desespero; tudo isso torna a nossa atenção, em face do ser amado trêmula demais para que possa obter dele uma imagem bem nítida. Também, essa atividade de todos os sentidos ao mesmo tempo; que tenta, somente com os olhares, aquilo que se encontra além deles; seja porque a gente se entrega com demasiada indulgência para mil formas, sabores e movimentos da pessoa viva; a todas essas coisas que de costume tornamos inerte quando não estamos enamorados. O modelo que ao contrário, se movimenta; dele só possuímos fotografias defeituosas. Eu, na verdade, não sabia de fato como eram os traços de Gilberte, salvo nos momentos divinos em que eles se desdobravam para mim: só me recordava do seu sorriso. E, não rever aquele rosto bem-amado, a todo esforço que fizesse para me lembrar, por encontrar, desenhados em minha memória com precisão definitiva, inúteis e impressionantes do homem dos cavalos de madeira e da vendedora de pirulitos; assim, aqueles que perderam um ente querido que jamais torna a rever, se desesperam de encontrar sem cessar em seus sonhos tantas pessoas insuportáveis e que já é demais terem conhecido no estado de vigília. Em sua impotência de imaginarem o objeto de sua dor, quase se acusam de não sentir bastante dor. Quanto a mim, não estava longe de crer que, não podendo me lembrar de Gilberte, esquecera ela própria, não a amava mais. Por fim, ela que eu via quase todos os dias, pondo diante de mim novas coisas a desejar, a lhe pedir para o dia seguinte e fazendo cada dia, em tal sentido, de minha ternura uma nova. Mas uma coisa veio mudar, e de modo brusco, a maneira encontrar todas as tardes, cerca das duas horas, se colocava o problema do meu amor. Será que o Sr. Swann havia surpreendido a carta que escrevera à sua filha; ou Gilberte me avisava muito depois sobre um estado de coisas já antigo, a fim de que eu fosse mais prudente? Como lhe dissesse o quanto admirava seu pai e sua mãe, assumiu este ar vago, cheio de reticências e segredo, que apresentava somente quando lhe falarem do que tinha de fazer, de seus passeios e visitas, e, de repente, acabam de falar: 

"Sabe, eles acham você intragável!" e escorregadia como uma ondina, assim desatou a rir. Muitas vezes o seu riso, estava em desacordo com suas palavras e parecia, como o faz a música, descrever em outro plano uma superfície invisível. O Sr. e a Sra. Swann não pediam a Gilberte que deixasse de jogar comigo; porém, parecia que seus pais preferiam que aquilo não tivesse começado. Não viam favoravelmente minhas relações com ela, porque não me atribuíam grande moralidade e imaginavam que eu só poderia exercer uma influência malsã sobre a filha. Esse tipo de pessoas jovens e pouco escrupulosas, às quais Swann parecia comparar-me, eu as imaginava como detestando os pais da moça a quem amava, elogiando-os em sua presença mas troçando deles com ela, impelindo-a a desobedecê-los e, quando a conquistam, impedem-na até de vê-los. A esses traços (que nunca são aqueles sob os quais se enxerga o maior miserável), com que violência meu coração opunha os sentimentos de que estava animado em relação a Swann, ao contrário, tão apaixonados que já não duvidava de que, se ele os tivesse suspeitado, se arrependesse do julgamento a meu respeito como de um erro judiciário! Tudo o que sentia por ele, ousei escrever numa longa carta que confiei à Gilberte, pedindo que a fizesse lhe chegar às mãos. Ela consentiu. Ai de mim! Ele via então na minha pessoa um impostor maior ainda do que eu imaginara; dos sentimentos que eu acreditara pintar-lhe em dezesseis páginas, com tanta verdade, ele duvidava então: a carta que lhe escrevi, tão ardente e tão sincera como as palavras que havia dito ao Sr. de Norpois, não alcançara maior êxito. Gilberte me contou no dia seguinte, depois de me levar à parte para trás de um bosquete de loureiros, numa pequena alameda, onde cada um se sentou numa cadeira, que, ao ler a carta, que ela me devolvia, seu pai dera de ombros dizendo:

"Tudo isso não quer dizer nada, apenas mostra o quanto eu tenho razão."

