quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Moby Dick: 16b - O Navio

Moby Dick

Herman Melville


16 - O NAVIO

continuando... 

Assim era a pessoa que vi no painel de popa, quando segui o Capitão Peleg até a cabine. O espaço entre as duas cobertas era pequeno; o velho Bildad estava lá sentado, ereto e sem se encostar, como sempre, para economizar o fraque. Seu grande chapéu estava ao lado; as pernas, rigidamente cruzadas; sua vestimenta de lã grossa, abotoada até o pescoço; com os óculos no nariz, parecia absorto na leitura de um livro imenso.

“Bildad”, gritou o capitão Peleg, “de novo, Bildad, hein? Tu tens estudado essas Escrituras nos últimos trinta anos, é certo. Até onde chegaste, Bildad?”

Como se estivesse acostumado àquelas palavras profanas de seu companheiro de bordo, Bildad, sem prestar atenção à sua irreverência, levantou os olhos e ao me ver dirigiu um olhar inquisitivo a Peleg.
 
“Ele diz ser um dos nossos, Bildad”, disse Peleg, “quer embarcar.”

“Queres?” perguntou Bildad, com uma voz cavernosa, voltando-se para mim. 

“Eu queres”, respondi sem perceber, dada a intensidade de sua expressão Quacre.

“O que pensas dele, Bildad?”, perguntou Peleg.

“Serve!”, respondeu Bildad, me observando ainda, e depois afundou em seu livro com um resmungo bem audível. 

Tomei-o pelo Quacre mais estranho que já vira, especialmente em contraste com Peleg, seu amigo e companheiro de bordo, que parecia tão arrogante e ruidoso. Mas não disse nada, limitei-me a observar. Então Peleg abriu uma arca, retirou de dentro os contratos do navio, colocou uma caneta e tinta diante de si, e sentou-se à mesinha. Comecei a achar que estava na hora de decidir em que condições iria me comprometer a viajar. Já sabia que no negócio de baleias não se recebem salários; mas toda a tripulação, inclusive o comandante, recebe uma cota dos lucros, e essas cotas são proporcionais ao grau de importância da função desempenhada no navio. Também sabia que, sendo um novato na pesca de baleias, minha cota não seria muito grande; mas considerando que estava acostumado com o mar, que sabia governar um navio e amarrar uma corda, e tudo o mais, eu não tinha dúvida, depois de tudo que tinha escutado, de que deveriam me oferecer pelo menos uma cota de 275 avos – ou seja, a 275ª parte dos lucros líquidos da viagem, fosse qual fosse seu total. E, embora a cota de 275 avos fosse uma cota pequena, era melhor que nada; e, se tivéssemos sorte na viagem, quase poderia pagar pela roupa que eu teria que usar, sem falar na alimentação e alojamento por três anos, pelos quais eu não teria que pagar nada. 
Alguém poderia pensar que era um jeito ruim de acumular uma fortuna magnífica – e era mesmo um jeito muito ruim. Mas não sou daqueles que buscam fortunas magníficas e fico bastante satisfeito se o mundo me aloja e me alimenta, enquanto me resigno a esta terrível placa, “Nuvem Trovejante”. De modo geral, achei que a 275ª parte seria justo, mas não teria ficado surpreso se me oferecessem a 200ª pelo fato de eu ter ombros largos.
Não obstante, uma coisa me fazia desconfiar de que não receberia uma parte generosa dos lucros, e era o seguinte: em terra, eu tinha ouvido falar sobre o Capitão Peleg e seu amigo Bildad, que eram os principais donos do Pequod, e que os outros proprietários, dispersos ou insignificantes, deixavam quase toda a administração dos negócios do navio com os dois. E eu sabia que o velho avarento Bildad teria que dizer algo sobre os marinheiros que seriam embarcados, ainda mais que o encontrei a bordo do Pequod, bem à vontade na cabine, lendo a Bíblia como se estivesse em sua casa. Enquanto Peleg tentava em vão consertar um bico de pena com seu canivete, o velho Bildad, para minha grande surpresa, considerando-se que era uma das partes interessadas nesses procedimentos, não deu atenção a nós, mas continuou a resmungar e ler seu livro, “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça…”

“Bem, capitão Bildad”, interrompeu Peleg, “que pensas, que cota devemos oferecer a esse jovem?”

“Tu sabes melhor do que eu”, foi sua resposta sepulcral, “achas que uma cota de 777 seria excessiva? – “onde a traça e a ferrugem os consome; mas ajuntai tesouros no céu…”

Mas que tesouro, pensei. Um tesouro de 777 avos! Bem, velho Bildad, você está determinando que eu não tenha muitos tesouros aqui embaixo, onde a traça e a ferrugem nos consomem. Era um tesouro extremamente modesto; e, embora a magnitude do número devesse iludir um homem da terra, basta refletir um pouco para se perceber que o número 777 é grande; no entanto, se tiver um avo no final, observa-se que 777 avos é muito menos do que 777 dobrões de ouro; foi desse modo que pensei na ocasião.

“Ora, que diabos, Bildad”, gritou Peleg, “não queres enganar esse jovem rapaz! Ele deve receber mais que isso.” 

“Setecentos e setenta e sete avos”, repetiu Bildad, sem levantar os olhos; e continuou a murmurar, “pois, onde está o teu tesouro, aí está, também, o teu coração.” 

“Vou lhe dar trezentos avos”, disse Peleg, “estás ouvindo, Bildad? Um tesouro de trezentos avos, repito.”

Bildad abaixou seu livro, virou-se para ele e disse, “Capitão Peleg, tens um coração generoso; mas deves considerar os teus deveres para com os outros proprietários deste navio – viúvas e órfãos, em sua maioria – e, se recompensarmos em excesso o trabalho desse jovem rapaz, estaremos tirando o pão dessas viúvas e órfãos. Setecentos e setenta e sete avos, capitão Peleg.”

“Bildad!” rugiu Peleg, levantando-se e andando pela cabine. “Que os diabos te carreguem, Capitão Bildad, se eu tivesse seguido os teus conselhos teria agora a consciência tão pesada que afundaria o maior navio que já navegou por todo o cabo Horn.”

“Capitão Peleg”, disse Bildad com firmeza, “não sei se a tua consciência pode agüentar dez polegadas ou dez braças de água; mas como insiste em ser impenitente, Capitão Peleg, receio que tua consciência termine por afundar-te até o quinto dos infernos, Capitão Peleg.”

“Quinto dos infernos! Quinto dos infernos! Tu estás me insultando, homem; passando dos limites, me insultando. É uma verdadeira ofensa dizer a uma pessoa que ela vai para o inferno. Raios e trovões! Bildad, repete isso, e eu – e eu – é, eu sou capaz de engolir uma cabra viva, chifre e tudo. Para fora da cabine, hipócrita, filho-da-mãe – sai daí!”

Enquanto clamava estas coisas lançou-se contra Bildad, mas este, com uma destreza maravilhosa, conseguiu evitá-lo.
Alarmado por esta terrível explosão entre os dois principais responsáveis e proprietários do navio e sentindo-me tentado a desistir de embarcar num navio cujos armadores comandavam de modo tão problemático, afastei-me da porta para dar passagem a Bildad, que eu tinha certeza queria desaparecer diante da fúria que despertara em Peleg. Mas, para minha surpresa, sentou-se calmamente outra vez no painel de popa e não parecia ter a menor intenção de se retirar. Parecia estar acostumado à impenitência e aos modos de Peleg. Quanto a Peleg, depois de soltar a raiva que sentia, parecia tê-la esgotado, e também se sentou como um cordeirinho, embora ainda se crispasse um pouco de nervosismo. “Uau!”, assobiou por fim – “creio que a tempestade se foi com o vento. Bildad, eras bom em afiar lanças, podes consertar esta minha pena? Meu canivete está cego. Aqui está. Obrigado, Bildad. Pois bem, meu jovem rapaz, o teu nome é Ishmael, não foi o que disseste? Muito bem, vais conosco, Ishmael, com uma cota de trezentos avos.” 

“Capitão Peleg”, eu disse, “eu tenho um amigo que também quer embarcar – posso trazê-lo amanhã?”

“Com certeza”, respondeu Peleg, “traze-o, e veremos.”

“Que cota ele vai querer?”, resmungou Bildad, levantando os olhos do livro no qual havia se enterrado. 

“Oh! Não te preocupes com isso, Bildad”, disse Peleg. “Ele já esteve na pesca de baleias?”, perguntou, virando-se para mim.

“Matou tantas baleias que nem sei contar, capitão Peleg.” 

“Traze-o aqui, então.”