Eu que conhecia a pureza de meus sentimentos, a bondade da minha alma, estava indignado que minhas palavras nem sequer tivessem abalado o absurdo erro de Swann. Pois que se tratava de um erro, já não tinha mais dúvidas. Sentia que descrevera com tanta exatidão certas características irrecusáveis de meus sentimentos generosos que, para que Swann, por meio delas, não as tivesse logo reconstituído, não me viesse pedir perdão e confessar que se enganara, era preciso que ele jamais tivesse sentido esses nobres sentimentos, o que deveria torna-lo incapaz de compreendê-los nos outros.

Ora, talvez Swann soubesse que a generosidade não passa, muitas vezes, do aspecto interior assumido pelos nossos sentimentos egoístas quando ainda não os denominamos e classificamos. Talvez reconhecesse, na simpatia que lhe apressava, um simples efeito - e uma confirmação entusiasta - do meu amor por Gilberte, pelo qual - e não pela minha veneração secundária por ele - seriam fatalmente dirigidos por meus atos a seguir. Não podia partilhar de suas previsões, pois não conseguira abstrair de mim mesmo o meu amor, fazê-lo pertencer à generalidade dos outros amores, calcular-lhe experimentalmente as consequências; estava desesperado. - Tive de deixar Gilberte por um instante; Françoise me chamava. Foi preciso acompanhá-la a um pequeno pavilhão com treliças verdes, bem parecido com os escritórios da alfândega municipal da velha Paris, e onde há pouco instalaram; o que na Inglaterra se chama lavabo e, na França, por uma anglomania mal informada, water-closet. As paredes úmidas e velhas da entrada, onde fiquei esperando Françoise, desprendiam um odor frio de coisa fechada que, dista logo das preocupações que acabavam de fazer nascerem mim as palavras contadas por Gilberte, invadiu-me de um prazer que não era o mesmo dos outros, os quais nos deixam mais instáveis, incapazes de retê-los ou possuí-los; pelo contrário, de um prazer consistente, ao qual podia me apoiar, delicioso, rico de uma verdade duradoura, certa e inexplicável. Teria querido, como antigamente em meus passeios pelos caminhos de Guermantes, tentar decifrar dessa impressão que me empolgara e ficar imóvel a interrogar aquela envelhecida que me propunha, não desfrutar o prazer que ela só me dava por acréscimo, mas a descida na realidade que ela não me revelava. Mas a encarregada pelo estabelecimento, velha senhora de faces excessivamente pintadas e de peruca castanha, pôs-se a falar comigo. Françoise achava-a "gente muito boa". Sua filha havia casado com o que Françoise denominava "rapaz de família", portanto, algum ser que ela julgava bem, mais diferente de um operário vindo de Saint-Simon o qual considerava de um homem "saído da lama do povo". Sem dúvida a zeladora, sofrera reveses da fortuna. Mas Françoise assegurava que ela era marquesa e pertencia à uma família de Saint-Ferréol. Essa marquesa me aconselhou que não ficasse ali ao ar fresco e me abriu um gabinete dizendo: "Não quer entrar? Este aqui é bem limpo e pra você será grátis." Talvez o fizesse apenas como as senhoritas do Gouache que quando íamos fazer uma encomenda, ofereciam-me um dos bombons que tinham em cima do balcão, sob uma tampa de vidro e que mamãe infelizmente me proibia, que eu aceitara também com menos inocência; como aquela velha florista que mamãe levava para nos encher as "jardineiras" e que me dava uma rosa revirando os olhos muito ternos. Em todo caso, se a "marquesa" gostava de rapazes, abrindo-lhes a porta daqueles cubos de pedra onde os homens estão acocorados como as Esfinges, e devia procurar em sua generosidade menos a esperança de corrompê-los; prazer que se experimenta em se mostrar inutilmente pródigo à pessoa querida; pois, nunca vi junto dela, outro visitante que não um velho guarda-florestal. 

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