Depois de assinar os papéis, fui embora, convencido de que fizera um bom trabalho naquela manhã, e que o Pequod era o próprio barco que Yojo tinha destinado para levar a Queequeg e a mim a dar a volta ao Cabo.
Mas eu não tinha ido muito longe quando comecei a pensar que ainda não vira o Capitão com quem viajaria; embora não raro aconteça que um baleeiro seja preparado e receba sua tripulação a bordo antes que o capitão apareça para comandar; isto porque algumas viagens são tão longas, e os intervalos em terra tão breves que o capitão, se tiver família ou algum interesse desse tipo para ocupá-lo, não se preocupará com o navio no porto, deixando-o com os proprietários até que esteja pronto para ir ao mar. Contudo, é sempre bom conhecê-lo antes de se entregar irrevogavelmente em suas mãos. Voltei e me aproximei do capitão Peleg, perguntando-lhe onde poderia encontrar o capitão Ahab.

“E o que queres com o capitão Ahab? Já está tudo certo; irás embarcar.” 

“Sim, mas gostaria de vê-lo.”

“Não creio que poderás vê-lo no momento. Não sei o que há com ele, mas se mantém fechado dentro de casa; uma espécie de doença, embora não aparente. Na verdade, não está doente, mas também não está muito bem. De qualquer modo, meu jovem rapaz, ele não quer receber a mim, portanto não creio que vá receber a ti. É um homem estranho, o capitão Ahab – é o que dizem –, mas é uma boa pessoa. Ora, hás de gostar dele, não tenhas medo. É um homem grande, não é religioso, parece um deus, o Capitão Ahab; não fala muito; mas quando fala é melhor ouvi-lo. Presta atenção, Ahab é uma pessoa fora do comum; Ahab esteve em universidades e também entre os canibais; está acostumado às maravilhas mais profundas do que o próprio mar; fixou sua lança em adversários mais estranhos e poderosos do que baleias. Sua lança! A mais certeira e afiada de todas as lanças de nossa ilha! Oh! Ele não é o capitão Bildad; não! E não é o capitão Peleg; ele é Ahab, meu rapaz, o Ahab da antiguidade, que, bem o sabes, era um rei coroado!” 

“E um ser desprezível. Não foi aquele rei malvado que, quando foi assassinado, os cães vieram lamber seu sangue?”

“Aproxima-te de mim – mais perto, mais perto”, disse Peleg com uma expressão nos olhos que me assustou. “Vê bem, meu jovem; nunca fales sobre isso a bordo do Pequod. Nunca fales sobre isso em nenhum lugar. O Capitão Ahab não escolheu o próprio nome. Foi um capricho tolo de sua mãe, uma viúva louca e estúpida, que morreu quando ele tinha apenas doze meses. Mas Tistig, uma velha indígena de Gay Head, disse que o nome tinha sido profético. Talvez outros néscios digam o mesmo. Quero prevenir-te. É uma mentira. Conheço bem o capitão Ahab; há muitos anos viajei com ele como imediato; sei como ele é – um homem bom –, não é um homem religioso e bom como Bildad, mas é um homem que pragueja e é bom – um pouco como eu –, só que vale mais do que eu. Sim, sei que nunca foi muito alegre; e sei que no caminho para casa estava um pouco desequilibrado; mas foram as dores agudas do coto que sangrava que provocaram isto, como se pode ver. Sei também que desde que perdeu a perna na última viagem, por causa da maldita baleia, ele ficou temperamental – às vezes desesperado, outras vezes colérico; mas isso vai passar. E de uma vez por todas vou dizer-te e assegurar-te que é melhor viajar com um bom capitão que é temperamental do que com um mau capitão que é alegre. Portanto adeus, meu rapaz – e não penses mal do Capitão porque ele tem um nome abominável. Além disso, meu rapaz, ele tem esposa – casou-se não faz três viagens –, uma jovem meiga e resignada. Pensa nisso; com essa moça meiga o velho capitão tem uma criança: podes pensar que há alguma maldade irremediável em Ahab? Não, meu rapaz; por muito que tenha sido agredido e que tenha sofrido, Ahab conserva seu lado humano!”

Enquanto me afastava, estava mergulhado em reflexões; aquilo que acabava de me ser incidentalmente revelado sobre o Capitão Ahab me encheu de uma espécie de pena vaga e incontida. Naquela ocasião, senti compaixão e tristeza por ele, mas não por outra razão senão a perda cruel de sua perna. Mas também senti um estranho temor; um temor que não sei descrever, que não era exatamente temor; não sei o que era. Mas senti; e esse sentimento não me afastava do Capitão, embora me tornasse impaciente em relação a algo que parecia um mistério, tão pouco eu o conhecia. No entanto, minhas reflexões acabaram por tomar um outro rumo, de modo que o misterioso Ahab saiu de meu pensamento.  
Moby Dick: 16b - O Navio
Moby Dick: 17 - O Ramadã
________________________

Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

Nenhum comentário:

Postar um comentário